Diário de Classe

Quem não chorar no enterro da mãe será condenado

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25 de março de 2017, 8h00

Spacca
O Estrangeiro, de Albert Camus, é uma obra fundamental para quem pretende compreender as motivações humanas no campo do Direito Penal, especialmente sobre os limites da culpabilidade. Não pretendo aqui resenhar o livro de Camus. A obra, por certo, foi abordada por diversos ângulos, especialmente pelo Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR[1]. Para quem não leu o livro, segue a dica da resenha.

O que pretendo sublinhar é que sua execução é a prova de que o mundo lhe era indiferente. Indiferença esta que lhe era companheira inseparável. Fiel a ela e infiel aos anseios e convencionalismos da sociedade. Um estrangeiro em um país que vive no absurdo de querer arrazoar seus medidores de emoção e sentimento humanos.

Não basta sofrer, tem-se que lacrimejar; não basta dizer a verdade, tem-se que mentir. “Respondi que nunca se muda de vida; que, em todo caso, todas se equivaliam, e que a minha, aqui, não me desagradava em absoluto.” Meursault vive suas convicções e elas (in)diferem daquelas do meio em que deveria estar inserido. Se ele não está no meio, está na margem, e é preciso que decida rápido querer ser um sujeito deles ou um alienígena. O sol que Meursault em demasia encontrava lá fora era, talvez, o sol que lhe faltava lá dentro. O calor que lhe despertava sensações involuntárias era, quem sabe, o calor que lhe estava inibido.

Ao sujeito apático e indiferente que meramente reage; falta-lhe energia. Energia. Na falta dela ele se deixa levar, ele se defende e restringe seu afeto pela vida, pelos outros. “Todo o problema, ainda uma vez, estava em matar o tempo.” O tempo. “O homem absurdo é aquele que não se separa do tempo.” Camus era absurdo. Meursault referencia le temps já nas linhas que inauguram sua narração. O tempo aprisiona quem o vive e situa quem o lê.

Meursault é estrangeiro em um país que ele só vive em sua dimensão física, seu espaço. Ele é leitor de sua própria história, que é escrita por aqueles que não o leem, “do fundo do meu futuro, durante toda esta vida absurda que eu levara, subira até mim, através dos anos que ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava, à sua passagem, tudo o que me haviam proposto nos anos, não mais reais, que eu vivia”.

Meursault não pode viver sua individualidade, seu ser único em seu próprio país de restrições de funções que não lhe davam prazer nem lhe despertavam desejos. Sua simplicidade e clareza não bastavam em um país onde tem-se que exaltar sentimentalismos e condutas de autopunição e arrependimento. “Nunca conseguira arrepender-me verdadeiramente de nada.” Não foi difícil condená-lo. Um estrangeiro em um país do semblante. “Em nossa sociedade, todo homem que não chora no enterro de sua mãe corre o risco de ser condenado à morte.”

De todas as possibilidades do texto, escolhi — sabe-se que não sei muito bem o porquê, e a minha justificação é da ordem do parcial — a que mais toca com a minha função diária. De mim mesmo não posso fugir, eis a angústia. Então o encontro com o juiz da instrução e a busca de salvação, em nome de Deus, parece-me o que retorna em minha atividade. Busco, assim, pinçar do texto um pré-texto para dar sentido ao que para mim é importante. Claro que falo do meu lugar, ou seja, do lugar do juiz em face do júri. De certa forma, o júri representa, paradoxalmente, de um lado, a restrição ao narcisismo do julgador onipotente e, de outro, um “mecanismo paliativo de desencargo” (Rosa Cunha e Miranda Coutinho). Por isso, o que posso falar do texto vai trilhado por aí, especificamente sobre a culpa e a pretensão de pastoreiro, em nome de Deus, evidente, que embala, ainda, grande parte da magistratura.

Meursault apresenta-se como o sujeito sem culpa, indiferente. E quando o sujeito se diz não culpado, Freud dizia que valia a pena investigar. Não sem razão. Da prisão indiferente, surge um olhar curioso do juiz de instrução. Da impressão de se tratar de um caso simples, surge a angústia em Meursault, de algo que lhe foge do controle.

Ganhou um advogado interessado em salvar sua alma, ciente das artimanhas dos fatores reais de decisão, apontou o lugar onde o caso ganha relevância: a vida privada. Encadeia-se a insensibilidade com a morte da mãe. Sob os protestos de que sua vida não tinha relação com o caso, o advogado redarguiu que ele “não conhecia a justiça de perto”. Na nova entrevista com o juiz, este assumiu sua função dizendo que o que interessava era o homem Meursault e, com a ajuda de Deus, faria qualquer coisa para o ajudar, isto é, o salvar, nem que fosse sua alma. Com o crucifixo de prata agitado no ar, o juiz voltou-se para Meursault e perguntou se ele o conhecia, obtendo resposta positiva. Dizendo que acredita em Deus, afirmou que nenhum homem era suficientemente culpado para que Deus não o perdoasse, desde que houvesse arrependimento e transformação. A pergunta veio: acreditas em Deus? Meursault disse que não. Sentando-se, indignadamente, disse que todos acreditam em Deus, mesmo os que não o querem, e, sem Ele, sua vida de juiz perderia o sentido. Pedindo perdão pelos pecados de Meursault, pontificou que Ele que sofreu por ele. Sem arrependimento, mas aborrecido, acabou a instrução do Senhor Anticristo, como se referia o juiz.

É justamente nessa estrutura de defenestração do mal na terra, em nome do bem, do justo e do Senhor, que o juiz imaginariamente agia. E continua, por sua descendência semidivina, nos julgamentos do nosso dia a dia. A começar pelos crucifixos existentes nos mais respeitáveis tribunais, em pleno Estado (que se diz) laico. Em nome de Deus, do pai, do pontífice, seu fiel defensor. A posição de juiz — dizem — alça-lhe — Schreber bem sabia, como indicaram Freud e Lacan — a uma importância que precisa ser trabalhada, sob pena de se armar uma rede de sentidos pré-dados que condicionam a fantasia nuclear do julgador, mormente se assume uma posição inquisitorial: o lugar tenente do pontífice, da verdade. Legendre, sobre o locus, assevera: “Nenhum jurista pode fazer nada quanto a isso e pouco importa que ele saiba; ele ocupa seu quadrado, seu jardim fechado, hortus conclusus, dizia de maneira excedente o texto medieval”. A angústia crescente do texto de Camus nos convida a pensar o nosso lugar, bem assim a compreender que, no jogo do processo penal[2], fingir, despistar, jogar o jogo do crime, da confissão e do arrependimento (que precisa se manifestar sincero, mesmo que seja fingido) pode evitar uma execução, principalmente quando não se julgam as condutas, mas as pessoas.


[1] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de (coord.). Direito e Psicanálise: Interseções a partir do Estrangeiro de Albert Camus. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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