Opinião

Exclusão do ICMS da PIS e Cofins é teste ao controle de constitucional

Autor

  • Abhner Youssif Mota Arabi

    é juiz auxiliar da presidência do Supremo Tribunal Federal coordenador do Centro de Mediação e Conciliação do STF doutorando em Direito do Estado (subárea: Direito Constitucional) na Universidade de São Paulo (USP) mestre em "Direito Estado e Constituição" pela Universidade de Brasília (UnB) ex-assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal (2014-2018) e autor de livros capítulos de livros e artigos jurídicos.

25 de março de 2017, 10h21

A exclusão dos valores relativos ao ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, decisão majoritária a que recentemente chegou o Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 574.706, ainda tem seu alcance incerto. A polêmica e apertada discussão quanto à correta interpretação dos conceitos de faturamento/receita ainda gera dúvidas quanto às suas consequências nas finanças públicas, especialmente em tempos de reestruturação das contas governamentais.

Com efeito, os números apresentados pela Administração Tributária remetem a uma perda de arrecadação de R$ 20 bilhões anuais, o que abre o debate ainda pendente no STF quanto a eventual modulação dos efeitos de sua decisão. Durante o julgamento, os representantes da Fazenda Pública chegaram a postular em tribuna que os efeitos da decisão apenas fossem aplicados a partir do exercício financeiro de 2018, mas a discussão foi deliberadamente postergada para eventuais embargos de declaração, que certamente virão.

Entretanto, enquanto ainda não definido o alcance dos efeitos da referida decisão, a questão reabre a discussão quanto à última palavra sobre a Constituição. É que já começam a circular os rumores relativos à possibilidade de que o Governo Federal apresente Proposta de Emenda Constitucional para que, pela via legislativa, consiga postergar os efeitos da decisão. Seria possível essa eventual alteração?

Nos modelos hoje existentes, costuma-se atribuir o controle de constitucionalidade ao exercício de uma jurisdição constitucional, isto é, a órgãos integrantes do Poder Judiciário, tal como ocorre no modelo brasileiro, em que cabe ao Supremo Tribunal Federal o papel irrenunciável da guarda e defesa da Constituição (art. 102 da Constituição de 1988). Em razão de tal previsão, afirma-se com frequência que ao STF cabe pronunciar a última palavra sobre a interpretação da Constituição. Entretanto, esse entendimento, como se tem defendido[1], não pode servir à defesa da exclusividade ou definitividade peremptórias da interpretação constitucional pelo Judiciário.

Em modelos de direito comparado, a temática dos diálogos institucionais possui campo fértil no sistema canadense, cujo grande traço distintivo é a notwithstandig clause, ou “cláusula do não-obstante”. Trata-se de previsão por meio da qual se possibilita que o Parlamento declare, por meio de um ato legislativo, que determinado ato normativo terá validade e vigência, não obstante sua colisão com algum dos direitos e liberdades fundamentais previstas na Carta Canadense de Direitos e Liberdades de 1982.

Trata-se de modelo que em alguns aspectos se assemelha à experiência brasileira que se viveu sob a égide da Constituição de 1937, conhecida como a constituição polaca. Em tal norma, tinha-se dispositivo (art. 96) pelo qual se permitia que uma lei, depois de ser declarada inconstitucional, fosse novamente submetida ao Parlamento por iniciativa do Presidente da República e em nome do “bem-estar do povo” e de “interesse nacional de alta monta”. Em caso de aprovação por quórum qualificado de dois terços em cada uma das Casas, a decisão de inconstitucionalidade restaria sem efeito, e a respectiva lei teria normal vigência e validade. O instituto possuía, assim, uma dupla função: confirmar a constitucionalidade da lei e cassar a decisão judicial impugnada.

Apesar de essa previsão no Brasil de então acabar revelando um grande esvaziamento da função do Supremo Tribunal Federal e servir como meio de centralização de poderes no Executivo (já que o Congresso Nacional não se reuniu sob a vigência do indicado dispositivo), aponta-se atualmente que desenhos institucionais como o canadense serviriam como estímulo ao debate entre os Poderes sobre a mais adequada interpretação constitucional, isto é, aos diálogos institucionais. Deveras, não há no modelo brasileiro instituto semelhante, mas o fato é que a sua ausência não acarreta o impedimento à pluralidade dos intérpretes da Constituição, tampouco implica no monopólio da última palavra pelo Judiciário.

Com efeito, em diversos casos recentes nota-se a ocorrência de um efetivo diálogo entre o Judiciário e o Legislativo brasileiros, nos quais houve uma reação do Poder Legislativo frente a pronunciamento judicial do Supremo Tribunal Federal quanto ao sentido e alcance de dispositivo da Constituição da República. Entretanto, apesar da posição mais ostensiva desses dois Poderes, revela-se também a possibilidade de que também o Poder Executivo assuma posição de relevo nesse cenário.

Dessa forma, apesar da ausência de modelos institucionais específica e explicitamente arquitetados para tais fins, em diversos casos, o pronunciamento judicial quanto à compatibilidade ou incompatibilidade de um ato normativo com a Constituição funciona como um fenômeno despertador da atenção de outros intérpretes constitucionais para um determinado tema latente, atraindo a possibilidade de reações por outros Poderes em relação ao mesmo.

Em geral, essas reações dão-se sob duas formas principais: Projeto de Lei ou Proposta de Emenda Constitucional (essa última a que seria adotada no caso), que podem se dar tanto por iniciativa legislativa ou também do Chefe do Executivo. Quando a resposta legislativa se dá via lei ordinária (iniciativas que têm sido intituladas de “leis in your face”), apesar de não se poder retirar-lhe sua presunção de constitucionalidade, nota-se uma tendência em afirmar que tal ato legislativo, se impugnado, será submetido a uma fiscalização mais rigorosa de sua constitucionalidade, visto que não se poderia aceitar, por via indireta, a modificação de norma constitucional por legislação infraconstitucional.

De outro lado, quando a atuação legislativa se dá via Emenda Constitucional, a reação parece se revelar desde logo mais robusta, afinal, altera-se o próprio parâmetro de controle. É claro que também uma Emenda pode se mostrar inconstitucional, mas, a princípio, desde que não se ofenda cláusula pétrea ou norma constitucional regente de seu processo legislativo, o diálogo institucional via alteração à Constituição se revela como mais legítimo meio de superação legislativa de decisões judiciais.

É claro que, considerada a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de emendas à Constituição, não se pode negar possam ser nulificadas as tentativas de reação, pelo que esse juízo dependerá das formulações concretas conferidas ao ato normativo. Entretanto, não se pode vedar em abstrato a possibilidade de que haja manifestações legislativas sobre as decisões judiciais, ainda que versem diretamente sobre normas constitucionais.

Trata-se, portanto, de mais um caso em que se afigura o debate sobre a possibilidade se, mesmo depois de proferida a última palavra pelo Supremo Tribunal Federal sobre a interpretação da Constituição, resta espaço para a reação de outros órgãos institucionais democráticos. De todo modo, afirma-se que no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade a última palavra do STF não encerra por completo a discussão constitucional, visto que tal decisão não vincula diretamente a futura atividade legiferante, a qual pode, nos limites da Constituição, alterar a posição inicialmente adotada pelo Tribunal.

No caso do qual se partiu — o alcance da decisão do STF sobre a exclusão dos valores relativos a ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS —, ainda não se conhece proposta de ato legislativo reativo. Entretanto, a se confirmarem os rumores, a análise de sua (in)constitucionalidade só poderá ser empreendida a depender de suas disposições. Em todo caso, deve-se primar, ab initio, por uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição[2], em que o exercício do controle de constitucionalidade e a interação institucional que dele pode decorrer deve ser elemento integrante do debate democrático, conciliando, sempre que possível, o cumprimento dos programas políticos, sociais e econômicos formulados pelos outros Poderes com a regência das disposições constitucionais.


[1] A propósito, conferir: ARABI, Abhner Youssif Mota. A tensão institucional entre Judiciário e Legislativo: controle de constitucionalidade, diálogo e a legitimidade da atuação do Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Prismas, 2015.

[2] HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.

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