Limite Penal

Como o Experimento de Rosenhan explica os laudos criminológicos

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

24 de março de 2017, 8h00

Spacca
Para quem estuda sobre a fragilidade de alguns diagnósticos psiquiátricos, o problema das avaliações psicológicas (exames de observação criminológica) feitas na execução penal e também o efeito primazia e sua influência no convencimento do juiz (importantíssimo na captura psíquica do juiz), é muito interessante o Experimento de Rosenhan.

Em apertada síntese (também pode ser encontrada uma boa síntese no site Wikipédia), o Experimento Rosenhan foi um famoso modo experimental sobre a validade do diagnóstico psiquiátrico que realizou o psicólogo David Rosenhan em 1972. Os resultados foram publicados na revista Science com o título "On being sane in insane places" ("Sobre estar sadio em lugares insanos") e pode ser lido aqui.

O estudo de Rosenhan teve duas partes. A primeira usou colaboradores sadios, chamados de "pseudopacientes", os quais simularam alucinações sonoras numa tentativa de obter a admissão em 12 hospitais psiquiátricos de cinco estados dos Estados Unidos. A segunda parte consistiu em pedir às instituições psiquiátricas que tentassem detectar os pseudopacientes. No primeiro caso, nenhum pseudopaciente foi detectado. No segundo, o hospital catalogou de impostores uma grande quantidade de pacientes reais. O estudo é considerado como uma importante crítica ao diagnóstico psiquiátrico.

No experimento, Rosenhan foi ele mesmo um pseudopaciente. Além dele, participaram três psicólogos, um pediatra, um psiquiatra, um pintor e uma dona de casa, sendo cinco homens e três mulheres. Nenhum deles tinha sido diagnosticado com problemas mentais e todos possuíam uma vida bem estabelecida. Os pseudopacientes tentaram internação em 12 hospitais diferentes. O único sintoma que eles podiam nomear era que ouviam vozes, não muito claras, falando "vazio", "oco" e "baque". Imediatamente depois da admissão, os pseudopacientes cessaram de simular qualquer sintoma, mas alguns estavam um pouco nervosos durante um curto período, pois nenhum deles achava que iria ser internado e pensavam que a sua simulação seria descoberta logo, ficando expostos como fraudadores.

Todos os pseudopacientes foram internados, 11 com diagnóstico de esquizofrenia e um com psicose maníaco-depressiva, ficando internados entre 7 e 52 dias, com uma média de 19 dias. Apesar de as equipes médicas não detectarem a simulação, 35 de 118 pacientes expressaram sua suspeita, alguns enfaticamente: "Você não está louco, você é um jornalista ou um professor universitário que está checando o hospital". Comportamentos normais, como tomar notas, foram catalogados como sintomas da doença.

Depois de feita a primeira fase, uma prestigiosa instituição desafiou Rosenhan a mandar pseudopacientes, assegurando que seriam descobertos. Rosenhan aceitou o desafio. A instituição catalogou 41 pacientes como impostores e 42 como suspeitos, sobre um total de 193 pacientes, mas Rosenhan falou que não tinha mandado nenhum…

Agora vamos transportar essa constatação para o campo da execução penal, onde os chamados exames de observação criminológicas e demais instrumentos de avaliação psicológicos são usados para verificar se o apenado tem "mérito" para progressão de regime ou obtenção do livramento condicional.

Toda e qualquer avaliação sobre a “personalidade” (seja lá o que isso significa) de alguém é inquisitiva, visto estabelecer juízos sobre a interioridade do agente. Também é autoritária, devido às concepções naturalistas em relação ao sujeito-autor do fato criminoso, além da colonização determitista, a la Lombroso, da “periculosidade”. Qualquer prognóstico que tenha por mérito “probabilidades” não pode, por si só, justificar a negação de direitos, visto que são hipóteses inverificáveis empiricamente. É uma porta aberta para o subjetivismo incontrolável e, principalmente, a manifestação de adesão aos esteriótipos e fortalecimento do estigma (de periculoso, perigoso, imprevisível, de incompatível convívio em sociedade etc.) Recordando o Experimento Rosenhan, o apenado já está "internado" e, portanto, dificilmente consegue ser visto fora da identidade deteriorada. O olhar do "avaliador" é institucionalizado e institucionalizante, sendo dificílimo romper com essa premissa.

De outro lado, com o acompanhamento da mídia e o medo de que possam praticar atos criminalizados, opera-se na lógica da aversão à desistitucionalização, justamente porque, para afirmar a cessação de periculosidade, exige-se coragem e responsabilidade ética. Logo, muito mais conveniente manter o sujeito contido e segregado[1].

Ademais, nesses laudos, em geral, podemos verificar que o superadíssimo Direito Penal do autor continua sendo aplicado, talvez fruto da dificuldade em compreender o fenômeno da secularização ou, ainda, por culpa da prisionalização que atinge a todos aqueles que atuam na execução e os impede de repensar posições ultrapassadas. Como consequência, a lógica inquisitiva continua dominando amplamente e em todos os aspectos.

A exigência contida no artigo 83, parágrafo único, do Código Penal, além de ser um diagnóstico absolutamente impossível de ser feito (salvo para os casos de vidência e bola de cristal), é flagrantemente inconstitucional, pois a única presunção que a Constituição permite é a de inocência. E, por favor, não se diga que o preso não está protegido pela presunção de inocência, porque essa permanece intacta em relação a fatos diversos daquele que ensejaram a condenação. Continua existindo, principalmente em relação a fatos futuros. Não existe base legal para prognósticos de reincidência ou, ainda, para o mofado discurso da periculosidade.

Recorda Salo de Carvalho[2] que uma das principais distinções entre o sistema inquisitivo e o acusatório-garantista se manifesta no que diz respeito à existência de possibilidades de concreta refutação das hipóteses probatórias. Não raramente encontramos em laudos — acolhidos pelos juízes — que negam o direito pleiteado aduzindo que “a personalidade é imatura, ele é mesocriminoso preponderante, possui atenção normovigil e normotenaz, orientação auto e alopsíquica, afeto normomodulado”[3], e outras pérolas que são absolutamente impossíveis de serem demonstradas e refutadas.

A lógica é a mesma demonstrada no Experimento Rosenhan, na medida em que o discurso da psiquiatria destrói qualquer possibilidade de contraditório e direito de defesa, eis que não há como refutar as hipóteses, resistir em igualdade de condições.

Na verdade, o que ocorre no processo de execução, e ninguém quer admitir, é que nosso modelo implica reducionismo sociobiológico. É um absurdo retrocesso aos conceitos lombrosianos de propensão ao delito, causas da delinquência e personalidade voltada para o crime, como muito bem identificou Salo de Carvalho.

A função do juiz fica reduzida a acolher os laudos, e com isso há a perigosa fundição do modelo jurídico com o discurso da Psiquiatria. E o perigo está no excesso de subjetivismo, pois o discurso jurídico é refutável, mas o da Psiquiatria, não. É a ditadura do modelo clínico.

Para os juízes, o papel de mero homologador de laudos técnicos é muito cômodo. Eles acabam substituindo o discurso jurídico pelo discurso da psiquiatria, tornando sua decisão impessoal, inverificável e impossível de ser contestada. Voltemos à questão da “toga-máscara” de Garapon, que permite ao juiz refugiar-se na impessoalidade da decisão.

Verifica-se de plano a nefasta substituição do Direito Penal do Fato pelo Direito Penal do Autor. Não se pune mais pelo que o apenado objetivamente fez, mas pelos diagnósticos irrefutáveis de personalidade perigosa, desviada etc. Como dissemos, não existe a menor possibilidade (salvo os casos de vidência…) de uma avaliação segura sobre a personalidade de alguém, até porque existem mais de 50 definições diferentes sobre a personalidade.

É um dado impossível de ser constatado empiricamente e tão pouco demonstrável objetivamente para poder ser desvalorado. O diagnóstico da personalidade é extremamente complexo e envolve histórico familiar, entrevistas, avaliações, testes de percepção temática e até exames neurológicos, e isso é absolutamente impossível de ser constatado por meio dos exames feitos pela CTC/EOC. Não podemos admitir um juízo negativo sem fundamentação e base conceitual e metodológica.

Enfim, é imprescindível constitucionalizar a execução penal e seus “operadores”, pois a estrutura atual é completamente inquisitória e autoritária. Não podemos pactuar com um hediondo retorno à culpabilidade do autor e pela conduta de vida. Tampouco tolerar decisões sem a devida fundamentação, que não são constatáveis empiricamente e, portanto, refutáveis. Entre as muitas garantias indevidamente sepultadas estão o contraditório e o direito de defesa. Recordemos que o fato de ter sido condenado não autoriza o Estado a subtrair-lhe todo feixe de direitos e garantias que estruturam o devido processo penal, sob pena de perigoso retrocesso à barbárie jurídica.

O Experimento Rosenhan é muito importante para compreensão dessa matéria e, principalmente, para que se abandone esse tipo de avaliação sobre a interioridade do agente.

Nunca é demais recordar que tanto a Psicologia como a Psiquiatria servem para que as pessoas possam viver melhor, para proporcionar melhor qualidade de vida aos pacientes, jamais como instrumento de punição. Mas, quando se quer manter a contenção, qualquer CID ou receio é justificativa retórica para manutenção do sofrimento e da clausura, claro, em nome da defesa social.


[1] CARVALHO, Salo de; WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. Sofrimento e clausura no Brasil contemporâneo: estudos críticos sobre fundamentos e alternativas às penas e medidas de segurança. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
[2] Pena e Garantias: Uma Leitura do Garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2001, p. 199.
[3] Os exemplos são de SALO DE CARVALHO, na obra Pena e Garantias.

Autores

  • é doutor em Direito Processual Penal, professor titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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