Senso Incomum

Cobrar impostos gera "comissão"? A Grund burocracia autopoiética

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23 de março de 2017, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Quem não se interessar pelo primeiro assunto, pode pular e ir direto para os dois PS's no final, que tratam de como eu tenho razão no caso “carne fraca” e sobre a última do juiz Sergio Moro.

Sigo. Era uma vez um povo que vivia em uma floresta. Esse povo era vegetariano; não sabia dos prazeres da carne. A falta de predadores naturais fez com que a população de porcos explodisse. Ecossistema: ausência ou fracasso de predadores resulta no aumento do elemento a ser predado. Certo dia, um incêndio, fortuito, dizimou parte da floresta, queimando muitos porcos. O povo sentiu pela primeira vez o cheiro de leitão à pururuca…! E caiu de boca. Desbragadamente.

Logo, logo, queriam mais carne assada. O que fizeram? Se você pensa que foram caçar porcos, enganou-se. Na verdade, foram incendiar mais florestas. E assim se sucedia.

Consequência: Com o tempo, as florestas escassearam. Era inexorável. Fome por carne, floresta no chão. Então alguém teve a ideia de plantar novas florestas, para que pudessem ser logo queimadas e, assim, assar mais porcos. Instituíram até um percentual de incremento para quem mais plantasse árvores e as incendiassem. Só se falava nisso. Queimar porcos queimando florestas. Mesmo assim, faltou floresta. Então, implantaram tecnologias pelas quais se plantavam árvores que cresciam mais rapidamente e, assim, mais porcos podiam ser assados…

Inventaram novos métodos de plantação de florestas. Com isso, multiplicaram o espaço plantado. E inventaram modos de queimá-las mais rapidamente. Também inventaram florestas do tipo “classe A”, que, uma vez incendiadas, já produziam porcos temperados. Suculentos. E sem colesterol. Quem não plantasse árvores, seria multado. E havia incremento para os fiscais. Para tornar o “sistema” mais eficiente.

Era incrível essa terrae florestalis. Na medida em que aumentava o consumo de porcos assados e se multiplicavam as plantações de florestas e, claro, as queimadas, também aumentou a logística e a infraestrutura daí decorrente. Criaram um sistema complexo de controle estatal do plantio de árvores, das queimadas, dos impostos sobre os porcos, da venda de fósforos, tochas, emissão de moeda, etc. Claro. Aumentava a demanda por porcos assados e a quantidade de florestas incendiadas se multiplicava. E o “Estado-Floresta” foi se complexizando. Siglas e mais siglas. Criaram controladorias, corregedorias, polícias (de vários tipos), ministérios públicos, juizados (comuns e especiais), tribunais, defensorias, TC’s (Us, Es e Ais…), agências reguladoras. Muitas procuradorias. Da Fazenda, do Estado, etc. O Estado-Floresta aumentava, dia a dia, a sua máquina. Tudo para controlar esse “sistema”, que, na verdade, quanto maior, menos funcionava.

Um dia chegou um estrangeiro em terrae florestalis e, perplexo com essa mega-estrutura, perguntou: por que até hoje não construíram churrasqueiras para assar os porcos? Para que tudo isso? Ao que um dos terraflorestalensis respondeu, limpando o bigode encharcado de gordura do porco com um finíssimo guardanapo fabricado por uma sucursal — estatal — que fabricava suplementos: “ — Churrasqueira? É obvio que todos sabemos disso. Se construíssemos churrasqueiras, o que faríamos com toda essa estrutura? Tolinho”.

Escrevo isso para tentar demonstrar, metaforicamente, o que a autopoiética burocracia construiu no país, ao ponto de os fiscais de tributos receberem um percentual daquilo que arrecadarem. Bingo. Claro que a ideia não é nova. Isso já existia no Brasil colônia. Chamavam-se contratadores de tributos. Nada de novo, portanto.

E o caldo do “sistema” entornou quando surgiu um paradoxo, que explico na sequência. Com efeito, o artigo 5º da MP 765 instituiu

“o Programa de Produtividade da Receita Federal do Brasil e o Bônus de Eficiência e Produtividade na Atividade Tributária e Aduaneira, com o objetivo de incrementar a produtividade nas áreas de atuação dos ocupantes dos cargos de Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil e de Analista-Tributário da Receita Federal do Brasil”.

Tudo muito claro. Transparente. Nada feito à socapa. A MP não tenta esconder nada. Ela estabelece que os servidores da Receita terão aumento de remuneração (não importa o nome, é disso que se trata) de acordo com a produtividade. Mais cobranças, mais multas, mais salário. A questão é que os servidores em tela já são pagos exatamente para fazerem esse tipo de serviço! Ou não?!

Não preciso fazer uma análise técnica de mérito, ficando, por ora, com o parecer da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB que avaliou que o “bônus de eficiência” pago a auditores fiscais é inconstitucional. Voltarei a esse assunto em breve.

Mas, alguém pergunta: professor, onde está o tal “paradoxo”? Em que lugar o “sistema” se autodetona? Respondo: Simples. Um servidor da própria Receita levantou a lebre, talvez sem se dar conta de que poderia estar explodindo o “sistema”. Isto porque, segundo a Lei 9.784/99, o servidor público que tiver interesse, direto ou indireto, na matéria tratada no processo administrativo fica impedido de atuar nele. Com base nessa regra, um auditor fiscal que atua em alfândega disse não ter imparcialidade para elaborar parecer analisando auto de infração de perdimento de mercadorias devido ao seu interesse em receber “bônus de eficiência”.

Logo, conclui-se que, em tendo razão o referido auditor, o “sistema de arrecadação” terraebrasiliensis terá que criar uma nova estrutura, com outra classe de servidores que possam elaborar os laudos sem que tenham interesse no seu resultado. Igual ao que ocorreu em terraeflorestalis para controlar os insumos da queima de florestas. É mais ou menos como se todos os procuradores do estado se recusassem a elaborar parecer pedido pelo governador e este tivesse que contratar um escritório de advocacia para o defender. Simples assim.

A máquina pública se autorreproduz. Cria novas necessidades. Birô-cracia (a força do cara atrás da mesa). Basta ver o tamanho dela. Controladorias que controlam não se sabe o que, que por sua vez nada tem a ver com as procuradorias, que igualmente nada sabem ou podem fazer em relação ao que ocorre no âmbito dos tribunais de contas, agências reguladoras que não fiscalizam e protegem o interesse das grandes corporações que prestam serviços públicos, agentes de fiscalização que não fiscalizam e se beneficiam das burocracias do próprio sistema e assim por diante.

Como fica o contribuinte que tem de pagar um plus para quem o multa e arrecada os tributos, quando o sistema não consegue e quem denuncia isso é um auditor lhe fornecer um servidor isento para atuar nos processos administrativos sobre autos de lançamento? Por isso, logo surgirá uma Medida Provisória criando a categoria dos avaliadores dos autos-laudos de lançamentos feitos por quem tem percentual de incremento mas-não-tem-isenção-porque-possuem-direto-interesse (de novo: não fui eu quem disse isso; foi um auditor em parecer). Esta nova categoria de servidores, na sequência, receberá, isonomicamente, a contribuição já paga atualmente (afinal, avaliadores de laudos não podem receber menos do que os que autuam), o que fará com que se crie uma outra novíssima categoria, a dos avaliadores dos avaliadores, que, logo, por ação judicial, receberão equiparação também. Resultado: a criação de cargos até que, finalmente, alcancemos uma função ou cargo fundamental, algo como a metáfora da Grundnorm kelseniana, isto é, um Grund-avaliador-elaborador-de-laudos-dos-laudos-dos-laudos, algo como o fundamento último da metafisica: o fundamentum inconcussum absolutum veritatis (ou o Trilema de Münshausen). Além disso, deverá ser criado um Carf 2, já que ao que consta alguns julgamentos estão suspensos em face desse imbróglio.

Falando em Carf, a coisa vai longe. Com efeito, na ânsia de proteger os auditores fiscais que atuam como conselheiros, o Carf correu para publicar a Portaria 01/2017, que “declara” o “alcance” dos impedimentos regimentais, aplicando “exclusivamente aos conselheiros da representação dos contribuintes” (sic) os impedimentos decorrentes de “interesse econômico ou financeiro, direto ou indireto” (sic). Katchanga real! Tirambaço! Nada como uma portaria para alterar o mundo. Poderiam aproveitar para fazer uma portaria para dobrar o percentual que pagamos de imposto de renda. Ou proibir a febre amarela. Katchanga por katchanga… qual é a diferença? Por que será que não ganhamos o Prêmio Nobel?

Vejam: nem é preciso fazer juízo de valor para falar do assunto. Basta ler o parecer do auditor que se deu por suspeito. Dou credibilidade a ele. Por que não acreditar no que disse o auditor de Campinas? Ele é insuspeito (sem trocadilho).

E peço que tudo isso seja avaliado a partir da metáfora dos queimadores de florestas. A metáfora serve também para a multiplicação de faculdades, de tribunais, da burocracia em geral, do surgimento de cursinhos, pós-graduações, congressos, seminários, coaching e assim por diante.

Por fim, um juízo de valor: se esse tipo de benesse pode ser alcançado aos fiscais e auditores, por qual razão não estender isso aos guardas de trânsito (receber percentual das multas aplicadas), aos policiais por prisões efetuadas, aos inspetores por inquéritos, aos promotores por denúncias, aos juízes por sentença (condenatória, é claro), aos professores de universidades privadas por reprovação de alunos, aos legislativos por produção de projetos de lei aprovados … E o que mais? Cartas para a Coluna.

PS1: Golaço da associação dos delegados federais
Modéstia à parte, este escriba não prega prego sem estopa. Leio que a associação dos delegados federais criticou a pirotecnia na divulgação da operação “carne fraca”. E a associação dos peritos também. Isso é para mostrar para o baixo clero epistêmico (cujo raciocínio é da profundida dos calcanhares de uma formiga anã)[1] que, raivosamente, atacou meu artigo sobre o assunto, porque me preocupei com os prejuízos que foram causados ao país. Os delegados da associação nacional — a quem dou os parabéns — fizeram o que o Ministério Público Federal deveria ter feito, em vez de só publicar uma nota.

PS2: Sergio Moro nos braços do Estado de Exceção ou “Cala boca já morreu”
Leio, estupefato, que o juiz Sergio Moro, contrariando a Constituição Federal e a posição vinculante do STF, determinou a busca e apreensão de laptop de blogueiro (mais celulares), além de, surpreendendo-o, determinado a sua condução coercitiva. A notícia é autoexplicativa. Por vezes, é difícil falar sobre determinados assuntos. Deixo para a associação dos jornais fazer as críticas. Moro pode estar mordendo a mão que sempre o alimentou. Terá que prestar contas, agora, também aos veículos de comunicação. Que, como se sabe, presam muito o sigilo da fonte. Assim como o STF. Liberdade de imprensa é tão sagrada que a presidente do STF disse, em um julgamento sobre o tema: “Cala a boca já morreu”. Corretíssima a presidente Cármen Lúcia! Corretíssima! Moro não tem lido os acórdãos do STF sobre o assunto.

PS3: 50 Tons de Cinza MP-RN Só questões
Enquanto o país arde, o ensino de cursinho vai de vento em popa (MP, no caso, acredito ser Ministério Público; ou seria Medida Provisória?). Vejam o anexo. Depois dizem que é implicância minha com a forma como alguns cursinhos “agridem o mercado”. Quando o réu não se ajuda… o que fazer?


[1] Os comentaristas Paulo Henrique Costa e Macaco & Papagaio esgotaram o assunto em dois breves comentários sobre os comentários. Bingo!

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