Direito Civil Atual

Capitalização anual em mútuo: presunção de incidência ou necessidade de pactuação?

Autor

  • Marco Aurélio Buzzi

    é ministro do Superior Tribunal de Justiça professor de processo civil mestre e especialista em ciências jurídicas e métodos de resolução de conflitos.

20 de março de 2017, 8h28

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Em sessão de julgamento no dia 8 de fevereiro de 2017, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça — órgão colegiado responsável pelo julgamento de temas afetos ao direito privado — enfrentou mais uma questão de especial relevância e com enorme impacto social e econômico, além de consubstanciar temática presente em um grande número de processos judiciais: a necessidade ou não de prévia e expressa pactuação para que seja possível a cobrança da capitalização anual de juros nos contratos de mútuo. É com a análise deste acórdão que inicio minha participação na coluna Direito Civil Atual, coordenada pela Rede de Direito Civil Contemporâneo.

Referido tema foi objeto do Recurso Especial 1.388.972/SC, submetido ao rito dos recursos repetitivos, porquanto identificada a multiplicidade de questão de direito nele veiculada, fazendo-se possível a afetação nos termos do caput do artigo 1.036 do Código de Processo Civil[1], a fim de conceder efeito vinculante ao precedente a ser firmando no âmbito de seu julgamento pela Seção de Direito Privado.

O caso subjacente ao recurso especial referia-se a demanda constitutiva negativa (“ação revisional” de contrato bancário), ajuizada por microempresa, com o objetivo de declarar a nulidade, bem assim modificar cláusulas constante dos contratos de mútuos bancários firmados entre as partes, notadamente quanto à taxa de juros remuneratórios, capitalização e comissão de permanência.

O acórdão estadual, proferido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, mantivera a sentença de parcial procedência dos pedidos veiculados na demanda, que havia limitado a taxa de juros à média de mercado para alguns contratos, afastado a capitalização de juros, assim como permitido a cobrança de comissão de permanência, desde que sua importância não ultrapassasse a soma dos encargos remuneratórios e moratórios previstos nos contratos.

Assim, a insurgência veiculada nas razões do recurso especial interposto pelo réu HSBC Bank Brasil S/A – Banco Múltiplo consistiu nas seguintes teses: a) a legalidade da capitalização mensal e anual de juros, essa independentemente de expressa pactuação, sob o argumento de ser admitida pelo artigo 4º do Decreto 22.626/33 (“Lei de Usura”) e artigo 591 do Código Civil[2]; b) a impossibilidade da repetição de indébito, seja na forma simples seja em dobro; c) necessidade de afastamento da multa prevista no artigo 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil de 1973.

Embora houvesse multiplicidade de insurgências, relativas a capítulos distintos constantes do acórdão impugnado, apenas aquela identificada no item “a” foi afetada como repetitiva, formando o Tema 953, a saber: “a cobrança de juros capitalizados em periodicidade anual nos contratos de mútuo é permitida quando houver expressa pactuação”.

Após a apresentação de manifestações pelos amici curiae, neste caso, da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e da Defensoria Pública da União (DPU), bem assim do representante do Ministério Público Federal, o Recurso Especial 1.388.972/SC foi submetido à apreciação da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, que, por unanimidade[3] e para fins do artigo 1.036 do Código de Processo Civil, firmou a seguinte tese: “A cobrança de juros capitalizados nos contratos de mútuo é permitida quando houver expressa pactuação”.

Inicialmente, consignou-se que a capitalização dos juros, juros compostos, juros frugíferos, juros sobre juros e anatocismo constituem variações linguísticas para designar um mesmo conceito jurídico-normativo em oposição ao conceito de juros simples. Trata-se, assim, de fenômeno por meio do qual os juros incorporam-se ao principal, constituindo a base de cálculo para incidência de novos juros.

Após breve digressão histórica quanto à legislação pátria, especificamente no que concerne à temática em apreço, firmou-se a premissa de que a existência de uma norma permissiva é requisito necessário e imprescindível para a cobrança do encargo da capitalização, porém, não é suficiente, pois deve estar atrelado ao expresso ajuste entre as partes contratante, principalmente em virtude dos princípios da liberdade de contratar, da boa-fé e da adequada informação.

Ressaltou-se, outrossim, que, sendo pacífico o entendimento de que a capitalização inferior à anual depende de pactuação[4], outra não pode ser a conclusão em relação àquela em periodicidade ânua, sob pena de ser a única modalidade do encargo a incidir de maneira automática no sistema financeiro, embora inexistente qualquer determinação legal neste sentido, pois o artigo 591 do Código Civil apenas permite a capitalização e não determina a sua aplicação automaticamente.

Desse modo, consignou-se que a capitalização, seja em periodicidade anual ou ainda com incidência inferior à ânua, não pode ser cobrada sem que tenham as partes contratantes, de forma prévia e tomando por base os princípios basilares dos contratos em geral, assim acordado, pois a ninguém será dado negar o caráter essencial da vontade como elemento do negócio jurídico, ainda que em contratos de adesão.

Referida interpretação vai ao encontro dos ditames afetos à defesa/proteção ao consumidor, notadamente do artigo 47 do Código de Defesa do Consumidor (“As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”) e, ainda, do disposto no próprio Código Civil de 2002, o qual preleciona no artigo 423, que: “quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a intepretação mais favorável ao aderente.

Por estas razões, concluiu a 2ª Seção, nos termos do voto condutor, que, em não havendo expressa pactuação do encargo, cobrança da capitalização anual fica obstada. Isso porque, a partir da simples leitura dos preceitos legais incidentes à espécie (art. 591 do Código Civil e artigo 4º do Decreto 22.626/1933), só se permite inferir que que os contratantes possam assentir/concordar com o pacto de capitalização anual. Tais dispositivos não afirmam, sequer implicitamente, que a cobrança do encargo possa se dar automaticamente, ou seja, não determinam que a arrecadação seja viabilizada por mera disposição legal (ope legis), pois se assim fosse teriam os julgadores o dever de, inclusive de ofício, determinar a incidência do encargo, ainda que ausente o pedido das partes.

Com efeito, a capitalização de juros, embora permitida em inúmeros diplomas normativos em periodicidades distintas (mensal, semestral, anual), não tem incidência automática; e não é pela circunstância de a lei autorizar a sua cobrança que será imposta, involuntariamente, ao mutuário.

O acórdão proferido pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça no âmbito do julgamento do Recurso Especial 1.388.972/SC, dada a multiplicidade de processos judiciais em que veiculada a mesma controvérsia jurídica, afigura-se de inegável importância para consolidação do entendimento do referido Tribunal Superior acerca de tema de grande impacto social e econômico, traduzindo a missão constitucional a ele atribuída, isto é, a uniformização da interpretação da legislação infraconstitucional.

Efetivamente, tendo o acórdão sido proferido no âmbito de recurso repetitivo, nos termos do artigo 1.036 do Código de Processo Civil combinado com o disposto no artigo 927, inciso III, do Código de Processo Civil, a tese nele firmada será observância obrigatória para os juízes e tribunais, o que certamente contribuirá para a celeridade na tramitação de processos que envolvam a referida matéria, bem assim à segurança jurídica.

Ademais, para além da consolidação jurisprudencial de um importante tema, que atinge uma quantidade indistinta de pessoas, a Seção de Direito Privado do Superior Tribunal de Justiça, ao enfrentar a citada controvérsia, deixou em evidência a necessidade de observância aos princípios informadores do direito contratual atual, salientando a importância da transparência e da adequada informação, corolários do princípio da boa-fé objetiva, no âmbito das relações privadas.

Efetivamente, a adoção de interpretação que conduzisse à presunção legislativa da incidência de capitalização anual, nos contratos de mútuo, não se mostraria consentânea com o sistema contratual e consumerista vigentes, segundo o qual o consumidor ou aderente, ao contratar, deve ter o alcance das repercussões econômicas avençadas com a instituição financeira, sob pena de se contrariar, inclusive, o princípio da boa-fé objetiva.

Por fim, almeja-se que a presente resenha seja, de fato, útil aos leitores da presente coluna, bem assim que represente, de alguma forma, uma contribuição para as discussões relativas ao Direito Civil contemporâneo.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[1] Art. 1.036.  Sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito, haverá afetação para julgamento de acordo com as disposições desta Subseção, observado o disposto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e no do Superior Tribunal de Justiça.
[2] Art. 4º. É proibido contar juros dos juros: esta proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta corrente de ano a ano.
Art. 591. Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual.

[3]  O acórdão ainda se encontra pendente de publicação. Além da tese repetitiva, no caso concreto, a Seção, por unanimidade, deu parcial provimento ao recurso especial, apenas para afastar a multa imposta no julgamento dos embargos de declaração.
[4]  Nos termos da Súmula 539 do Superior Tribunal de Justiça, “É permitida a capitalização de juros com periodicidade inferior à anual em contratos celebrados com instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional a partir de 31/3/2000 (MP 1.963-17/00, reeditada como MP 2.170-36/01), desde que expressamente pactuada”.

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