Processo Familiar

A perpetuação do calvário para a cobrança dos alimentos no CPC

Autor

  • Maria Berenice Dias

    é advogada vice-presidente do IBDFAM e integrante da Comissão de juristas instituída Senado para elaborar proposta de atualização do Código Civil.

19 de março de 2017, 8h00

A obrigação alimentar decorrente das relações familiares pode ser assumida espontaneamente — aliás, como deveria ser sempre — e formalizada em juízo ou extrajudicialmente.

Cônjuges e companheiros podem convencionar alimentos a favor de qualquer um deles e dos filhos — ainda que incapazes — em documento particular. Para garantir sua exigibilidade em juízo, dito documento precisa transformar-se em título executivo extrajudicial: ser assinado pelas partes e por duas testemunhas (CPC 784 III); ou ser referendado por Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia Pública, advogados dos transatores ou por conciliador ou mediador credenciado por um tribunal (CPC 784 IV).

Para ensejar a cobrança judicial dos alimentos assim fixados, o credor pode buscar a execução fazendo uso do rito da coação pessoal (CPC 911 parágrafo único) ou via execução por quantia certa (CPC 824). A circunstância de serem beneficiados incapazes não compromete nem a validade do documento nem a exigibilidade da dívida.

A busca da homologação judicial é dispensável, face a similitude das vias executórias disponíveis aos títulos judiciais e extrajudiciais.

O divórcio consensual pode ser levado a efeito por escritura pública (CPC 733). No mesmo instrumento, é possível a previsão de alimentos a favor de um dos cônjuges e dos filhos maiores e capazes. Havendo filhos menores de idade, incapazes ou nascituro, necessariamente, o divórcio depende de homologação judicial (CPC 731). A exigência é absurda, porque os alimentos em prol dos descendentes incapazes podem já estarem estabelecidos. Ainda assim é imposta a forma pública para a formalização do divórcio.

Os alimentos ali previstos são títulos executivos judiciais (CPC 515), a ensejar a cobrança via cumprimento de sentença, que autoriza a ameaça de coação pessoal e a expropriação de bens (CPC 528).

Quando se trata de união estável, mesmo existindo filhos incapazes, sua dissolução não precisa ser formalizada e muito menos levada à homologação judicial (CPC 732) ou referendo oficioso (CPC 784 IV). O encargo alimentar a favor dos filhos é que precisa ser formalizado, para garantir eventual cobrança.

Seja qual for a forma de constituição do encargo alimentar — judicial ou extrajudicial —, havendo mora, o adimplemento pode ser exigido por qualquer dos meios executórios (CPC 528 e 911): prisão do devedor ou expropriação de seus bens. Tudo vai depender da quantidade de parcelas vencidas e não pagas. O débito acumulado superior a três prestações não comporta execução pelo rito da coação pessoal (CPC 528, parágrafo 7º).

Quando o encargo alimentar dispõe da chancela judicial, o inadimplemento enseja a incidência de multa moratória de 10% e verba honorária em igual percentual (CPC 523, parágrafo 1º). O marco inicial de incidência desses acréscimos é a data da intimação do devedor, na pessoa do seu advogado ou pessoalmente, pela via postal, com Aviso de Recebimento – AR (CPC 513, parágrafo 2º, I e II).

De modo para lá de injustificável, em sede de execução de título executivo extrajudicial que estabelece encargo alimentar, a lei remete à execução por quantia certa (CPC 913 e 824), em que não há previsão de multa, somente de honorários advocatícios de 10% (CPC 827). E, caso haja o pagamento no prazo de três dias, o valor dos honorários é reduzido pela metade (CPC 827, parágrafo 1º). Ora, a redução dos honorários é um desestímulo para que as partes — ou seus advogados – formalizem o divórcio, a dissolução da união estável ou estabeleçam obrigação alimentar extrajudicialmente. Com isso, perde-se a chance de aliviar o Poder Judiciário. Tudo acaba na Justiça.

No cumprimento de título executivo judicial, o réu ou o procurador que o representa (CPC 513, parágrafo 2º, I) é intimado, para, no prazo de 15 dias, pagar o montante atualizado do débito acrescido de multa de 10% e verba honorária de 10% (CPC 523, parágrafo 1º).

Buscada a cobrança pela via da coação pessoal, o réu deve ser citado pessoalmente, via postal, para em três dias pagar o crédito executado, provar que já pagou ou justificar a impossibilidade de pagar. Não ocorrendo o pagamento ou não aceita a justificativa apresentada, é expedido mandado de prisão. Durante o período de aprisionamento, prossegue a execução expropriatória, com a penhora e avaliação dos bens indicados pelo credor (CPC 530 e 829, parágrafo 2º). A dívida é acrescida do valor da multa e dos honorários, sobre as parcelas executadas e todas as que se vencerem até a data do pagamento (CPC 528, parágrafo 5º).

Para se livrar dos encargos moratórios, o devedor deve depositar judicialmente o quantum cobrado (CPC 520, parágrafo 4º e 523, parágrafo 1º), enquanto questiona o valor da dívida, por meio de justificativa, impugnação ou embargos à execução. Como se trata de dívida alimentar, o credor pode proceder ao levantamento dos valores incontroversos.

Quer os alimentos tenham sido fixados liminarmente, quer na sentença final ainda sujeita a recurso, pretendendo o credor buscar sua cobrança “desde logo”, precisa abrir mão da possibilidade de prisão do executado (CPC 528, parágrafo 8º). Ainda que o título não seja líquido certo e exigível, a execução segue o rito do cumprimento definitivo (CPC 523).

Como a interposição de eventual recurso não dispõe de efeito suspensivo (CPC 1.012 II), o cumprimento da sentença pode ser buscado tão logo ocorra sua publicação (CPC 1.012, parágrafo 2ª). Caso o valor do encargo venha a ser diminuído ou afastado — quer na sentença, quer em sede recursal —, é de todo descabido livrar o devedor da obrigação de proceder ao pagamento das parcelas que se venceram nesse ínterim. Emprestar efeito retroativo à redução ou à exoneração levada a efeito, pelo fato de os alimentos não serem definitivos, só estimularia o inadimplemento e a eternização da demanda.

Buscada a cobrança pela via da coação pessoal, para o devedor livrar-se da prisão, deve pagar o valor atualizado da dívida objeto da execução e as demais parcelas vencidas até a data do pagamento (CPC 528, parágrafo 7º). O tema encontra-se inclusive sumulado (Súmula 309 do STJ).

No entanto, na prática mais do que consolidada, o devedor livra-se da prisão mediante o pagamento das parcelas alimentares que constam no demonstrativo discriminado e atualizado apresentado pelo credor (CPC 524). Porém, quando do cumprimento da ordem de prisão, já se venceram novas prestações, e o demonstrativo do crédito, que acompanha o mandado de prisão, está desatualizado.

Acaba o credor por apresentar novo demonstrativo, requerendo novamente a prisão do devedor. Antes o juiz dá vistas ao devedor do novo cálculo e, eventualmente, manda o processo para o contabilista do juízo (CPC 524, parágrafo 2º).

E se nesse ínterim transcorreram mais de três meses, o credor acaba optando por ingressar com nova execução. E mais uma, e mais uma a cada três meses.

O fato estarrecedor é que existe um número de prestações que integram a condenação, não são pagas, e o devedor não é preso!

De nada adianta a lei dizer que, para se livrar da prisão o devedor precisa pagar não só a dívida objeto da cobrança, mas também todas as prestações que se vencerem até a data do efetivo pagamento (CPC 828, parágrafo 8º). O réu livra-se da prisão apresentando ao oficial de Justiça comprovante de pagamento das três parcelas que se venceram antes da propositura da execução, conforme demonstrativo do débito apresentado pelo credor. Essa “garantia” do devedor não tem previsão legal. Trata-se de construção jurisprudencial viciosa, que precisa ser revertida em benefício do credor. Além do valor constante do mandado de prisão, referente aos meses executados, o devedor precisa apresentar ao oficial de Justiça o comprovante do pagamento das prestações objeto da cobrança e mais das que se venceram até aquele momento. Sem essa prova, o pagamento é parcial e não afasta a prisão.

Quem sabe outra solução seria já constar no demonstrativo do crédito uma projeção das prestações vincendas. Caso o credor não apresentar o valor discriminados das parcelas alimentares futuras, cabe ao juiz determinar a sua retificação. Claro que os índices de atualização são variáveis, mas, ao menos o valor do principal, até o dia do pagamento será atendido.

Desse modo, o réu é citado para pagar o valor devido à data do pagamento, conforme a projeção constante no demonstrativo que acompanha o mandado de citação.

Ou isso, ou vai se perpetuar o calvário para a cobrança da obrigação de maior significado que existe: a que garante o direito à vida.

Autores

  • Brave

    é advogada especializada em Direito de Família, das Sucessões e Homoafetivo, além de vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!