Opinião

O direito dos cabos à concessão de anistia política e reparação econômica

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12 de março de 2017, 6h55

No dia 24 de fevereiro, foram publicados 50 indeferimentos de pedidos de anistia formulados por antigos cabos que serviram a Força Aérea Brasileira durante o período do regime militar (páginas 60 a 62 do Diário Oficial da União). Esses cabos ingressaram nas Forças Armadas antes de 12/10/1964 e foram licenciados de forma abrupta com base na Portaria 1.104/64 da mesma data, considerado ato de exceção de natureza política.

Todas as portarias de indeferimento foram assinadas pelo ministro interino da Justiça e Segurança Pública, responsável pela pasta até que seja nomeado o titular desse cargo. Esses resultados chamam a atenção, pois a Comissão de Anistia havia proferido acórdãos favoráveis aos respectivos pedidos. Em regra, após parecer favorável da Comissão de Anistia, o ministro de Estado da Justiça concede a reparação econômica (artigo 3º, parágrafo único, da Lei 10.559/02).

Segundo disposição legal, cabe ao ministro da Justiça a decisão final quanto aos pedidos de anistia (artigo 10 da Lei 10.559/02). Na mesma lei, está prevista a competência da Comissão de Anistia para examinar todos os requerimentos administrativos mediante a realização de diligências, aferição de provas, requisição de informações, análise de documentos, oitiva de testemunhas, emissão de pareceres técnicos e arbitramento dos valores de indenização (artigo 12 e parágrafos da Lei 10.559/02).

Dito de outro modo, em se tratando de requerimentos de anistia política, a última palavra é do ministro da Justiça, mas todas as demais são da Comissão de Anistia. Portanto, não pode o ministro da Justiça simplesmente impor a prevalência de seu entendimento pessoal sobre a orientação adotada pelo colegiado da Comissão de Anistia, a menos que o faça com base em substancial amparo jurídico que o autorize a adotar essa solução divergente.

Não foi o que aconteceu nos casos aqui analisados. Na verdade, para tentar justificar a utilização de entendimento contrário àquele recomendado pela Comissão de Anistia, o ministro da Justiça utilizou um antigo parecer da AGU (Parecer 106/2010/DECOR/CGU/AGU). Esse parecer apenas expressa o entendimento da Advocacia-Geral da União, naquele específico momento, no sentido de que o licenciamento dos cabos da Força Aérea Brasileira não teria caráter político.

Contudo, a AGU não é o órgão responsável por analisar os pedidos de anistia política. Como visto acima, essa responsabilidade recai sobre a Comissão de Anistia, que possui a incumbência legal de assessorar o ministro de Estado da Justiça nos assuntos relacionados aos pedidos de anistia política.

Por sua vez, a Comissão de Anistia possui sólida convicção quanto à perseguição política perpetrada contra os antigos cabos. Esse entendimento foi adotado após a análise de vários documentos sigilosos da Aeronáutica. Tais documentos demonstraram que a cúpula da Força Aérea Brasileira estava convencida do caráter subversivo dos cabos e elaborou um plano para expulsá-los, concretizado com a edição da Portaria 1.104/64. Essa convicção da Comissão de Anistia está estampada na vigente Súmula Administrativa 2002.07.0003, que dispõe o seguinte:

“A Portaria n.º 1.104, de 12 de outubro de 1964, expedida pelo Senhor Ministro de Estado da Aeronáutica, é ato de exceção, de natureza exclusivamente política”.

Por meio do Ofício 678/2008 enviado ao Tribunal de Contas da União, o presidente da Comissão de Anistia à época, Paulo Abraão, defendeu a legalidade das anistias concedidas aos cabos:

“Assim, a motivação exclusivamente política do licenciamento de diversos militares da Força Aérea Brasileira encontra-se na edição de algumas normas do período, considerando os fatos da época, tinham como motor a perseguição daqueles considerados suspeitos de práticas revolucionárias dentro da Aeronáutica, onde principalmente os Cabos se organizavam em instituições, as quais a de maior notoriedade foi a ACAFAB – Associação dos Cabos da Força Aérea Brasileira”.

A análise feita pelo presidente da Comissão de Anistia foi corroborada pela Nota AGU/CGU/ASMG 01/2011. Veja-se, portanto, que a mesma Advocacia-Geral da União concordou com o caráter político da perseguição cometida contra os antigos cabos da FAB, conforme se verifica abaixo:

“Por isso, os focos de insurreição, supostamente identificados com o regime deposto, foram objeto de intensa perseguição. Os cabos amotinados no Rio de Janeiro, bem como os que tomaram o Aeroporto de Brasília, por exemplo, teriam sido alvos da Portaria nº 1.104-GM3, de 1964, do Ministro da Aeronáutica” (sublinhas aditadas).

A preocupação da Aeronáutica com a mobilização dos cabos foi exposta em expedientes reservados. A motivação política da perseguição aos cabos é objeto do Ofício Reservado 04, de setembro de 1964, editado pelo Estado-Maior da Aeronáutica, em que se consignou:

“Vários dos fatores anteriormente relacionados explicam até a recente tentativa de muitos em organizarem-se em Associações de caráter civil, para assim pleitearem, mais ao abrigo de sanções disciplinares, os benefícios legais que almejam valendo-se por instinto de políticos. Nesse caso ao mesmo tempo em que pleiteiam favores, ficam sujeitos à exploração de demagogos ou agitadores que pretendem cavar dissenções nas Forças Armadas, com incitamentos direitos ou indiretos à indisciplina para imobilizarem a ação dos chefes militares ou atrasarem-na, enquanto manobram para a posse do Poder” (sublinhas aditadas).

Como se pode observar, o comando da Aeronáutica temia o potencial subversivo do movimento dos cabos e, por esse motivo, engendrou a perseguição política à categoria, especialmente por meio da exclusão ou licenciamento dos cabos de suas fileiras. Mais um expediente reservado, o Boletim nº 21, de maio de 1965, evidencia de forma ainda mais clara a perseguição política à categoria dos cabos:

“Neste Inquérito Policial Militar, instaurado por solicitação do Comando da Base Aérea de Santa Cruz, foram apuradas as atividades subversivas da entidade denominada ‘Associação dos Cabos da Força Aérea Brasileira’ (ACAFAB). Os fatos apurados atestam que a entidade: foi criada sem autorização do Ministério da Aeronáutica; vem utilizando indevidamente o nome da Força Aérea Brasileira; que sua Diretoria tomava parte ativa em reuniões em atividades subversivas; que desenvolvia atividades ilícitas, contrárias ao bem público e a própria segurança nacional; que, através de reuniões subversivas na entidade era tramada a deposição de ex-Presidente da República e seguidas, in totem, as teses contrárias ao regime, do então Deputado Leonel Brizola; que teve participação direta nos acontecimentos subversivos, que foram levados a efeito no Sindicato dos Metalúrgicos; 'A Associação dos Cabos da Força Aérea Brasileira', registrada sob esse título, contrariando as Autoridades do Ministério da Aeronáutica, deverá ter seu registro, como pessoa jurídica, cassado mediante AÇÃO JUDICIAL INTENTADA pelo Ministério da Aeronáutica; uma vez que essa denominação – 'DE CABOS DA FORÇA AÉREA BRASILEIRA' – envolve o nome da corporação e se presta a explorações políticas. É recomendável que sejam tomadas medidas para prevenir que se organizem outras entidades, de caráter tendencioso como a 'ACAFAB' e a 'CASA DOS CABOS DA AERONÁUTICA DE SÃO PAULO', associação de caráter civil organizada por graduados da Força Aérea Brasileira, que devem ser mantidas sob vigilância para evitar que se degenerem. Tendo ficado evidenciada no decorrer deste IPM a prática de transgressões disciplinares, face ao relatório fls. 574, usque 584, resolvo:

1º) Aplicar a punição de expulsão aos seguintes Cabos: (…);

Ainda, imponho a pena disciplinar de 30 (trinta) dias de prisão aos militares abaixo discriminados (… ) Determino, outrossim, a Diretoria Geral do Pessoal da Aeronáutica que atente com especial cautela para a conduta dos Cabos, cujos nomes constam das relações de fls. 35, 122 a 124, 126 a 140, 364 a 365” (grifos do original).

Dessa forma, infere-se que o Ofício Reservado 04 e o Boletim Reservado nº 21 não deixam dúvidas sobre a motivação exclusivamente política nas expulsões, desligamentos e licenciamentos ex officio de cabos. A motivação política da Aeronáutica resultou na edição das Portarias 1.103 e 1.104, entre outros atos de perseguição. A Portaria 1.103/64 determinou o afastamento de 11 cabos identificados como os líderes do movimento subversivo no âmbito da FAB.

Porém, o comando da Aeronáutica não se contentou com a perseguição aos líderes dos cabos. A perseguição foi estendida a toda a categoria por meio da edição da Portaria 1.104/64. A esse respeito, vale mais uma vez citar o Ofício 678/2008 do presidente da Comissão de Anistia:

“Assim, não se pode deixar de ressaltar que as atividades exercidas pela Associação dos Cabos da Força Aérea Brasileira – ACAFAB, sem dúvida, representaram um grande obstáculo às autoridades militares golpistas, conforme se comprova pelos ofícios reservados citados acima, e em consequência a esta constatação a edição de uma norma (de estrutura formal, que apresentava em seu bojo amplos poderes de liberalidade o que lhe afastou o caráter discricionário) que desmobilizasse essa classe militar, foi certamente a opção considerada. […]

Sob este contexto, foi elaborada a Portaria nº 1.104/64, um dos elementos do conjunto de atos procedimentais realizados pela Força Singular, para operacionalizar o afastamento de todos aqueles aos quais não se conseguiu atingir por meio do inquérito policial que culminou na Portaria n° 1.103/64, de forma nominativa” (sublinhas aditadas).

O próprio ministro de Estado da Justiça, ao encaminhar ao presidente da República o projeto da Medida Provisória 2.151/2001, convertida na Lei 10.559/2002, cuidou, na Exposição de Motivos 146/MJ, de 13 de abril de 2000, de explicitar a motivação política da Portaria 1.104/64:

“A Reparação Econômica em Prestação Permanente e Continuada é assegurada aos anistiados políticos demitidos, licenciados, desligados, expulsos ou de qualquer forma compelidos ao afastamento de suas atividades profissionais remuneradas, abrangendo ainda àqueles que foram impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional específica, em decorrência das Portarias Reservadas do Ministério da Aeronáutica nº S-501-GM5, de 19 de junho de 1964 e nº S-285-GM5 e pela Portaria n. 1.104 do mesmo Ministério de 12 de outubro de 1964, que se fundamenta no ofício reservado nº 04, de setembro de 1964, e pela Exposição de Motivos n. 138, de 21 de agosto de 1964” (sublinhas aditadas).

No Senado Federal, o texto da Medida Provisória 2.151/2001 foi aprimorado por meio de emenda aditiva que acrescentou ao texto do inciso XI do artigo 2º da medida provisória a expressão “licenciados”, com a seguinte justificativa:

“A maioria dos praças da Marinha e Aeronáutica foram licenciados com base nos atos 424, 425, 0365, etc (Na Marinha) e Portaria 1.104/GM3, (Na Aeronáutica) com fundamento em legislação comum (LRSM), quando na realidade ditos atos e portarias estavam eivados de vícios nulos por contrariar o princípio constitucional da equidade e da isonomia, podendo as Forças Armadas excluir qualquer praça, sem fundamentação plausível: bastava ser considerado ‘subversivo’, em desrespeito ao Princípio do Devido Processo Legal” (sublinhas aditadas).

Em suma, a Portaria 1.104/64 foi expedida em um contexto de expurgo em massa de militares, majoritariamente de cabos, considerados subversivos pelo comando da Aeronáutica. Em outras palavras, houve uma perseguição, com clara motivação política, a uma categoria determinada. A perseguição à categoria gerou efeitos individuais para todos os cabos que ingressaram na Aeronáutica antes da edição da Portaria 1.104, em 12 de outubro de 1964.

Desse modo, fica claro que a Comissão de Anistia, ao editar a Súmula Administrativa 2002.07.0003, atesta o caráter de ato de exceção da Portaria 1.104/64 e fundamenta-se em dados históricos e documentais consistentes. Trata-se, na verdade, de um reconhecimento de uma injustiça perpetrada pela ditadura militar contra uma categoria específica de militares, que foram impedidos de permanecer na Aeronáutica por motivação exclusivamente política.

Além de ignorar todos os documentos acima mencionados e desprestigiar o minucioso trabalho feito pela Comissão de Anistia e sua súmula administrativa, o entendimento adotado pelo ministro interino da Justiça também se afasta da orientação pacífica do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto. As duas turmas da corte suprema brasileira já se debruçaram sobre a efetiva perseguição política àqueles cabos que ingressaram na Fora Aérea Brasileira anteriormente a 12/10/1964 e foram prejudicados pela Portaria 1.104/64, conforme se verifica dos trechos de acórdãos abaixo transcritos.

“A anistia política de ex-cabos da Força Aérea Brasileira reclama, como requisito, que tenham ingressado nos quadros anteriormente à edição da Portaria n° 1.104-GM3/1964, do Ministério da Aeronáutica. Precedentes: RMS 25.851 AgR/DF, Rel. Min. Menezes Direito, RMS 25.642 AgR/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, RMS 31.808 ED/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia” (Supremo Tribunal Federal. 1ª Turma. RMS 25.754. Relator ministro Luiz Fux. Unânime. DJe 25/8/2014).

“A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal fixou-se no sentido de que apenas existe direito subjetivo à anistia política, fundada na Portaria 1.104/64, do Ministério da Aeronáutica, aos cabos que, ao tempo de sua edição, já estavam incorporados à Força Aérea” (Supremo Tribunal Federal. 2ª Turma. RMS 26.025. Relator ministro Teori Zavascki. Unânime. DJe 3/8/2015).

Caberá mais uma vez ao Poder Judiciário, no controle de legalidade e constitucionalidade do ato administrativo, afastar as violações a direitos causados àqueles ex-cabos que foram prejudicados pelo regime de exceção. Ao fazer essa tarefa, o Poder Judiciário garante o respeito às específicas normas da Justiça de Transição, que constituem importante elemento para a pacificação social e para a construção de uma democracia legítima e duradoura.

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