Opinião

Probidade administrativa é um direito fundamental

Autor

  • Hugo Campitelli Zuan Esteves

    é advogado graduado em Direito pela Universidade Norte do Paraná e pós-Graduado em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina especialista em Direito Constitucional. É cursista da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (núcleo Londrina).

11 de março de 2017, 11h15

Paucorum improbitas est multorum
calamitas
(a vilania de uns
poucos é a desgraça de muitos).

No âmbito social, as atuais crises políticas e jurídicas têm causado insegurança ao cidadão comum, a despeito da existência de leis protetivas — notadamente a Lei 8.429/1992 — e de mandamentos constitucionais dirigidos a tutelar a probidade no ambiente da Administração Pública, de que é exemplo o artigo 37, parágrafo 4º, da Constituição Federal.

Juridicamente, as distintas interpretações sofridas pontualmente pela lei findam por reduzir ainda mais a segurança que a ela incumbiria, o que, obviamente, não interessa à sua vigência. Não se trata, no entanto, de mero exercício criativo o reconhecimento da probidade como direito fundamental.

Pelo contrário, esse pensamento se revela plenamente compatível com as normas constitucionais brasileiras e demais regras e princípios de hierarquias semelhantes.

Outrossim, o raciocínio não banaliza o conceito e a abrangência dos direitos fundamentais. Sim, porque a probidade é um direito tão fundamental que, possivelmente, sua ausência suprimiria diversos outros direitos fundamentais dela derivados e, inclusive, expressos na Constituição Federal de 1988.

A Constituição, indiscutivelmente, tem como objetivo final a paz social. Ora, normas são criadas para que a sociedade não pereça no caos absoluto. Nesse sentido, leciona Dalmo de Abreu Dallari:

Como foi dito anteriormente, não basta uma reunião de pessoas para que se tenha por constituída uma sociedade, sendo indispensável, entre outras coisas, que essas pessoas se tenham agrupado em vista de uma finalidade. E, quanto à sociedade humana, que é a reunião de todos os homens e que, portanto, deve objetivar o bem de todos, a finalidade é o bem comum[1].

Nessa lógica, a teoria geral dos direitos fundamentais estabelece que tais direitos constituem a essência da tutela da dignidade da pessoa humana, isto é, existem para que o primeiro e último destinatário do ordenamento jurídico, o homem, encontre o seu grau máximo de proteção. Por óbvio, considerando esta descomunal relevância, não haveria lugar para os direitos fundamentais, senão na Constituição Federal, considerada a lei máxima[2].

É, igualmente, a compreensão de José Joaquim Gomes Canotilho:

A densificação dos direitos, liberdades e garantias é mais fácil do que a determinação do sentido específico do enunciado dignidade da pessoa humana. Pela análise dos direitos fundamentais, constitucionalmente consagrados, deduz-se que a raiz antropológica se reconduz ao homem como pessoa, como cidadão, como trabalhador e como administrado[3].

Ademais, referem-se os direitos fundamentais, no ensinamento de José Afonso da Silva:

Além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna. […] Trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; […] Devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados[4].

Trata-se, portanto, da primeira percepção de que a probidade administrativa já consagra um direito fundamental: em ausente, o cidadão pode estar fadado, sem exageros, à morte.

Ora, nesse contexto, pergunta-se: como conferir ao cidadão os direitos fundamentais à saúde, à educação ou à alimentação, por exemplo, quando o administrador pratica um ato de desvio de verbas de tais setores, com o intuito de se enriquecer?

A doutrina, por sua vez, sustenta que os efeitos da improbidade administrativa são inconciliáveis com os objetivos fundamentais previstos no artigo 3º da Constituição Federal[5].

Em contraponto, há um rol de direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal de 1988. Neste rol, não há a previsão do direito à probidade administrativa, o que poderia indicar que o direito em tela não seria um dos elencados como fundamental.

Contudo, o parágrafo 2º, do artigo 5º, da Constituição Federal, concede um desimpedimento: prevê um canal constitucional pelo qual novos direitos fundamentais poderão assim se confirmar, ante a permissividade expressa pela própria Lei Maior.

Sobre a possibilidade de reconhecimento de novos direitos fundamentais, é o destaque de Paulo Gustavo Bonet Branco:

[…] mais producente buscar, em cada caso concreto, as várias razões elementares possíveis para a elevação de um direito à categoria de fundamental, sempre tendo presentes as condições, os meios e as situações nas quais este ou aquele direito haverá de atuar. […] O esforço é necessário para identificar direitos fundamentais implícitos ou fora do catálogo expresso da Constituição[6].

Ainda que o fundamento constitucional da probidade esteja deslocado de aludido rol, mostra-se tecnicamente viável sua compreensão como direito fundamental. É a posição de Mateus Eduardo Siqueira Nunes Bertoncini:

Tamanha é a importância da probidade administrativa – direito público subjetivo de caráter difuso pertencente à sociedade brasileira, que esse direito, a nosso ver, possui a natureza de um direito fundamental, sendo o centro, o âmago do microssistema jurídico em estudo, cuja extensão vem se alargando[7].

De acordo com o parágrafo 2º, do artigo 5º, da Constituição Federal, para que a probidade administrativa seja considerada um direito fundamental, é necessário que esta decorra ou do regime ou dos princípios que a Lei Maior adota ou ainda de tratado internacional em que o País seja parte.

Em primeiro, evidente a derivação da probidade administrativa dos princípios adotados pela Constituição Federal de 1988. O caput do artigo 37, da Constituição Federal, obriga a Administração Pública a obedecer os seguintes princípios: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Quanto ao dever de probidade, ensina Fábio Medina Osório:

Os que estão sujeitos ao dever de probidade administrativa terão um conjunto de deveres públicos — positivos e negativos — gerais e especiais –, cuja concreção será imperiosa e obrigatória, de modo a proteger o setor público, mais concretamente os valores neles abrigados. […] O mais importante é reconhecer, certamente, que sob o dever de probidade administrativa encontraremos valores e princípios comuns às Administrações Públicas democráticas[8].

Talentosamente, resume o panorama a preleção de Juarez Freitas:

[…] direito fundamental à boa Administração Pública, que pode ser assim compreendido: trata-se do direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. A tal direito corresponde o dever de a administração pública observar, nas relações administrativas, a convergência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem[9].

No que diz respeito ao regime democrático brasileiro, a probidade, além de compatível, é imprescindível à sua tutela, pois a escolha da Constituição Federal de 1988 foi a implementação da “probidade na Administração Pública, em todos os níveis”[10].

Assim como a corrupção, a improbidade administrativa, ao se voltar contra a própria dignidade da pessoa humana, constitui uma enfermidade que coloca em perigo a preservação do regime democrático adotado pela CF[11].

Ademais, o princípio republicano “designa uma coletividade política da res publica, vale dizer, é a sociedade que deve administrar a coisa pública” e acarreta na “obrigação do agente público de prestar contas de sua administração”[12].

Por fim, a Constituição expressa que os tratados internacionais em que o Brasil seja parte também poderão incluir outros valores fundamentais não expressos na Lei Maior. Nessa esteira, valioso o ensinamento de Fábio Medina Osório:

A corrupção tem sido um dos temas centrais no processo comunicativo de globalização, unindo esforços e energias internacionais, tanto para seu combate quanto para a implementação, difusão e fortalecimento de ferramentas preventivas e de diagnósticos precisos, visando objetivos comuns aos povos civilizados e democráticos[13].

Efetivamente, tratados internacionais foram firmados pelo Brasil, reforçando a proposição em tela. Vale, nessa oportunidade, a síntese de Roberto Lima Santos:

O Estado brasileiro é signatário das seguintes convenções: (i) Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 125, de 14 de junho de 2000, e promulgada pelo Decreto nº 3.678, de 30 de novembro de 2000; (ii) Convenção Interamericana contra a Corrupção, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 152, em 25.06.2002, e promulgada pelo Decreto nº 4.410, de 07.10.2002, sofrendo pequena alteração pelo Decreto 4.534, de 19.12.2002; e (iii) Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 348, de 18.05.2005, e promulgada pelo Decreto nº 5.687, de 31.01.2006[14].

Como direito fundamental, a probidade administrativa permite, de um lado, que a justiça seja acionada para impedir que a Administração Pública fira a esfera individual do cidadão, exigindo-se que apenas atos probos sejam praticados e, de outro, que seja consagrada como princípio informador de todo o ordenamento[15].

Sendo assim, a probidade administrativa passa a ter características próprias de um direito fundamental, quais sejam: inalienável, imprescritível e irrenunciável[16].

Vincula, ademais, os poderes públicos, tornando-se parâmetro “de organização e de limitação dos poderes constituídos”[17], isto é, “nenhum dos Poderes se confunde com o poder que consagra o direito fundamental, que lhes é superior”[18].

Por fim — e o mais importante —, a probidade administrativa constitui uma cláusula pétrea. Ou seja, veste-se de um valor irredutível, que jamais poderá ser enfraquecido, nem mesmo com o surgimento de instante político oportuno para minimizar sua incidência.

Isto porque “não se infirma a fundamentalidade de um direito por sua difícil concretização. Gradualmente, deve-se rumar para a efetividade, não se devendo desistir, em momento algum, da reiterada e insistente proteção do direito fundamental”[19].

Conclui-se, assim, com facilidade, ser a probidade administrativa um direito fundamental.


[1] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 25.
[2] MENDES, Gilmar Ferreira; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 135.
[3] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. p. 362-363.
[4] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36. ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional n. 71, de 29.11.2012. São Paulo: Malheiros Editores, 2013. p. 180.
[5] BERTONCINI, Mateus Eduardo Siqueira Nunes. Ato de Improbidade Administrativa: 15 anos da Lei 8.429/92. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 141.
[6] MENDES; GONET BRANCO, 2015, p. 139.
[7] BERTONCINI, Mateus E. S. N. O microssistema de proteção da probidade administrativa e a construção da cidadania. p. 6. Disponível em: <http://www.ceaf.mppr.mp.br/arquivos/File/o_microssistema.pdf>. Acesso em 1º.mar.2017.
[8] OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública – corrupção – ineficiência. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 105.
[9] FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 22.
[10] BERTONCINI, 2007, p. 139.
[11] MIRANDA, Gustavo Senna. Princípio do juiz natural e sua aplicação na lei de improbidade administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 71.
[12] D'ANGELO, Suzi; D´ANGELO, Élcio. O princípio da probidade administrativa e a atuação do ministério público. Campinas: LZN Editora, 2003. p. 7.
[13] OSÓRIO, 2013, p. 28.
[14] SANTOS, Lima Roberto. Direito fundamental à probidade administrativa e as convenções internacionais de combate à corrupção. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 50, out. 2012. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm> <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao050/Roberto_Santos.html>. Acesso em 1º.mar.2017.
[15] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. rev. e atual. de acordo com a Emenda Constitucional n. 76/2013. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 526.
[16] SILVA, 2013, p. 183.
[17] MENDES; GONET BRANCO, 2015, p. 147.
[18] Ibidem, p. 147-148.
[19] FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa: o controle de prioridades constitucionais. Disponível em: <http://www6.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/5131/2691>. Acesso em 1º.mar.2017.


REFERÊNCIAS
BERTONCINI, Mateus Eduardo Siqueira Nunes. Ato de improbidade administrativa: 15 anos da Lei 8.429/92. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
______. O microssistema de proteção da probidade administrativa e a construção da cidadania. Disponível em: <http://www.ceaf.mppr.mp.br/arquivos/File/o_microssistema.pdf>. Acesso em 1º.mar.2017.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. rev. e atual. de acordo com a Emenda Constitucional n. 76/2013. São Paulo: Saraiva, 2014.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
D'ANGELO, Suzi; D´ANGELO, Élcio. O princípio da probidade administrativa e a atuação do ministério público. Campinas: LZN Editora, 2003.
FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa: o controle de prioridades constitucionais. Disponível em: <http://www6.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/5131/2691>. Acesso em 1º.mar.2017.
FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
MENDES, Gilmar Ferreira; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
MIRANDA, Gustavo Senna. Princípio do juiz natural e sua aplicação na lei de improbidade administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública – corrupção – ineficiência. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
SANTOS, Lima Roberto. Direito fundamental à probidade administrativa e as convenções internacionais de combate à corrupção. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 50, out. 2012. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm
<http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao050/Roberto_Santos.html>. Acesso em 1º.mar.2017.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 36. ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional n. 71, de 29/11/2012. São Paulo: Malheiros Editores, 2013.

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    é advogado, graduado em Direito pela Universidade Norte do Paraná e pós-Graduado em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina, especialista em Direito Constitucional. É cursista da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (núcleo Londrina).

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