Opinião

Diferenciação de preço entre pagamento no cartão de crédito e à vista

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11 de março de 2017, 7h01

A Medida Provisória 764, editada no final de 2016, trouxe à baila uma temática há muito debatida: a possibilidade de diferenciação de preços de acordo com a forma de pagamento escolhida pelo consumidor — se com o cartão de crédito ou em espécie. Apesar de ser um costume entre os comerciantes oferecer desconto para pagamento em dinheiro, as normas consumeristas sempre proibiram tal prática.

Além disso, a referida MP veio eivada de questionamentos acerca da real necessidade de tal assunto ter sido objeto de um instrumento legal desse tipo, uma vez que os argumentos apresentados para justificar a utilização de tal modalidade de norma não são necessariamente incontestes nos quesitos urgência e relevância do tema, conforme preconiza o artigo 62 da Carta Magna.

Representantes do governo justificam a adoção de tal providência de formas variadas, dentre elas o fato de considerá-la, além de vantajosa para o consumidor por poder pagar menos à vista, um estímulo à competição entre os diversos meios de pagamento, capaz de reduzir os juros do cartão de crédito e de regularizar uma prática já existente no pequeno comércio. Afirmam também que existe possibilidade de significativa redução na referida taxa que dependerá somente da finalização de estudos a cargo do Banco Central[1].

Realmente, taxas de juros menores interessam sobremaneira ao consumidor contratante do serviço das administradoras de cartão de crédito, entretanto, tal argumento não teria maior consistência após conclusão de tais estudos, restando comprovada inequivocamente a tão sonhada redução? 

Ressalta-se ainda que, há alguns anos, existe uma forte movimentação no sentido de proceder à alteração da Lei Federal 8.078/90, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor (CDC) em alguns aspectos, já tendo sido inclusive levados à discussão no Senado Federal alguns projetos de lei nesse sentido. Não seria o Congresso Nacional o “fórum” mais adequado para contemplar o teor de tal medida?

Inobstante a importância de tais reflexões, deixemos de lado a questão política, pois não representa o real objetivo deste artigo.

Instituições especializadas no assunto em sua maioria, especialmente as não governamentais, após a notícia da permissão para diferenciação de preço se manifestaram contrárias à permissão concedida por intermédio da medida presidencial.

A coordenadora institucional da Proteste, Maria Inês Dolci, por exemplo, entende que o consumidor já arca com muitos custos para ter o conforto do cartão de crédito. A tese adotada é a de que “o custo do lojista para trabalhar com cartão não pode ser repassado para o consumidor, pois faz parte do risco do negócio”[2]

No Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a economista Ione Amorim ressaltou que “essas despesas já são consideradas na definição do preço do produto ou serviço pelo lojista. Além disso, para o comerciante, dar a opção de pagamento com o cartão é uma estratégia para atrair mais clientes. Portanto, os custos são inerentes à sua atividade comercial”[3].

Vitor Hugo do Amaral Ferreira, membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon), afirma categoricamente que tal medida vai contra os direitos já assegurados em favor do consumidor[4].

Para Flavio Tartuce, doutor em Direito Civil e também membro do Brasilcon, em seu artigo Breves comentários sobre a MP 764[5], "a norma contraria a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça e transcreve acórdãos, entre os mais recentes Recurso especial da Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte conhecido e improvido" (STJ, REsp 1479039/MG, rel. ministro Humberto Martins, 2ª Turma, julgado em 6/10/2015, DJe 16/10/2015).

As entidades representativas do comércio em geral demonstraram boa aceitação sob o argumento de que “existe uma coisa que se chama concorrência. Nada impede aumentar o preço e depois dizer que o desconto é promoção. No mercado você tem liberdade de preços, não vejo que isso vai alterar em nada”, disse Marcel Solimeo, diretor do Instituto de Economia da Associação Comercial de São Paulo[6].

Sabe-se que o Código de Defesa do Consumidor, no artigo 39 inciso V, proíbe que se exija do consumidor o que ficou conhecido como “vantagem manifestamente excessiva”. Mas em que se constitui a “vantagem manifestamente excessiva” depende de exegese apropriada das normas consumeristas e/ou de uma regulamentação específica, devido à subjetividade envolvida. A medida provisória em questão sequer sinalizou para uma delimitação para adoção da referida prática no mercado de consumo.

Também no parágrafo 3º do artigo 36 da Lei Federal 12.529/11, que trata de infração à ordem econômica, há dispositivo que proíbe discriminação de adquirentes ou de fornecedores também por prática de diferenciação de preços.

A possibilidade de cobrança de preços diferentes, conforme a maneira de pagamento, vai depender de cada lojista, analisando o perfil do cliente e a necessidade financeira do estabelecimento, segundo o presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) de Santa Cruz do Sul, Lauro Mainardi Júnior[7].

A primeira de muitas perguntas que cabem aqui é se ao consumidor interessa o “preço” que pagará para ter acesso a tal negociação. Há também o desejo de saber se o fornecedor está preparado para figurar no polo passivo de tal negociação, sem que isso represente, no mínimo, um retrocesso na história do direito do consumidor.

O que se deve admitir é que sempre existiram consumidores ávidos por reaver seu antigo poder de negociação, que data de antes da existência do “dinheiro de plástico”, quando os consumidores se utilizavam de outros meios de pagamento, tais como o cheque ou o crediário, registrado em notas promissórias e/ou carnês. No intuito de obter algum desconto na aquisição de produtos ou na contratação de serviços diversos, o consumidor tinha a sensação de estar exercendo, dessa forma e com plenitude, seu poder de escolha.

Entretanto, não se pode desprezar a situação daquele que está na outra ponta: o fornecedor. A situação deste se agrava devido ao atual cenário econômico aliado às muitas obrigações tributárias e encargos trabalhistas, que, somados a outros fatores específicos de cada segmento do mercado, tem o condão de levar consigo sistematicamente uma boa parcela dos lucros de tais fornecedores.

Analisando as variadas manifestações decorrentes da edição da MP 764/2016, o consenso parece estar no fato de o uso do cartão de crédito ter se tornado símbolo da “não inadimplência” na relação consumidor/fornecedor. Isso porque, com a crescente utilização do cartão de crédito que se iniciou há aproximadamente duas décadas, houve a quase extinção do cheque — histórico instrumento de calote no mercado de consumo, que pode voltar a ser uma boa alternativa aos bolsos cheios de dinheiro, situação esta última inconcebível num país com alto índice de marginalidade e de muito pouca segurança. A partir da inserção do cartão de crédito como meio de pagamento, o risco de endividamento no comércio passou a ser quase nulo, transferindo-o para as administradoras de cartões de crédito, pelo qual a instituição cobra bem caro, tanto dos comerciantes a título de taxa de administração e outros custos, quanto do titular de seu produto, notadamente quando este se utiliza dos limites de crédito ofertados, invariavelmente com taxas acima da inflação.

A comodidade trazida a ambos os integrantes da relação de consumo — ao consumidor pela praticidade de seu uso e crédito facilitado, ao fornecedor pela inexistência de riscos de inadimplência, e a ambos pela maior segurança que oferece — parece ser totalmente custeada apenas pelo integrante mais vulnerável da relação.

Segundo dados do Portal Brasil — cuja fonte é o Banco Central —, a partir da vigência das novas regras para uso do cartão de crédito, os gastos com juros podem cair até 70%, uma vez que não será mais possível ficar no rotativo por mais de 30 dias e que essa medida pode contribuir para uma significativa redução nas taxas e nos custos desta modalidade de pagamento, passando de 484,6% ao ano para 153,8%[8].

O fato é que há uma obrigação precípua do governo em adotar meios capazes de estabelecer o equilíbrio entre consumidores e fornecedores, em observância aos princípios previstos no artigo 4º da Lei Federal 8078/90.

Para Eduardo Schröder, superintendente do Procon Juiz de Fora (MG), a medida provisória parece não implicar em alteração significativa na atuação do órgão: “A fiscalização sobre a obrigatoriedade de informação correta sobre o preço não deixa de existir, e obriga o fornecedor a prestar mais informações do que prestava antes”, resume ele[9].

Em atendimento a uma denúncia feita dois dias após a edição da MP 764/16 relativa à obtenção de vantagem manifestamente excessiva no comércio local da mencionada cidade mineira, a fiscal do Procon Juiz de Fora, autora deste artigo, constatou informação de preço diferenciado para pagamento em cartão de crédito com percentual acima de 40% em alguns produtos.

Segundo informações da funcionária presente, o proprietário sequer tinha conhecimento da existência da medida provisória em comento, fato que vem reforçar a tese de que tal prática já era sistemática. Entendendo que não foi abordada nenhuma forma de limitação para a diferenciação de preço à fiscal, devido à insuficiência de fundamento legal que, inequivocamente, amparasse um eventual auto de infração, não restou alternativa diferente a não ser a lavratura de um auto de constatação que visava tão somente contribuir para uma eventual análise mais doutrinária da questão, por parte da autoridade responsável pela aplicação de penalidades do referido órgão,.

Inobstante o fato narrado a título de ilustração de possíveis efeitos da norma recentemente editada, no geral, não se tem notícia de mudança significativa de comportamento no comércio em relação ao uso ou não do cartão de crédito. Pelo contrário, tais fornecedores continuam exercendo as prerrogativas da livre concorrência da forma habitual, com desconto proporcional às taxas devidas pela administração de cartão de crédito, bem como os já tradicionais descontos de final de estação e/ou de passagem de datas especiais.

Aparentemente, o consenso entre renomados estudiosos da matéria só tem sido notado no que toca à suposta inadequação do instrumento utilizado pelo governo para tratar do tema. Suposta porque, salvo melhor juízo, tal afirmativa só é realmente possível diante do resultado de uma ação de controle de constitucionalidade, desde que devidamente transitada em julgado.

Perceber ainda que a discussão entre tais profissionais deixa clara uma acentuada divergência quanto à adequação de se permitir a diferenciação de preço no caso de pagamento por intermédio do cartão de crédito ou de dinheiro: eis a verdadeira inspiração para a redação deste artigo.

Há quem defenda a tese de que, independentemente da edição da referida medida, tal possibilidade de diferenciação seja altamente favorável ao consumidor, alegando inclusive que a prática em questão segue contemplada pelo instituto da livre concorrência.

Entretanto, o repasse do valor referente à administração do cartão de crédito ao consumidor, mediante inclusão deste no custo total dos produtos, é fato notório e, portanto, acrescer o produto deste montante seria uma duplicação de um mesmo acréscimo.

Aos fiscais de defesa do consumidor, cabe tão somente a estrita observância das normas em vigor — inadequadas ou não —, atendendo prontamente às denúncias que lhes chegarem.

Uma percepção que se tem do assunto é que as demandas trazidas pelos consumidores têm mais motivação em cima da falta de informação sobre a aceitação ou não de cartão no caso de preço promocional  do que a respeito da variação de preço em função do uso da cartão ou do dinheiro para pagamento.

Diante do exposto sobre a possibilidade de diferenciação de preço para pagamento no cartão de crédito e em dinheiro, pergunta-se: o fato de a referida prática atualmente estar amparada pela medida provisória mencionada já se achar consolidada muito antes da edição desta, poderia levar a crer que não havia um sentimento forte de lesão por parte do consumidor?

Ao contrário disso, poderia depreender-se que esse mais frágil integrante da relação de consumo estivesse se sentindo beneficiado com a possibilidade de negociação com relação ao preço dos produtos? Ou seria a habitual falta de informação, clara e precisa, aliada à comodidade do uso do cartão, a responsável pela apatia diante de tal prática sistemática?

Os próprios interessados integrantes da relação de consumo, considerando aí não só os tradicionais “consumidor e fornecedor”, mas o administrador do cartão de crédito, ditarão as novas regras de relacionamento dentro da liberdade que lhes foi acrescentada com a permissão legal para tal?

Acredita-se que a diferenciação de preços de acordo com a forma de pagamento será mais bem avaliada com o decorrer do tempo e os diferentes momentos econômicos do país serão os melhores  “termômetros” da negociação em comento. O consumidor, sobretudo, deverá ficar mais atento ao mercado, uma vez que este poderá usar sua liberdade de concorrência de forma mais plena. E, assim, o direito à informação, grande estrela das normas que regram as relações de consumo, tenderá a se tornar o maior e talvez o único vilão desta história.


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