Interesse Público

Soma e subtração na acumulação de cargos públicos: entre direito e matemática

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9 de março de 2017, 8h01

Spacca
A mais nova proposta de reforma da previdência (PEC 287/2014) tem despertado atenção da mídia, da sociedade e das diversas categorias funcionais atingidas. Em um debate pouco transparente e sem paridade de informações, mais uma vez estamos envolvidos em discussões pautadas por critérios nem sempre informados pela racionalidade, logicidade e justiça. Este artigo não tem como objeto a referida reforma, mesmo porque este articulista mantém a pequena esperança de que a proposta inicial possa ser aperfeiçoada. Entretanto, escolhi um ponto importante — com conexão direta com a anunciada reforma — para trazer ao debate dos leitores desta ConJur. Tratarei da acumulação de cargos, empregos e funções públicos e sua submissão ao teto constitucional de remuneração.

A acumulação de cargos, empregos e funções públicas é uma exceção prevista pelo Texto Constituição de 1988, pois a regra é que o servidor se dedique integralmente (gentileza não confundir dedicação integral com dedicação exclusiva), com o objetivo de fidelizar o servidor às funcionalidades do seu posto de trabalho.

A vedação de acumulação teve origem no Decreto de Regência, de 8/6/1822, da lavra de José Bonifácio e as exceções tiveram início com a Constituição de 1934, que excluiu da proibição “os cargos do magistério e técnico-científicos, que poderão ser exercidos cumulativamente, ainda que por funcionário administrativo, desde que haja compatibilidade dos horários de serviço” (artigo 172, parágrafo 1º). As Constituições posteriores, todas elas, previram exceções à regra da não cumulatividade.

Na atual Constituição Federal a regra geral sobre acumulação lícita de cargos, empregos e funções encontra-se prevista no artigo 37, incisos XVI e XVII. Inicialmente, convém anotar que a vedação aplica-se somente aos casos em que há recebimento de dupla remuneração (acumulação remunerada), devendo-se anotar, por outro lado, que, como regra, é vedada a prestação de trabalho gratuito na Administração Pública. O primeiro requisito imposto pela regra constitucional é a existência de compatibilidade de horário entre os dois cargos, aferível mediante consulta ao respectivo regime jurídico e as horas de efetivo exercício da atividade em prol da Administração Pública. O segundo requisito diz respeito ao enquadramento da acumulação nas hipóteses excepcionais admitidas, a saber: a) dois cargos de professor; b)  um cargo de professor com outro, técnico ou científico; c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas. O terceiro requisito relaciona-se com a obediência teto constitucional previsto no artigo 37, XI da Constituição.

A regra do teto constitucional de remuneração não é de fácil interpretação — a simples leitura do disposto no artigo 37, inciso XI, um dos maiores períodos que se tem notícia em textos normativos, já é um desafio. No tocante à acumulação, a primeira interpretação naturalmente sugerida pelo dispositivo seria a incidência do valor correspondente ao teto remuneratório à soma das remunerações relativas aos cargos, empregos ou funções acumuláveis nos termos do artigo 37, inciso XVI.

O resultado dessa operação, contudo, seria contraditório: admitir-se-ia como lícito o exercício acumulativo, mas com retribuição pecuniária menor em razão da sujeição ao teto remuneratório. A inadequação dessa interpretação pode ser demonstrada com um exemplo: imaginem-se dois professores de instituições públicas de ensino sujeitos a idêntica jornada e carga horária, sendo que um deles titulariza, com compatibilidade de horário, outro cargo público. Se a soma das remunerações deste último servidor nos dois cargos superar o teto, não parece faria sentido admitir que existisse retribuição diferenciada no tocante à função de magistério.

Nos casos de acumulação autorizados expressamente pela Constituição, a interpretação sistemática dos dispositivos impõe a aplicação do artigo 37, XI (teto remuneratório), tendo como base de incidência a retribuição percebida por cada um dos cargos, empregos ou funções isoladamente, e não a soma das retribuições. Esse é o entendimento, por exemplo, do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público. No Superior Tribunal de Justiça, igualmente, existem precedentes importantes consagrando o entendimento[1]. No Tribunal de Contas da União, recente decisão trilhou o mesmo caminho. Em seu voto inserto no Acórdão nº 1994/2015-Plenário aduziu o Ministro Relator Benjamin Zymler:

“Buscando, pois, integrar harmoniosamente o inciso XI do artigo 37 às demais disposições constitucionais, considero bastante razoável compreender que o preceito, como em última análise o fizeram o CNJ e o CNMP, não cuida de acumulação de cargos públicos em nenhuma hipótese. De fato, a expressão “percebidos cumulativamente ou não” poderia perfeitamente ser associada, no contexto, a cada vínculo funcional – do servidor ou instituidor – tomado individualmente. Em outras palavras, pode-se admitir que não cuida o dispositivo do somatório de rendimentos provenientes de cargos distintos, mas de rendimentos de um único cargo (ou vínculo funcional) to mado de per si, os quais (rendimentos), percebidos de forma agrupada ou não, têm de se conter no limite máximo representado pelo subsídio de Ministro do STF. […] 32. Com isso, insisto, a expressão “cumulativamente ou não” conserva real significado e força operativa, além de se coadunar com a parte final do inciso XVI do artigo 37 da CF, que, de outra forma, restaria completamente ociosa, sem nenhuma utilidade: “é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI”. 33. De fato, qual seria o sentido de uma tal disposição se a submissão ao teto do somatório dos rendimentos oriundos de acumulações de cargos fosse automática, pois que já estabelecida no inciso XI? E por que a mesma disposiç& atilde;o não foi repetida em outras hipóteses de acumulação expressamente admitidas pela Constituição, como as de magistrados com assento nos tribunais eleitorais (arts. 119 e 120) ou as de juízes e professores (artigo 95, parágrafo único, inciso I)?”

Nessa discussão, a racionalidade tem prevalecido. Não há sentido em permitir o exercício concomitante de duas atribuições, existindo compatibilidade de horário, com submissão ao teto geral consubstanciado no subsídio de um cargo público. O problema ocorre quando o servidor público, em regime de acumulação lícita, cumpre os requisitos para a aposentadoria em um dos cargos, cumpridos os requisitos de idade, tempo de contribuição e outros eventuais.

Uma pequena digressão a respeito do que alguns chamam de “privilégios” existentes no regime previdenciário próprio dos servidores titulares de cargo efetivo. Privilégios, é verdade, existiram. Há não tanto tempo atrás sequer era obrigatório que o servidor contribuísse para custear sua própria aposentadoria; não existia idade mínima, tempo mínimo de exercício no cargo, idade. Havia possibilidade de contagem de tempo fictício, aposentadorias especiais em demasia e algumas outras situações que, sem sombra de dúvida, contribuíram para as sucessivas crises nos diversos regimes próprios.

Suponho que fatores gerenciais (incompetência) e socioculturais (corrupção) tenham uma relevante parcela de culpa nessa situação. Trata-se de mera suposição. Ocorre que essas distorções foram sendo eliminadas pelas reformas constitucionais anteriores. O caráter contributivo das aposentadorias foi estabelecido pela EC nº 3/93; a EC nº 20/98 definiu idades e tempos mínimos para permanência nos cargos antes das aposentadorias; a EC nº 41/03 ampliou os tempos mínimos, instituiu o fim da paridade, a cobrança dos inativos e a redução das pensões, dentre outras previdências. O servidor público titular de cargo efetivo ainda tem seus proventos calculados tendo como base sua remuneração percebida em atividade, mas isso não ocorre em razão de algum privilégio descabido, mas sobretudo por que a contribuição máxima do RPPS (serviço público) é muito maior que a contribuição privada para aposentadoria no regime geral (INSS). Enfim, se houve no passado uma “era de ouro” das aposentadorias públicas, nas quais poucos privilegiados recebiam montantes absurdos à custa da sociedade, esse tempo acabou.

Retornando ao tema da acumulação lícita de cargos e sujeição ao teto constitucional, reitero que a sujeição ao teto nas hipóteses de acumulação deve ser feita isoladamente, durante a atividade (é dizer, cada remuneração isolada não pode ultrapassar o teto); estranhamente, o mesmo não ocorre durante a inatividade. Nesses casos, o a submissão ao teto ocorre mediante a soma dos rendimentos oriundos dos diferentes vínculos funcionais, nos termos do artigo40, §11 da Constituição. Veja-se:

“Artigo 40, § 11 – Aplica-se o limite fixado no artigo 37, XI, à soma total dos proventos de inatividade, inclusive quando decorrentes da acumulação de cargos ou empregos públicos, bem como de outras atividades sujeitas a contribuição para o regime geral de previdência social, e ao montante resultante da adição de proventos de inatividade com remuneração de cargo acumulável na forma desta Constituição, cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração, e de cargo eletivo.”

No mesmo julgado antes referido, anotou o ministro Benjamin Zymler:

“[…] há, sim, comando constitucional expresso que limita o valor do somatório de proventos com quaisquer outros rendimentos provenientes dos cofres públicos. Tal é o § 11 do artigo 40, norma de regência a ser observada quando envolvidas acumulações de proventos com proventos ou de proventos com vencimentos. Aqui, enfatizo, não se apresenta nenhuma distinção entre os cargos ou atividades que dão ensejo ao benefício previdenciário[…] Portanto, ainda que a acumulação de cargos não tenha sido amparada no artigo 37, inciso XVI, do texto constitucional, como nos casos de juízes e procuradores que exercem o magistério público, uma vez envolvido o pagamento de benefício previdenciário em qualquer dos vínculos funcionais originários, é a soma dos rendimentos que deve ser confrontada com o teto remuneratório.  Isso, insisto, por força do § 11 do artigo 40 da Carta Política, norma de eficácia plena e, por sua literalidade, de abrangência inequivocamente estabelecida, consoante, diga-se de passagem, já reconhecido em precedente do STF que tratou da percepção cumulada de duas aposentadorias (cf. MS 24.448-8)”.

Qual o sentido desta regra constante do artigo 40, parágrafo 11? O que inspirou o Constituinte reformador a inseri-la no texto constitucional? Qualquer valor ou objetivo, que não esteja ligado ao valor maior justiça, certamente. Paradoxalmente, no mesmo julgado do TCU ainda se extrai a  seguinte conclusão:

“[…] não é demais salientar que os institutos de vencimentos e proventos são distintos. O primeiro tem caráter retributivo, circunstância que atrai inúmeras salvaguardas para o servidor, chegando mesmo a suscitar – como visto – fundados questionamentos quanto à real possibilidade de sua redução em face, tão só, da acumulação com outro cargo público. O segundo, por outro lado, tem natureza previdenciária, ou seja, seu objetivo precípuo é assegurar o sustento do ex-servidor e de seus dependentes na velhice, na doença ou na sua falta, o que amplia a margem de atuação do legislador na definição das condições e valores de cobertura. É certo que os proventos não constituem mera liberalidade ou favor do Estado, sendo, antes, direito conquistado pelo trabalhador mediante contribuições regulares feitas ao longo de vários anos. No entanto, os regimes públicos de previdência têm, por definição, caráter solidário, o que justifica, e mesmo pressupõe, o estabelecimento de condicionantes e limitadores para a concessão dos benefícios”.

A solidariedade, no caso, ocorre somente para com os demais. O servidor que contribui durante toda sua vida funcional para a aposentadoria em dois cargos licitamente exercidos, na inatividade terá uma redução insensata, pautada por critério consagrado com o único intuito de economizar recursos do Erário e aparentar preocupação com o interesse público. Trata-se de regra que desconfigura o caráter contributivo do regime, impondo redução injusta e injustificável.

No julgado referido e em outro, ainda mais recente (Acórdão 3160/16-Plenário), o TCU sequer propõe que se aguarde o julgamento do RE 612.975, ao qual foi reconhecida repercussão geral, e que analisará a possibilidade de afastar a incidência do teto remuneratório sobre o somatório dos valores percebidos: simplesmente determinou o corte dos proventos percebidos na esfera federal, mesmo quando a acumulação envolve esferas distintas da federação.

Em síntese, a questão central será decidida pelo Supremo Tribunal Federal (e o STF pode tudo, ou não?). O tema tratado neste artigo foi escolhido apenas para demonstrar a irracionalidade das discussões envolvendo a reforma da previdência, repleta de lugares comuns e juízos precipitados e infundados. Como tem dito o professor Paulo Modesto, um dos grandes entendedores do assunto no Brasil, “reduzir a questão da previdência apenas ao aspecto fiscal é o erro do governo e da oposição ao governo. A academia não deve ter um discurso apenas focado na sustentabilidade fiscal. Ou tornamos o debate mais complexo ou ele vai ser encerrado na Câmara em final de abril”. Entretanto, na inspirada formulação atribuída a H. L. Menecken, “para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”.

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