Opinião

Filtro de relevância para recurso especial é medida necessária

Autor

  • Adacir Reis

    é presidente do Instituto San Tiago Dantas de Direito e Economia sócio do escritório Adacir Reis Advocacia ex-membro da Comissão de Juristas do Senado Federal para a Reforma da Lei de Arbitragem e Mediação e autor do livro "Curso Básico de Previdência Complementar" (editora Revista dos Tribunais).

9 de março de 2017, 6h14

Em um seminário sobre agronegócio, promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, do Superior Tribunal de Justiça, salientava que o filtro da relevância para o recurso especial seria necessário para completar a engenharia da Emenda Constitucional 45, de 2004, a qual fora responsável pela exigência da “repercussão geral” como um requisito adicional de admissibilidade para o Recurso Extraordinário. Em tal ocasião, o ilustre ministro fez um trocadilho com o tema do painel (que tratava de sustentabilidade ambiental) e enfatizou que era necessário buscar a “sustentabilidade judicial”, julgando menos para julgar melhor.

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 209, de 2012, aprovada em primeiro turno pela Câmara dos Deputados no final de 2016, cria a chamada “arguição de relevância” para as questões jurídicas veiculadas em recurso especial junto ao STJ. De acordo com tal proposta, o parágrafo 1º do artigo 105 da Constituição Federal terá a seguinte redação: “no recurso especial, o recorrente deverá demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento”.

A PEC 209 está em harmonia com diversos preceitos da Constituição. O artigo 37 da Carta Maior já trazia o comando do dever de “eficiência” para o poder público, daí a necessidade de se atuar eficientemente na prestação jurisdicional. Não bastasse tal mandamento, com a EC 45/2004 o inciso LXXVIII do artigo 5º da CF passou a dispor, no rol dos direitos e garantias fundamentais, que a todos “são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

A sistemática atual é um poço sem fundo, em que, por mais acelerado que seja o ritmo de trabalho dos ministros do STJ e de seus qualificados assessores, e por mais inovações que tenha havido com o processo eletrônico, a consistência da produção jurisdicional está ameaçada.

Os números impressionam. Conforme o último Boletim Estatístico do STJ, considerados todos os tipos de recursos, em 1990 foram 11.742 julgados. No ano 2000, o número saltou para 150 mil recursos julgados. Em 2007, foram 330 mil. Em 2016, o número de recursos apreciados chegou a 470 mil! Tal situação não tem qualquer paralelo no mundo.

Não se pode esquecer que o REsp, como o nome sugere, é um recurso especial, ou seja, um recurso excepcional, a ser processado diante da relevância e da transcendência da questão jurídica em debate. Além do Recurso Especial, o STJ responde por matérias que são de sua competência originária ou recursal ordinária.

Cumpre ainda lembrar que a criação do STJ se deu com a Constituição Federal de 1988, com a assunção de parte das responsabilidades até então outorgada ao antigo Tribunal Federal de Recursos e ao próprio Supremo Tribunal Federal. Assim o Recurso Especial nasceu, de certo modo, da costela do Recurso Extraordinário, para o qual já existe a figura da “repercussão geral”.

Conforme observou o ministro Marco Aurélio Bellizze, do STJ, por ocasião da audiência pública na Câmara dos Deputados sobre a PEC 209, a sociedade precisa indagar: “O que queremos do Judiciário? Queremos quatro graus de jurisdição?”.

Assim, o filtro recursal de relevância para o Recurso Especial não é apenas medida reativa, destinada a reduzir o atual fluxo de processos no STJ. É também afirmativa e conceitual, pois é preciso resgatar a essência do conceito de Corte Superior, voltada para o enfrentamento de questões relevantes acerca da legislação federal.

O STJ não é, ou não deveria ser, instância revisora de terceiro grau para o interesse específico das partes em litígio. Portanto, a solução não parece ser o aumento do número de ministros, o que ensejaria majoração de despesas do já problemático orçamento público federal, nem tampouco o aumento exacerbado das custas processuais para a interposição do Recurso Especial, mas sim fazer com que o STJ recupere sua missão constitucional de uniformizar a jurisprudência sobre as questões da legislação federal que ultrapassam os interesses subjetivos das partes em litígio.

A aprovação da PEC 209 será um passo significativo para o aprimoramento dos trabalhos do STJ, para a efetividade dos direitos do cidadão em juízo e para um protagonismo maior dos advogados e dos próprios magistrados na condução dos processos nas diversas instâncias do Judiciário.

Não há de se imaginar, contudo, que esse novo pressuposto para a admissão do recurso especial seja uma panaceia. A PEC 209, encabeçada pela então deputada e hoje senadora Rose de Freitas, ensejando debates com a participação dos deputados Paes Landim, Paulo Teixeira, Hugo Leal e outros, deve ser vista como iniciativa importante, ao lado de outras, para avançar na racionalização da prestação jurisdicional.

Dessa forma, a aprovação da PEC 209 está coerente com outras medidas, como o estímulo dado para o sistema “multiportas” de resolução de conflitos (negociação, mediação, conciliação e arbitragem) e a cultura de precedentes adotada pelo novo Código de Processo Civil. Trata-se, pois, de um “feixe de soluções”, na feliz expressão do ministro Luís Felipe Salomão, do STJ.

Vale ainda registrar que a PEC 209 prevê uma lei (“nos termos da lei”), a qual ficará responsável por avançar nos contornos do que se deve entender por relevante, podendo inclusive indicar determinadas matérias que, presumivelmente, terão repercussão para além dos interesses das partes. Porém, é importante que se deixe ao próprio discernimento dos membros do STJ margem para o exercício do controle político-institucional sobre as questões a serem admitidas por meio de recurso especial, pois o referido tribunal, é bom lembrar, é um tribunal superior, com a elevada missão de zelar pela unidade e pela autoridade da legislação federal.

Tendo em vista a heterogeneidade de nossa federação, cabe aos diversos órgãos públicos e privados, com responsabilidade no tema, avançar nas políticas de aprimoramento das atividades desenvolvidas pelos tribunais de Justiça e pelos tribunais regionais federais. Um Judiciário eficiente, com seus tribunais realmente desempenhando suas atribuições, passa pelo fortalecimento das instâncias ordinárias e pela valorização dos juízes e desembargadores.

Haverá também aprimoramento na qualidade das decisões do STJ, que poderá fazer debates exaustivos sobre determinada questão jurídica, promover audiências públicas, ouvir e problematizar os argumentos dos advogados, as ponderações dos amici curiae e de órgãos reguladores, tudo concorrendo para um debate mais rico entre os integrantes dos órgãos colegiados do tribunal (turmas, seções e Corte Especial). O resultado será maior segurança jurídica nas relações sociais e econômicas.

Como pontuado pela ilustre ministra Laurita Vaz, em seu discurso de posse na Presidência do STJ, “só assim, — valorizando as instâncias ordinárias e reestruturando as instâncias extraordinárias —, corrigindo o esdrúxulo desvirtuamento das vias recursais, é que avançaremos no intento de tornar nossa Justiça mais eficiente e célere”.

Autores

  • é advogado e presidente do Instituto San Tiago Dantas de Direito e Economia. Foi membro da Comissão de Juristas do Senado Federal para a Reforma da Lei de Arbitragem e Mediação. É sócio do Escritório Reis, Tôrres, Florêncio, Corrêa e Oliveira Advocacia.

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