Opinião

No processo penal não existe o poder geral de cautela

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6 de março de 2017, 6h19

No processo civil, em face da impossibilidade de o legislador antever todas as situações de risco, outorga-se expressamente ao juiz o poder de conceder a tutela de urgência que reputar mais apropriada ao caso concreto, ainda que não prevista em lei. [1]

Trata-se do chamado poder geral de cautela, anteriormente previsto no artigo 798 do revogado Código de Processo Civil, que admitia a concessão de medidas cautelares atípicas ou inominadas, e agora contemplado como poder geral de editar tutelas provisórias, de urgência ou de evidência, no atual Código de Processo Civil (artigo 297).

Assentada a premissa de que o processo penal é um instrumento limitador do poder punitivo estatal (artigo 5º, LIV, CF), exige-se a observância da legalidade estrita e da tipicidade processual para qualquer restrição ao direito de liberdade. [2]

O princípio da legalidade incide no processo penal, enquanto “legalidade da repressão”, como exigência de tipicidade (nulla coactio sine lege) das medidas cautelares, [3] a implicar o princípio da taxatividade: medidas cautelares pessoais são apenas aquelas legalmente previstas e nas hipóteses estritas que a lei autoriza. [4]

O juiz, no processo penal, está rigorosamente vinculado às previsões legislativas, razão por que somente pode decretar as medidas coercitivas previstas em lei e nas condições por ela estabelecidas, não se admitindo medidas cautelares atípicas (isto é, não previstas em lei) nem o recurso à analogia com o processo civil. [5]

No processo penal, portanto, não existe o poder geral de cautela. [6]

Nem se invoque a proporcionalidade para legitimar a adoção de medida cautelar atípica, ainda que a pretexto de ser mais favorável ao imputado.

Para Vittorio Grevi, é indubitável o significado garantístico do princípio da legalidade, sob o perfil da taxatividade, por vincular rigorosamente às previsões legislativas o exercício da “discricionariedade” do juiz em matéria de limitação da liberdade da pessoa. [7]

Como aduz Willis Santiago Guerra Filho, a preservação de direitos fundamentais constitui a essência e a destinação da proporcionalidade. [8]

A proporcionalidade, portanto, é um anteparo destinado à proteção de direitos fundamentais, [9] e não uma válvula ajustável ao talante do intérprete para justificar suas violações. A proporcionalidade não pode ser transformada em “gazua apta a arrombar toda e qualquer garantia constitucional”. [10]

A propósito, Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano adverte que, no processo penal, a ponderação dos interesses em conflito não pode conduzir à quebra do princípio da legalidade, de modo que, por mais relevantes que sejam os interesses estatais, não encontra justificação a adoção de medidas legalmente inadmissíveis, ainda que o puro contrapeso dos valores envolvidos no caso concreto aconselhe ignorar o interesse individual em benefício da comunidade. [11]

O crime de coação no curso do processo é um exemplo emblemático.[12]

Em razão da pena máxima a ele cominada não exceder a quatro anos, é vedada a decretação da prisão preventiva (artigo 313, I, CPP), que, originariamente, [13] somente será admitida se o imputado for reincidente em crime doloso (artigo 313, II, CPP) ou se houver dúvida a respeito da identidade civil do imputado ou se ele não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la (artigo 313, parágrafo único, CPP). Logo, se o autor da coação no curso do processo for primário, o juiz somente poderá impor-lhe medidas cautelares diversas da prisão, reservando-se a prisão preventiva, tão somente, para a hipótese de seu descumprimento.[14]

Diante do princípio da legalidade estrita, não cabe argumentar, para contornar a expressa vedação legal à prisão preventiva originária, com a proporcionalidade e com o interesse público, a pretexto de que “o legislador esqueceu-se do tipo previsto no artigo 344 do Código Penal, quando insculpiu a regra limitativa do artigo 313, I, do CPP” e das “severas consequências, frequentemente irreversíveis, que podem advir da conduta daquele que intimida testemunhas no curso de um processo criminal”.[15]

Não há como, repita-se, placitar esse entendimento, uma vez que, em sede de medidas cautelares pessoais, o exercício do poder jurisdicional está estritamente vinculado ao princípio da legalidade, e a ponderação dos supostos interesses em conflito não pode levar à quebra desse princípio.

Se o crime de coação no curso do processo “envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência”, a prisão preventiva também não poderá ser decretada de forma originária, mas sim de forma substitutiva à medida protetiva de urgência imposta, para garantir a sua execução (artigo 313, III, CPP). É o caso do agente que, proibido de se aproximar e de manter contato com a vítima (artigo 22, III, “a” e “b”, da Lei 11.340/06), usa de violência ou grave ameaça para compeli-la a não comparecer à audiência de instrução designada.

Em suma, as medidas cautelares limitadoras da liberdade reduzem-se um número fechado de hipóteses, “sem espaço para aplicações analógicas ou outras intervenções (mais ou menos criativas)” do juiz, ainda que a pretexto de favorecer o imputado.[16] Trata-se de uma enumeração exaustiva (numerus clausus), e não de uma lista aberta, meramente exemplificativa (numerus apertus).

No contexto do princípio da legalidade, insere-se a questão da condução coercitiva de investigado para prestar depoimento em inquérito policial, objeto, no Supremo Tribunal Federal, da ADPF 395, relator o ministro Gilmar Mendes, ainda não julgada.

Nos termos do artigo 260 do Código de Processo Penal, “se o acusado não atender a intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”.

Analogamente, os artigos 201, § 1º, e 218 do Código de Processo Penal estabelecem que, se o ofendido ou a testemunha, regularmente intimados, deixarem de comparecer sem motivo justificado a ato designado para sua inquirição, o juiz poderá determinar sua condução coercitiva.

Como se observa, a ratio da condução coercitiva é a recalcitrância do imputado, do ofendido ou da testemunha em atender ao comando da autoridade.

Ocorre que, mesmo quando não configurada a prévia recalcitrância, tornou-se usual a determinação judicial de imediata condução coercitiva de investigado à repartição policial, a pretexto de momentâneo perigo à produção de provas, notadamente quando se cumprem simultaneamente outros mandados de prisão e de busca e apreensão. Invoca-se ainda, a necessidade de se evitar que os vários investigados combinem versões entre si.

Essa medida não tem justificação constitucional, haja vista que o imputado tem o direito de permanecer em silêncio. Qual a razão para conduzi-lo coercitivamente para prestar depoimento, se ele goza do privilégio contra a autoincriminação?

Não bastasse isso, excluída a hipótese de recalcitrância em atender ao chamamento de autoridade, não existe previsão legal para a condução coercitiva, ainda que fundada em suposto perigo para a investigação, sendo vedada, como já exposto, a invocação do poder geral de cautela.

Dessa feita, ausentes os requisitos da custódia cautelar, não se pode impor ao investigado a condução coercitiva, ao arrepio do artigo 260 do Código de Processo Penal e do princípio da taxatividade, ao argumento de que se trataria de uma medida mais benéfica que a prisão temporária ou preventiva.

Mais uma vez, não há espaço para aplicações analógicas, ainda que a pretexto de favorecer o imputado.

Finalmente, o princípio da taxatividade (numerus clausus) não se resume às espécies de medidas cautelares legalmente previstas. O próprio rol de exigências cautelares também é taxativo, e não se permite ao juiz justificar a aplicação de uma medida cautelar típica com base em requisitos não previstos em lei. [17]


1 As considerações a seguir constituem excerto de trabalho do autor, com acréscimos para o presente artigo. CAPEZ, Rodrigo. A individualização da medida cautelar pessoal no processo penal brasileiro. São Paulo, 2015. dissertação (Mestrado em Direito) Universidade de São Paulo.

2 ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 315-316.

3 SANGUINÉ, Odone. Prisão cautelar, medidas alternativas e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 69.

4 GREVI, Vittorio. Compendio di procedura penale. In CONSO, Giovanni; GREVI, Vittorio; BAGIS, Marta (orgs).______. 6ª ed. Pádua: CEDAM, 2012, pp.395-396. TONINI, Paolo. Manuale di procedura penale. 14ª ed. Milão: Giuffrè Editore, 2013, p. 420. CARO, Agostino de. Trattato di procedura penale. In SCALFATI, Adolfo (org.).Turim : UTET Giuridica, 2008, p. 35, Vol. 2. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 2012, p. 708.

5 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9ª ed. rev. e atual. 2ª tir. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 782. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 2012, pp. 759-761.

6 GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 57. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 2012, p. 759-761. LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 9ª ed. rev. e atual. 2ª tir. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 781-782. GOMES, Luiz Flávio. Prisão e medidas cautelares: comentários à Lei 12.403, de 4 de maio de 2011. In BIANCHINI, Alice et al; GOMES, Luiz Flávio; MARQUES, Ivan (coords). 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 46. Em sentido contrário, admitindo o poder geral de cautela para medidas cautelares pessoais, desde que diversas da prisão: LIMA, Marcellus Polastri e. Curso de processo penal. 7ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, pp. 568-574.

7 GREVI, Vittorio. Compendio di procedura penale. In CONSO, Giovanni; GREVI, Vittorio; BAGIS, Marta (orgs).______. 6ª ed. Pádua: CEDAM, 2012, pp. 395-396.

8 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Princípio da proporcionalidade e devido processo legal. In: SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 265.

9 ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Medidas cautelares pessoais no processo penal. 1º e 2º sem. de 2012. Notas de aula da graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Anotações pessoais.

10 HC nº 95.009/SP, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Eros Grau, DJe de 19/12/08.

11 GONZALEZ-CUELLAR SERRANO, Nicolas. Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal. Madrid: Colex, 1990, pp. 69 e 231. Esse autor critica, veementemente, a possibilidade de, mediante um contrapeso supralegal de valores, desligado das garantias estabelecidas por lei, adotarem-se medidas legalmente inadmissíveis, quando concorrerem importantes interesses do Estado. “Em nosso juízo, se se aceita o contrapeso ‘supralegal’ de valores para justificar o descumprimento da lei, em prejuízo do grau de proteção dos direitos individuais estabelecido, abre-se uma brecha no princípio da legalidade e se atribui ao princípio da proporcionalidade uma função pervertida que, longe de favorecer os direitos fundamentais do cidadão, fazem com que o princípio perca sua finalidade de limite das restrições, permitindo-se, com isso, ao Estado mascarar, com argumentos pseudojurídicos, atuações arbitrárias” (Op. cit., p. 71).

12 Art. 344 do Código Penal: “Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral. Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos de reclusão, e multa, além da pena correspondente à violência”.

13 Se ao autor da coação no curso do processo tiver sido imposta medida cautelar diversa da prisão, o seu descumprimento poderá ensejar a decretação da prisão preventiva (art. 312, parágrafo único, CPP). Mas não se tratará de prisão preventiva originariamente decretada, mas de prisão substitutiva de outra medida cautelar, em razão do seu descumprimento.

14 Nesse sentido, SILVA, Marco Antônio Marques da; FREITAS, Jayme Walmer de. Código de processo penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 493-494.

15 Nesse sentido, Cláudio do Prado Amaral e Sebastião Sérgio da Silveira, que ainda indagam: “Alguém preferirá aplicar medidas não privativas de liberdade sobre indivíduo que vem descarada e agudamente ameaçando testemunhas em um processo crime?”. (AMARAL, Cláudio do Prado; SILVEIRA, Sebastião Sérgio da. Prisão, liberdade e medidas cautelares no processo penal: as reformas introduzidas pela Lei nº 11.403/11 comentadas artigo por artigo. Leme: J. H. Mizuno, 2012, pp. 99-100). A nosso ver, não se trata, todavia, de uma mera questão de preferência por parte do juiz, mas sim de estrita observância do princípio da legalidade.

16 CHIAVARIO, Mario. Diritto processuale penale – profilo istituzionale. 5ª ed. Torino: Utet Giuridica, 2012, p. 717. Contra: CRUZ, Rogério Schietti Machado. Prisão cautelar: dramas, princípios e alternativas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp.178-181. MENDONÇA, Andrey Borges de. Prisão e outras medidas cautelares pessoais. São Paulo: Método, 2011, pp. 79-84. Antes da Lei nº 12.403/11, havia decisões judiciais que, sem previsão legal, ao arrepio do princípio da taxatividade e a pretexto do exercício de um poder geral de cautela, impunham o recolhimento do passaporte do imputado como conditio sine qua non para a concessão ou manutenção da liberdade provisória, sob o falacioso argumento, nas palavras de Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró, de que, com essa medida cautelar atípica, buscava-se beneficiar o imputado, evitando-se a sua prisão. Ocorre que as alternativas de então eram somente prisão cautelar ou liberdade provisória, no caso de flagrante legítimo. Logo, ausentes os pressupostos ou requisitos da custódia cautelar, se o agente houvesse sido preso em flagrante, teria direito à liberdade provisória, e se não houvesse flagrante, seria vedada a decretação da prisão preventiva. Em ambos os casos, a consequência deveria ser a liberdade (provisória, no primeiro caso, e plena, no segundo), sem o ônus da entrega do passaporte. (BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 2012, p. 760).

17 TONINI, Paolo. Manuale di procedura penale. 14ª ed. Milão: Giuffrè Editore, 2013, p. 418.

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