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Diálogo com sistemas de Justiça indígenas como forma de resolução de conflitos

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6 de março de 2017, 8h00

O Brasil tem hoje quase 1 milhão de indígenas, distribuídos em 305 etnias. Segundo o último censo do IBGE, há povos indígenas em rigorosamente todos os estados brasileiros[1]. O censo de 2010 apontou um total 896.917 índios no país, então não é desarrazoado concluir que, passados sete anos, esse número esteja ao redor de um milhão. Cerca de 13% do território brasileiro são terras indígenas já demarcadas e homologadas. Alguns estados, como Roraima, por exemplo, têm quase 50% de seu território destinado como terra indígena. Muitos desconhecem, por outro lado, que a cidade de São Paulo tem 12.977 indígenas, um número bastante expressivo.

Há uma enorme diversidade cultural entre os povos indígenas, de modo que é inapropriado referir-se à “cultura indígena” como se fosse uma só. Apesar de vários pontos de contato culturais, são povos diversos, com línguas, religiões e cosmologias diferentes. Um guaraní de São Paulo não tem a mesma cultura que um macuxi de Roraima, assim como um fulni-ô de Pernambuco não tem exatamente a mesma cosmologia que um yanomami da Amazônia ou um kaingang do Rio Grande do Sul.

Uma dimensão da estrutura social dos povos indígenas insistentemente invisibilizada são seus sistemas de Justiça. Sim, eles os têm, e temos muito o que aprender observando seus modos de resolução de conflitos. A despeito de boa parte dos povos indígenas terem perdido muito de sua estrutura social de origem, em virtude do contato prolongado com a comunidade nacional, muitos deles ainda mantém seus sistemas jurídicos próprios e outros se esforçam por resgatá-los. São centenas, milhares de anos desenvolvendo leis e mecanismos de aplicação delas para que invasores cheguem, e, simplesmente, desconsiderem tudo e queiram impor um sistema que, para eles, não faz o menor sentido. A tentativa de fazer valer as regras que criamos, segundo a nossa cultura e nosso sistema político, para comunidades que tem seus próprios meios de regulação, pode se mostrar desastrosa.

Há algumas proposições gerais que identificam sistemas de Justiça em qualquer sociedade, como propõe Shelton Davis[2]. São elas: a) em toda sociedade existe um corpo de categorias culturais, de regras ou códigos que definem os direitos e deveres legais entre as pessoas; b) em toda sociedade disputas e conflitos surgem quando essas regras são rompidas; c) em toda a sociedade existem meios institucionalizados através dos quais esses conflitos são resolvidos e através dos quais as regras jurídicas são reafirmadas e/ou redefinidas. Não considerar a ocorrência desses fenômenos nas muitas comunidades indígenas do Brasil é negar o óbvio, é obliterar sofisticados mecanismos jurídicos desenvolvidos desde tempos imemoriais.

Cito o exemplo dos Ingarikó, povo que habita a região mais setentrional do Brasil, no norte da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, ao pé do majestoso Monte Roraima. Eles não têm um código escrito, mas possuem normas que são transmitidas oralmente, de geração em geração. São regras legisladas conforme suas próprias instituições, muito embora, como já dito, não sejam escritas. Quando uma regra é quebrada, um elaborado sistema de resolução de conflitos é acionado. Há, pelo menos, quatro instâncias para tentar resolver a questão. A primeira é a família. Sendo algo que não pode ficar apenas na esfera privada da unidade familiar, o problema é levado ao Tuxaua (líder político, uma espécie de cacique). Não podendo dar solução, chama-se o Esak, um líder religioso, mas também guardião da cultura Ingarikó, que acumula alguns poderes políticos. Tanto o Tuxaua quanto o Esak tentam resolver a questão ouvindo os envolvidos na quebra das normas, as respectivas famílias e a comunidade. Se ainda assim não for pacificada a demanda, leva-se à instância máxima, o Pukkenak, líder máximo dos Ingarikó, guardião de toda cultura de seu povo, com poderes políticos e religiosos, acima do Tuxaua e do Esak. Ele, após ouvir todos os envolvidos, famílias e comunidade, decidirá a questão.

Num momento em que o CNJ e o CNMP propõem o incentivo à autocomposição, os operadores do Direito deveriam olhar com mais atenção para os seculares e avançados mecanismos de resolução de conflitos das comunidades indígenas. Chegar com a imposição de um sistema que, em muitos casos, não traz bons resultados sequer para nossas próprias demandas, em vez de pacificar um conflito e resolver uma questão, traria ainda mais desarranjo social, o que, sabidamente, não é a finalidade do Direito.

Se Direito é saber local, com respeito ao lugar, à época, à categoria e à variedade de seus temas, como propõe Geertz[3], que enfatiza a necessária relação dialética entre aquele e a antropologia, o jurista precisa ter o olhar sensível para além da fria letra da lei e a capacidade de perceber esses outros saberes que estão tão próximos a todos nós.

Se queremos um sistema de Justiça mais democrático e mais efetivo, os sistemas de Justiça das muitas comunidades indígenas não podem ser ignorados. Aqui podemos tanger aquilo que se denominou de interlegalidade, ou seja, em vez de haver um único ordenamento jurídico vigente, há uma pluralidade de ordenamentos inter-relacionados[4]. Essa ideia é oriunda dos estudos de Boaventura Souza Santos, que, embora português, foi quem iniciou a produção de um pluralismo jurídico brasileiro[5].

Há inevitável celeuma quando o assunto é reconhecer ordenamentos jurídicos distintos num mesmo espaço geográfico, mas é nossa Constituição Federal que dispõe que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”[6], ou seja, toda sua cultura. As regras jurídicas estão inseridas em sua organização social, nos seus costumes e nas tradições, sendo, portanto, protegidas constitucionalmente. Não seria, pois, inconstitucional, desconsiderar tal saber local que é o Direito de comunidade indígena, para a imposição de um Direito que lhe é estranho?

Vê-se que o diálogo entre os sistemas de Justiça não é apenas desejável, mas absolutamente necessário, se queremos, de fato, cumprir o texto constitucional e respeitar nossos muitos povos indígenas, donos originários dessa terra brasilis e com quem temos muito a aprender.


[1] www.indigenas.ibge.gov.br, acessado em 1º/3/2017.
[2] DAVIS, Shelton H. Antropologia do Direito. Rio de Janeiro, RJ: Zahar Editores, 1973.
[3] GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 14. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
[4] ALBEMAZ, Renata Ovenhausen; WOLKMER, Antonio Carlos. As questões delimitativas do Direito no pluralismo jurídico. In WOLKMER, Antonio Carlos. NETO, Francisco Q. Veras. LIXA, Ivone M. (organizadores). Pluralismo Jurídico: Os novos caminhos da contemporaneidade. São Paulo: Saraiva, 2010.
[5] SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: Contra o desperdício da experiência. 3ª Ed. São Paulo: Cortez, 2001.
[6] CONSTITUIÇÃO Federal, artigo 231.


Referências bibliográficas
ALBEMAZ, Renata Ovenhausen; WOLKMER, Antonio Carlos. As questões delimitativas do Direito no pluralismo jurídico. In WOLKMER, Antonio Carlos. NETO, Francisco Q. Veras. LIXA, Ivone M.(organizadores). Pluralismo Jurídico: Os novos caminhos da contemporaneidade. São Paulo: Saraiva, 2010.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
DAVIS, Shelton H. Antropologia do Direito. Rio de Janeiro, RJ: Zahar Editores, 1973.
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 14. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: Contra o desperdício da experiência. 3a Ed. São Paulo: Cortez, 2001.

Sites visitados
www.indigenas.ibge.gov.br, acessado em 1º/3/2017.

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    é promotor de Justiça em Roraima, coordenador do Núcleo de Incentivo à Autocomposição do MP-RR, professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e integrante do MP Democrático.

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