Segunda Leitura

Nas profissões jurídicas, é essencial saber dizer e aceitar o "não"

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

5 de março de 2017, 8h03

Spacca
As formas de relacionamento humano variam ao redor do mundo e, entre elas, está a forma de negar-se algo, seja dizendo, seja recebendo.  Alemães e norte-americanos dizem não de forma direta. No lado oposto, mexicanos raramente se colocam na negativa, preferindo sempre, delicadamente, contemporizar na resposta.

Nós, brasileiros, estamos mais para a segunda do que para a primeira maneira de agir. Na maioria das vezes, ao invés do não damos uma série de considerações que, obliquamente, procuram significar a mesma coisa.

Por outro lado, a maneira de receber o não também varia conforme os hábitos culturais do país ou, nos de grande extensão territorial como o nosso, nas diferentes regiões. Com efeito, um inglês receberá naturalmente o indeferimento de uma pretensão exteriorizada. Já para um brasileiro, a negativa tende a ser levada pelo lado pessoal. Procura-se dar a ela um motivo qualquer, sempre acompanhado de um sentimento negativo, como parcialidade, inveja ou ciúme.

Se assim ocorre na vida em geral, mais ainda sucede nas profissões jurídicas, onde os conflitos são permanentes e, bem ou mal, têm que ser decididos. Vamos à análise, dividindo o não em dois grupos, quando se diz e quando se recebe e, finalmente, apontando-se caminhos.

1) O dever de negar
Decidir é parte da rotina de algumas profissões. No mundo jurídico, decide quem a lei dá poderes para tanto. Na magistratura isto faz todo dia. No magistério, exceto nos cargos de direção, decisões são mais raras, geralmente quando o professor atribui notas. Na esfera administrativa, inúmeros requerimentos são avaliados nas prefeituras ou secretarias de Estado. A Polícia Militar toma difíceis decisões quando tem que enfrentar grandes manifestações populares.

Decisões judiciais exigem motivação, por força do artigo 93, inciso IX, da Constituição. Nelas é que o subscritor dará as razões do indeferimento, justificando-o do ponto de vista jurídico. A negativa poderá ser direta e exteriorizar-se pelo verbo indeferir, ou por outras formas mais suaves, como “nego provimento ao recurso” ou “denego a segurança”. Da mesma forma, decisões administrativas exigem motivação que, segundo Marçal Justen Filho, é a “expressão que indica a exposição pública e expressa das razões que conduziram o agente a produzir certo ato administrativo”.[1]

Nem todos têm consciência de que dizendo sim ou não estão a cumprir o seu dever e por isso, embora devam ser respeitosos, não devem ser medrosos, fracos. Nunca me esqueço da sentença em que o juiz tinha tanto receio de melindrar a parte vencida, que no trecho conclusivo disse, quase pedindo desculpas, “.outro jeito não tenho senão julgar improcedente a ação para o fim de…”. Horrível.

É certo que, no imaginário popular, quem nega, ainda que com base na lei, regra geral é confundido com uma pessoa má e inflexível. Por exemplo, um corregedor da Justiça indefere o afastamento de um juiz por 10 dias, para fazer um curso no exterior, pelo fato de ele ser o único juiz em uma comarca trabalhosa e com processos com réus presos. Provavelmente será apontado como autoritário e o requerente sentir-se-á uma vítima.  No entanto, a negativa em tal caso simplesmente sobrepôs o interesse público sobre o particular.

Imagine-se, todavia, que a autoridade tem dificuldade em dizer não.  Psicologicamente, não está adequada ao papel difícil de decidir, detesta negar e, insegura, tem medo de ser rejeitada no grupo. Ou então, sem dizer sim ou não, adia reiteradamente a decisão, deixando o interessado em situação indefinida. Isto pode ser mais frequente quando o exercício da autoridade é transitório, como o exercido por um procurador de um município guindado ao cargo de secretário de relações jurídicas.

O fato é que a pessoa indecisa, temerosa, quando exerce poder de mando e não sabe negar nada a ninguém, acaba sendo vista como fraca e desagrada outras pessoas que, dela, esperavam ações firmes, que lhes transmitissem segurança. Este tipo de pessoa acaba, por força de sua personalidade, tornando-se infeliz.

2) A capacidade de absorver o não
No outro lado da moeda encontra-se a dificuldade de aceitarmos decisões que vão contra nossos interesses. O não desagrada a todos. Portanto, desapontamento, inconformismo, crença de ser injustiçado, ódio, são os sentimentos que podem vir às nossas mentes diante da negativa.

Se todos têm dificuldade em absorver o não, maior ainda será a dificuldade das novas gerações, pouco ligadas à disciplina e à hierarquia. Complexos fatores sociológicos explicam o fenômeno, mas, basicamente, as resistências são maiores porque os pais, querendo blindá-los das dificuldades próprias da vida, educaram-nos com proteção excessiva. Como disse em entrevista o filósofo Mário Sérgio Cortella, “Há pais e mães que saem pelo caminho colocando almofadas para que, a cada tropeço, o filho caia em um lugar macio”.[2] 

Disto se seguem conflitos desnecessários que podem causar, a médio prazo,  dor e sofrimento.  Por exemplo, uma jovem da região sul do país que, aprovada em concurso para delegado de polícia na região amazônica, desejando exercer suas funções na capital, recusa assumir ou permanecer em município distante, cujo acesso se dá apenas por barco. Sua pretensão é indeferida para que não se crie precedente. Inconformada, ela invoca doença pessoal, em família ou união de cônjuges, criando problemas para a administração superior e para a cidade que ficará sem delegado por longo tempo.

Contudo, não se suponha que apenas a geração Y tem dificuldade em aceitar as recusas. De uma forma ou de outra, inclusive nos mais velhos, a negativa nunca é bem-vinda.  Imagine-se um advogado antigo que, ao candidatar-se à presidência de uma subseção da OAB no interior de um estado, é vencido por um opositor novo, ao seu ver inexperiente e despreparado. O não recebido veio de forma genérica, imprecisa, resultado de votos depositados na urna, sem possibilidade de identificação.

Reagir com indignação, cortar relações com os colegas, certamente não será uma medida inteligente, mas sim caminho da solidão. Cumprimentar o adversário e preparar-se para as próximas eleições será o caminho adequado. Ou então, discretamente, abandonar a política de classe.

Em suma, é preciso ter maturidade e, como ensina o psicólogo Paul Kleiman, “um indivíduo tem que aceitar que a vida nem sempre funciona da maneira que esperava” e que os entraves, as negativas, razoáveis ou não, fazem parte da existência.

3) Agir e reagir da melhor forma
Nas duas hipóteses, a ação (negar) ou a reação (reagir ao não), exigem posturas de equilíbrio, com visão de longo alcance.

Em posição de mando, é imprescindível saber dizer não, evidentemente de forma polida, respeitosa, mas firme. Thaiana Brotto observa que “Saber dizer ‘não’ é uma tarefa complicada, mas totalmente necessária. É preciso saber se impor e tomar suas próprias decisões. Isso não quer dizer que, com essa atitude, você estará deixando de ser amigo ou uma pessoa prestativa. Você estará apenas assumindo suas próprias escolhas e optando por fazer apenas aquilo que está ao seu alcance.”[3]

Assim, quem não consegue desempenhar tal papel deve evitar assumir tal tipo de responsabilidade, permanecendo em atividades em que o conflito direto seja menor. Por exemplo, em um tribunal, evitar a corregedoria, sempre mais tensa, optando pela Vice-Presidência ou coordenação de Juizados Especiais, atividades onde o percentual de possibilidade de confronto com interesses opostos é menor.

Na outra ponta, quem recebe o não deve reagir com maturidade e não de forma atabalhoada e infantil, saindo a criticar o autor do indeferimento pelos corredores da repartição. O inconformismo deve ser bem direcionado. Um recurso bem fundamentado e sem ofensas pessoais, aliado, quando possível, a uma explicação oral, aumentará a possibilidade de reverter a situação indesejada.

E assim, “vivendo e aprendendo a jogar”, como diz Guilherme Arantes em sua música Aprendendo a jogar, há que se prosseguir na vida, procurando dar de si o melhor, a fim de que as relações sejam fonte de felicidade e não de conflitos inúteis, que embranquecem os cabelos e originam indesejadas gastrites

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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