Diário de Classe

A flecha do tempo altera o sentido do ato infracional

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4 de março de 2017, 8h00

Spacca
A aplicação de medidas socioeducativas deve se vincular ao projeto de futuro do adolescente, e não insistir em reduzi-los aos erros do passado. A inspiração das teorias absolutas da pena que contaminam a lógica do ato infracional, a saber, as da retribuição do mal causado, deve ser superada por qualquer uma que tenha percebido que a intervenção na vida do adolescente é uma aposta no futuro[1].

Essa leitura deve se dar conta de que o tempo cronológico (dias, meses, anos), diferentemente dos adultos, transcorre com maior velocidade na adolescência e, decorridos meses ou anos, não se trata mais da mesma situação do mundo da vida.

Por isso, a leitura retributivista, além de ser incompatível com a doutrina da proteção integral, desconsidera a aposta no adolescente que, por caminhos nem sempre auxiliados pelo Estado, deve conseguir articular sua vida, dando-lhe algum sentido.

Operar na área do ato infracional exige certa maleabilidade no tocante às condutas infracionais, justamente porque não se trata com alguém cuja capacidade de responder penalmente por seus atos seja plena; ainda, como é próprio da adolescência, trata-se com alguém que se encontra em momento de experimentação de si diante dos limites, a fim de fixar sua estrutura psíquica, desejos e sentido de vida, o que compreende o arriscar-se, o transgredir, enfim, o enfrentamento do que está posto. Não se pode, portanto, impingir-lhe a pena no sentido de diagnóstico, fechando o mundo do adolescente a essa ocorrência transitória. Dadas suas circunstâncias, o operador do Direito deve apostar sempre na possibilidade de outra perspectiva para sua vida — e isso só se obtém se esse viés estiver presente.

Disso resulta que a execução da medida socioeducativa, desde que seguidas as disposições legais (Sinase, Lei 12.594/12), deve construir coletivamente um plano individual de atendimento em que a configuração do ato infracional seja condição necessária, mas não suficiente, para imposição de medidas socioeducativas.

A todo o tempo, então, deve-se verificar a pertinência, a função e o efeito da intervenção estatal, o que se insere numa perspectiva de retorno — pois o lacrar o adolescente num CID penal necessariamente frustrará e pesará, ainda mais, naquele que já não tem muitos incentivos nem condições para escolher diferente. Longos períodos entre o ato e a medida socioeducativa, em geral, deixam de fazer sentido, especialmente quando o adolescente já seguiu adiante. Potencializa-se nos casos em que a maioridade civil se consumou, e as demandas sociais são de outra ordem.

O desafio dos metidos na execução de medidas aplicadas em atos infracionais é o de poder, a todo o tempo, ter a capacidade de atualização da função na vida do adolescente e seus familiares.

A flecha do tempo empurra a vida de todos nós para novos caminhos, e a lógica da pena, mesmo aos que acreditam em retribuição, soa despropositada no ato infracional, e, por aproximação, aos atos ilícitos daqueles da faixa dos 18 aos 20 anos. O juiz responsável pela execução, assim, deve a todo o tempo analisar o contexto e o sentido que pode ser dado ao cumprimento da medida socioeducativa, no aqui e agora, alterando as coordenadas de tempo e espaço. Será preciso atualizar o adolescente que sofrerá os efeitos da medida socioeducativa.

Daí que a demora no processamento e julgamento dos recursos interpostos, especialmente nos casos de absolvição, exige que eventual determinação contida em acórdãos seja atualizada. Isso porque o tribunal julga a conduta e aplica a medida socioeducativa com os olhos voltados ao tempo passado, sem condições de aferir o efeito e a dimensão da aplicabilidade diferida no tempo da medida tida como cabível. Os efeitos nefastos de uma internação ou semiliberdade, em regra, devem ser justificados no momento em que se determina o cumprimento da medida socioeducativa, não bastando, para tanto, o julgado do tribunal.

Esse cuidado com o adolescente não significa desconsiderar o conteúdo decisório do tribunal. Muito pelo contrário, reconhece que a determinação faz sentido se mantidas as condições iniciais pelas quais a conclusão se operou. Mudadas as condições iniciais, cuja apuração deve ser preliminar, inclusive para construção do plano individual de atendimento, pode-se evitar uma medida gravosa, inservível no contexto atual por influência do tempo.

Essa capacidade de atualização da pertinência da medida socioeducativa no novo adolescente é condição de possibilidade para execução de determinações advindas de julgamentos, principalmente se decorrido mais de seis meses. Pensar o contrário é não se dar conta dos desafios e da função da medida socioeducativa em democracia.

É bem verdade que a maioria dos julgadores de segundo grau não foi formada na lógica da proteção integral, operando, ainda, na situação irregular e com o mapa mental da retribuição. Não estão errados, mas somente desatualizados. Daí que a compreensão decorrente de desrespeito às decisões por não se cumprir imediatamente aos comandos, no fundo, parte de uma má compreensão da verdadeira função da Justiça da Infância e Juventude.

O caminho está para ser construído, embora os que se dão conta do gap, esforçando-se para aplicar uma medida socioeducativa adequada no tempo e espaço, ainda sejam mal compreendidos. O tempo dirá. Sem que a medida socioeducativa seja adequada ao adolescente, no momento do início da execução da medida socioeducativa, deve-se alterar, modificar ou mesmo extinguir o que não mais se justifica.

Para terminar, dialogando com as boas almas cristãs de plantão na infância e juventude, cabe o registro do Tanach (תנ״ך), livro de Jó, que pode ensinar alguma coisa: “E não hei de eu ter compaixão da grande cidade de Nínive, em que estão mais de cento e vinte mil homens que não sabem discernir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda […]?” — a versão moderna fala de direitos humanos, e alteridade.


[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre; LOPES, Ana Christina Brito. Introdução crítica ao ato infracional: princípios e garantias constitucionais. Florianópolis: Empório do Direito, 2017 (no prelo).

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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