Consultor Tributário

Decadência do imposto sobre herança enseja decisões desencontradas

Autor

  • Igor Mauler Santiago

    é sócio-fundador do escritório Mauler Advogados mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

1 de março de 2017, 10h08

Spacca
Caricatura: Igor Mauler Santiago [Spacca]A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra fazer a fantasia
De rei ou de pirata ou jardineira
Pra tudo se acabar na quarta-feira”

(Tom Jobim/Vinicius de Moraes)

Contrastando bruscamente com a efusão do Carnaval, a Quarta-Feira de Cinzas adverte para a efemeridade da vida, ao evocar a morte. Não sendo místico, contribuirei para a gravidade do dia cuidando uma vez mais do tributo que nos acompanha nesta hora derradeira: o imposto sobre a herança (clique aqui para ler a coluna anterior sobre o tema).

Se “nada é certo, senão a morte e os impostos”, na dura sentença de Benjamin Franklin, ao imposto sobre a herança cabe o ônus de reunir essas duas fatalidades, o que contribui muito pouco para a sua boa imagem.

Adentrando o assunto, constatamos que a decadência no imposto sobre a herança permanece sujeita a incertezas. Há quem defenda tratar-se de tributo sujeito a lançamento por homologação — no qual o contribuinte antecipa o pagamento sem prévio exame da Administração —, hipótese na qual o prazo se contaria a partir da morte (Código Tributário Nacional, artigo 150, parágrafo 4º). Invoca-se em favor dessa tese o instituto da saisine, por força do qual a propriedade se transfere de imediato, mesmo para os bens sujeitos a registro (Código Civil, artigo 1.784). Nesse contexto, o dies a quo da decadência ficaria diferido para o primeiro dia do ano seguinte à morte apenas em caso de dolo, fraude, simulação ou ausência de qualquer pagamento (CTN, artigo 173, inciso I).

A qualificação não nos parece exata. Embora o fato gerador seja mesmo a morte — o que impõe a consideração da lei então vigente (CTN, artigo 144, caput, e Súmula 112 do STF [1]) e do valor então atribuível aos bens (ao contrário do que predica a Súmula 113 do STF [2]) —, a verdade é que o Estado nada pode fazer para a fiscalização e a cobrança do ITCMD:

a) no inventário, onde o lançamento é efetuado pelo juiz (CPC, artigo 638, parágrafo 2º), antes da vista comum sobre as primeiras declarações do inventariante (CPC, artigos 626, caput e parágrafo 4º, 627, caput, e 629);

b) no arrolamento, onde o lançamento cabe ao Fisco, antes do trânsito em julgado da sentença que homologa a partilha ou a adjudicação (CPC, artigo 659, parágrafo 2º).

Assentando na competência privativa da União para legislar sobre Direito Processual (Constituição, artigo 22, inciso I), esses comandos — embora veiculados por lei ordinária — acabam fazendo as vezes de normas gerais de Direito Tributário em matéria de ITCMD (o CTN é omisso quanto à dinâmica do imposto), numa prova de que são às vezes pouco nítidas as fronteiras entre os diferentes ramos do ordenamento.

Lançamento por homologação pode ocorrer no arrolamento sumário de espólios de menor valor (CPC, artigo 664) e na partilha extrajudicial (CPC, artigo 610, parágrafos 1º e 2º). De fato, a lei processual nada diz sobre a participação da Fazenda Pública nesses procedimentos, tampouco o fazendo quanto ao último o Conselho Nacional de Justiça, autorizado que estaria pela sua competência para regulamentar os serviços notariais (CF, artigo 103-B, parágrafo 4º, incisos I e III) [3]. A matéria fica, pois, relegada à decisão de cada legislador estadual, o que impede o seu tratamento sistemático nesta coluna.

Ressalvados esses dois casos, tem-se que o ITCMD se sujeita a lançamento com base em declaração (CTN, artigo 147), conclusão que se reforça ante a constatação de que não seria lógico computar-se contra o Fisco o tempo transcorrido antes que o imposto pudesse ser calculado e exigido.

Dessa forma, a decadência começa a fluir no primeiro dia do ano seguinte aos marcos indicados nas letras a e b acima, pois é a partir deles que o lançamento se torna viável. Transcorridos cinco anos do dies a quo assim fixado, nada mais pode ser reclamado pelo Fisco, seja quanto ao principal, seja quanto a diferenças de avaliação, seja quanto aos bens acaso omitidos pelos herdeiros. Trata-se da aplicação literal do artigo 173, inciso I, do CTN [4].

Entretanto, uma leitura equivocada da Súmula 114 do STF tem levado a jurisprudência a afastar-se dessa conclusão. Segundo o enunciado, aplicável ao inventário (a providência nele referida não existe no arrolamento), “o imposto de transmissão causa mortis não é exigível antes da homologação do cálculo". O acórdão que inspirou a sua edição foi o RE 21.675-EI/BA (Pleno, Relator Ministro Pedro Chaves, julgado em 4/12/1961), onde se decidiu que não cabe multa de mora quanto ao período anterior à homologação judicial do cálculo, pois até então o imposto não é devido, e isso ainda que o atraso no inventário seja imputável a manobras processuais dos herdeiros.

Nada que ver com decadência, ficando desautorizado o alcance que se pretende dar ao verbete, hoje tomado como se erigisse a homologação do cálculo em dies a quo do prazo para o lançamento do ITCMD. O ilogismo é claro, pois a homologação do cálculo equivale ao lançamento — aqui feito pelo juiz, como já se anotou (CPC, artigo 638, parágrafo 2º). Qual o sentido de adotar-se um ato como termo inicial do prazo para a sua própria realização? O lustro que se inicia com a homologação do cálculo é, sim, de prescrição da execução do contribuinte que não pague espontaneamente o imposto assim apurado.

Infelizmente, essa má compreensão se está consolidando no STJ (AgRg no REsp. 1.257.451/SPç AgRg no REsp. 396.457/RS) e no Tribunal de Justiça de São Paulo (Ag. 2142676-49.2014.8.26.0000ç EDcl. 2023181-40.2016.8.26.0000/50000), para não citarmos outros tribunais estaduais.

Mais graves são os arestos do TIT na linha de que a decadência só se inicia no primeiro dia do ano seguinte (1) à transmissão, pelos herdeiros, da declaração de imposto de renda onde constem os bens omitidos ao Fisco estadual (Câmara Superior, Processo DRTC-III 1132924/11) ou (2) à entrega ao Fisco estadual de documento que noticie a existência destes (11ª Câmara, Processo DRTC-III 291125/11). Trata-se de aniquilar inteiramente a noção de decadência, que é o prazo para Administração identificar o fato gerador e exigir o tributo que reputa devido, e não um prazo que se inicie após tal descoberta.

Ademais, há um paralogismo no raciocínio subjacente ao ponto 1: se o Estado teve ciência dos bens omitidos ao acessar a declaração de renda dos herdeiros, na esteira de convênio de assistência administrativa celebrado com a União (CTN, artigo 199), por que não consultou as declarações do de cujus ou do espólio, onde aqueles bens estavam consignados?

Quem dera, por intercessão de Alfredo Becker, a Quarta-Feira de Cinzas encerrasse também o Carnaval Tributário!


1 “O imposto de transmissão causa mortis é devido pela alíquota vigente ao tempo da abertura da sucessão.”

2 “O imposto de transmissão causa mortis é calculado sobre o valor dos bens na data da avaliação.”

3 A Resolução 35/2007 e a Recomendação 22/2016, que cuidam da partilha extrajudicial, são silentes a respeito deste ponto específico.

4 “Art. 173. O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados:

I – do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado.”

Autores

  • Brave

    é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!