Tribuna da Defensoria

Capacidade postulatória do defensor público natural é limitada

Autor

  • Bruno de Almeida Passadore

    é mestre em Direito Processual Civil pela USP. Defensor Público Auxiliar do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Paraná. Presidente da Comissão de Prerrogativas da da Defensoria Pública do Estado do Paraná.

30 de maio de 2017, 8h41

No presente estudo nos propomos a esclarecer um tema rotineiro na atuação dos membros da Defensoria Pública, principalmente àqueles atuantes na área cível, fazenda pública e família: a atuação do membro da instituição, enquanto representante judicial de pessoa individualmente considerada, fora de suas atribuições institucionais. Algo, algumas vezes, até mesmo imposto por normativas internas da instituição.

Veja-se, por exemplo, o seguinte caso hipotético. Uma determinada pessoa que faça jus à assistência jurídica é ré em um processo de alimentos movido na comarca de Foz do Iguaçu. Por outro lado, sendo residente na cidade de Curitiba e lá citada, procura os serviços da instituição na capital paranaense para defesa de seus interesses.

Por determinação do Conselho Superior da instituição, caberia ao defensor público lotado em Curitiba tomar as medidas iniciais defensivas — apresentação de contestação e eventual agravo de instrumento contra liminar desfavorável — e cabendo ao membro da instituição de Foz do Iguaçu os demais atos defensivos — participação em audiências, apresentação de memorais finais, interpor recurso de apelação, etc [1].

Porém isto não é só. É possível, também, que ao defensor público movido por um salutar anseio de tutela de direitos da coletividade mova ação em caráter institucional fora de suas atribuições. Assim, veja-se caso de ação coletiva ajuizada por ramo estadual da Defensoria Pública perante juízos federais [2].

Em todos esses casos, todavia, a atuação defensorial se mostra viciada.

A respeito, observa-se que a qualquer defensor público é conferida capacidade postulatória decorrente de lei (artigo 4º, §6º, da Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública – LONDP [3]), sendo, inclusive, não recomendável o registro nos quadros da OAB, tendo em vista a autonomia administrativa conferida à Defensoria Pública e a independência funcional garantida aos membros da instituição [4].

Assim, em um primeiro momento, pode-se chegar à conclusão de que, com a posse no cargo de defensor público, este profissional poderia, em tese, atuar perante todos os órgãos da justiça brasileira e de todas esferas federativas. Todavia, esta interpretação se mostra equivocada. Isto se dá, pois, diferentemente dos advogados particulares, a normativa de regência da Defensoria Pública estabelece uma série de limitações à capacidade postulatória de seu membro, a partir do momento que são fixadas atribuições aos seus órgãos de atuação [5].

Em outras palavras, se, de um lado, a lei confere capacidade postulatória aos defensores públicos, de outro lado, a este é vedado atuar ao seu bel prazer, sendo-lhes imposto um rol de funções das quais não pode fugir. Por sua vez, constata-se que este rol de atribuições, tradicionalmente, é estabelecido a partir da divisão judiciária da unidade federativa a que está vinculada a Defensoria Pública. Neste sentido, percebe-se que se opta por vincular certos órgãos de atuação da instituição a determinadas varas de certas comarcas (ou seções judiciárias) ou câmara (ou seções) de tribunais.

Tal situação decorre do rechaço da LONDP ao defensor público de encomenda, estabelecendo-se intenso controle ao poder de designação de membros da instituição para atuação em casos específicos. Portanto, garante-se a independência funcional de seus membros e, ao proibir interferências casuísticas na sua atividade, protege-se o jurisdicionado e a sociedade contra interesses escusos que possam advir de escolhas arbitrárias de defensores públicos [6].

Em nosso entender, o principal destinatário do princípio do defensor público natural é o próprio chefe da instituição, o qual não terá poder de ingerências no intuito de escolher o membro que irá atuar nos diversos casos em que a Defensoria Pública possa vir a atuar. Por outro lado, não só a este referida norma é dirigida. Neste sentido, em tese, é possível que outro membro da instituição, ainda que de mesma hierarquia funcional de seu par, venha a atentar contra as atribuições de seu colega. Situação que, até mesmo, poderia significar falta funcional do defensor público que venha a assim atuar.

Em paralelo a isto, a falta de atribuição atrai a sanção de invalidade ao ato processual praticado nesses moldes. Afinal, sendo a capacidade postulatória pressuposto processual, a sua ausência, por falta de atribuição do membro da Defensoria Pública, gera o vício de nulidade do ato praticado [7]. Noutros moldes: a atribuição do defensor público é evidente “elemento que interfere na capacidade postulatória dos membros da Defensoria Pública” [8].

Inegável, portanto, que, nos exemplos acima, a atuação de membro da Defensoria Pública, carente de atribuição para atuar no juízo de família da comarca de Foz do Iguaçu ou perante juízos federais, significaria atuação institucional irregular, conforme sólido posicionamento doutrinário de Franklyn Roger Alves Silva e Diogo Esteves:

Para que haja a regular atuação institucional […], o Defensor Público deve ter atribuição para prestar assistência jurídica ao assistido, seja de natureza genérica, em razão do acúmulo de funções do órgão de atuação, seja em caráter específico, em razão da designação especial. [9]

Portanto, ausente a capacidade postulatória por ausência de atribuição dos membros da Defensoria Pública nos casos hipotéticos, dever-se-ia decretar a revelia do réu no caso de defesa apresentada por membro da instituição com atribuição para atuar em Curitiba em processo em Foz do Iguaçu, ou extinguir sem resolução de mérito a ação ajuizada por profissional do ramo estadual da instituição perante juízo federal, desde que este vício não seja sanado oportunamente [10].

Por outro lado, e no intuito de não prejudicar os usuários dos serviços da instituição que não possa se locomover a comarca afastada de sua residência para garantir a defesa de seus direitos, em caso de procura dos serviços de órgão da Defensoria Pública sem atribuição para atuar no caso de aludido cidadão, a atuação de aludido membro da instituição deve ser dar exclusivamente na atividade meio da instituição. Em outros termos, a atuação eventual de defensor público em referidos casos jamais poderia se dar enquanto órgão de execução propriamente, mas apenas enquanto órgão auxiliar, colhendo informações, documentos ou, até mesmo, minutando peças e remetendo-as para o membro com atribuição para a causa, mas jamais tomando medidas judiciais exclusivas do defensor público natural.

Finalmente, em casos de atuação por ramo da Defensoria Pública estadual em casos de competência de juízos federais, não vislumbramos outra hipótese de solução, exceto a atuação desta em litisconsórcio com o ramo federal da Defensoria Pública, ante a clara ausência de capacidade postulatória do profissional atuante perante os juízos estaduais em demandas que venham a tramitar na Justiça Federal.


1 A respeito, veja-se o art. 2º, §3 da Resolução n. 19/2014 do Conselho Superior da Defensoria Pública do Estado do Paraná: “Caso o Defensor Público tenha atribuição para atuar na matéria correlata ao feito de interesse do usuário e no local onde tramitará o processo também exista Defensor Público com atribuição para atuar no caso, deverá o Defensor Público que prestou o atendimento realizar os primeiros atos judiciais necessários, remetendo o processo ao Defensor competente, conforme procedimento determinado na resolução específica”.

2 A título de exemplo, veja-se o seguinte caso: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/defensoria-publica-do-rj-pede-desbloqueio-de-contas-a-justica.ghtml, acesso em 29/05/2017.

 § 6º A capacidade postulatória do Defensor Público decorre exclusivamente de sua nomeação e posse no cargo público”.

4 Neste sentido: “[S]eria ilógica a Constituição prescrever a autonomia constitucional da Defensoria Pública e, de outro lado, permitir que seus membros fossem subordinados a uma entidade privada que possui, inclusive, conflitos de interesse em relação à Defensoria Pública” (SOARES DOS REIS, Gustavo Augusto; ZVEIBIL, Daniel Guimarães; JUNQUEIRA, Gustavo, Comentários à Lei da Defensoria Pública. São Paulo: Ed. Saraiva, 2013, p. 95)

5 ALVES SILVA, Franklyn Roger; ESTEVES, Diogo, A Nova Disciplina da Legitimação Extraordinária da Defensoria Pública no Novo CPC. In Coleção Repercussões do Novo CPC, coord. José Augusto Garcia de Sousa, Salvador: Ed. JusPodivm, 2015, Vol. 5 – Defensoria Pública, p. 317.

6 Em sentido próximo, porém versando sobre o tema do promotor público natural: MAZZILI, Hugo Nigro, Ministério Público. 4ª edição, São Paulo: Ed. Malheiros, 2015, p. 46/49

7 Neste sentido: “a falta de capacidade postulatória é caso de nulidade do ato” (DIDIER JR, Fredie, Curso de Direito Processual Civil. 17ª edição, Salvador: Ed. Juspodivm, 2015, vol. I, p. 334).

8 ALVES SILVA, Franklyn Roger; ESTEVES, Diogo, A Nova Disciplina da Legitimação Extraordinária da Defensoria Pública no Novo CPC. In Coleção Repercussões do Novo CPC, coord. José Augusto Garcia de Sousa, Salvador: Ed. JusPodivm, 2015, Vol. 5 – Defensoria Pública, p. 318.

9 A Nova Disciplina da Legitimação Extraordinária da Defensoria Pública no Novo CPC. In Coleção Repercussões do Novo CPC, coord. José Augusto Garcia de Sousa, Salvador: Ed. JusPodivm, 2015, Vol. 5 – Defensoria Pública, p. 318.

10 Neste sentido: “A falta de capacidade postulatória do autor implica extinção do processo, se não for sanada” (DIDIER JR, Fredie, Curso de Direito Processual Civil. 17ª edição, Salvador: Ed. Juspodivm, 2015, vol. I, p. 334). Igualmente, deve-se determinar a intimação pessoal da parte interessada para sanar o vício em sua representação por força, entre outros, do art. 485, §1º, do CPC.

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    é mestre em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da USP. Defensor Público Auxiliar do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Paraná. Presidente da Comissão de Prerrogativas da da Defensoria Pública do Estado do Paraná.

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