Instituto multifacetado

As medidas provisórias e a dinâmica entre jogo político e regras jurídicas

Autor

  • Felipe de Paula

    é sócio da área de Assuntos Governamentais e Regulação do Levy & Salomão Advogados. É doutor em Direito pela USP mestre em Ciências Jurídico-políticas pela Universidade de Coimbra e ex-secretário de assuntos legislativos do Ministério da Justiça (2010).

23 de maio de 2017, 6h42

Dois fatos recolocaram na agenda pública o tema das medidas provisórias e suas distorções. Primeiro, as suspeitas de que MPs ou emendas a MPs teriam sido "vendidas" por agentes públicos a interesses privados. Segundo, a recente decisão do presidente do Senado e do Congresso Nacional, Eunício Oliveira (PMDB-CE), de retirar unilateralmente, de um projeto de lei de conversão, emendas que, em sua avaliação, não tinham pertinência temática com o texto da MP original. Ambos os casos confirmam que há graves problemas na prática das MPs. No entanto, a adequada compreensão de seus limites passa pelo entendimento da dinâmica entre jogo político e regras jurídicas.

Em texto publicado nesta ConJur em 22 de outubro de 2015, defendi que não se deve culpar o instrumento em si. MPs oferecem maior agilidade e eficiência ao governo. Embora sujeita a críticas, a possibilidade de o Executivo emitir normas válidas desde logo, posteriormente apreciadas pelo Congresso, é consentânea com Estados contemporâneos, mesmo para situações não urgentes ou extremamente relevantes. Não se trata, aliás, de exclusividade brasileira.

Defendi também que seu uso frequente não caracteriza, necessariamente, atropelo constitucional por parte do Executivo. A dinâmica das MPs constitui espécie de jogo cooperativo, em que parlamentares têm incentivos para agir a posteriori. Não assumir agendas impopulares, negociar com interessados e elaborar cálculos políticos a partir de textos pré-definidos pode ser conveniente aos parlamentares.

Não obstante, o alerta sobre abusos é pertinente. O uso anômalo por parte de Executivo e Legislativo pode contribuir — como aparentemente contribuiu — para distorções político-econômicas instrumentalizadas via processo legislativo. A defesa de interesses pouco republicanos, sob formatos opacos e escusos, quando não ilegais, desvirtua a desejável abertura do processo legislativo.

Todavia, o debate continua marcado por dificuldades de diagnóstico e prognóstico. Importante elemento continua à margem de textos recentes sobre o tema. Defendo ser indispensável compreender como o jogo político e o desenho jurídico do instituto se influenciam e se retroalimentam. Variações da configuração jurídica das MPs alteram a dinâmica entre os poderes, assim como o diálogo entre Planalto e Congresso molda regras de tramitação. Tais oscilações impactam o grau de abertura a distorções.

Medidas provisórias não devem ser tratadas como objetos monolíticos. Constituem instituto essencialmente multifacetado, em particular quando analisada sua evolução ao longo dos últimos 30 anos. Limites, dinâmica e funções foram extremamente alteradas ao longo do período. Cada fase do instrumento transformou o incentivo do Executivo em utilizá-las, bem como o apetite dos parlamentares em se envolver. Não há “medida provisória”, mas, sim, “medidas provisórias”.

A realidade das MPs foi alterada ao menos cinco vezes. Funcionou de uma forma até 2001, com reedições e baixo controle por parte do Parlamento. Funcionou de outra forma a partir da Emenda Constitucional 32, com limites formais e materiais, maior participação parlamentar nos debates e o surgimento do trancamento da pauta que, paradoxalmente, ajudou o Executivo a controlar a agenda de votações.

Em 2009, mediante interpretação em uma questão de ordem, sobreveio na Câmara a chamada “doutrina Temer”. Ao permitir que projetos com temas cujo tratamento era vedado a MPs fossem votados em Plenário, a decisão aliviou o trancamento de pauta. Parte do interesse do Executivo pelo uso do instituto diminuiu, visto ter o governo perdido um de seus principais instrumentos de controle de agenda. Já em 2012, quando decisão do STF obrigou que a previsão constitucional de comissões mistas fosse observada (ADI 4.029), adequações procedimentais daí decorrentes, como a limitação do prazo para apresentação de emendas, alteraram o poder de relatores e diminuíram, em alguma medida, a margem de atuação de outros interessados. Senadores, depois de um longo tempo, também voltaram a participar dos debates.

Finalmente, nova dinâmica foi estabelecida em outubro de 2015, quando o Supremo deu forte sinal contrário a contrabandos ou “jabutis legislativos” (ADI 5.127). Desde então, 81 MPs foram editadas, e 37 transformaram-se em lei. A leitura dos novos atos normativos parece indicar que o número de contrabandos em MPs diminuiu. No mais, referências à falta de pertinência temática para rejeitar emendas têm sido mais frequentes. Escancarou-se a nova fase na última semana, quando o presidente do Congresso Nacional, em decisão individual, retirou jabutis incluídos pelo relator no Projeto de Lei de Conversão da MP 766 (Refis). Em suma: há novo procedimento e, na prática, novos contornos do instituto. Altera-se, portanto, o grau de abertura à instrumentalização.

O avanço das investigações em curso poderá mostrar se MPs foram ilegítima ou ilegalmente utilizadas. Agentes do Executivo e do Legislativo podem ter atuado nesse sentido, atendendo a interesses de setores privados. Resta claro, portanto, que medidas para diminuir tais riscos precisam ser adotadas. No entanto, é necessário compreender adequadamente o objeto: o grau de permeabilidade de MPs a interesses obscuros pode ter variado ao longo do tempo, porque variaram suas feições e os incentivos ao seu uso. Consequentemente, soluções aplicáveis a desenhos antigos não produzirão efeitos no regime atual.

Defendo que a redução do risco de instrumentalização da ação legislativa passa por medidas amplas, que ofereçam maior racionalidade ao processo legislativo e aperfeiçoem mecanismos de transparência, publicidade e rastreabilidade de sugestões normativas. Ainda assim, sugestões específicas à utilização das MPs podem e devem ser debatidas, desde que partam de diagnósticos adequados. Observar o impacto que a dinâmica das MPs gera na dinâmica política, e vice-versa, pode ser um bom começo.

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    é doutorando em Direito pela USP e pela Universidade de Leiden, Holanda. Mestre em Ciências Jurídico-políticas pela Universidade de Coimbra. Foi secretário de assuntos legislativos do Ministério da Justiça (2010).

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