Academia de Polícia

É prova lícita a confissão por gravação ambiental de Michel Temer?

Autor

  • Ruchester Marreiros Barbosa

    é delegado de polícia do RJ professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro da Escola da Magistratura de Mato Grosso e do Cers autor de livros palestrante e colaborador oficial da Comissão de Alienação Parental da OAB-Niterói.

23 de maio de 2017, 8h03

Spacca
No início da noite do dia 17 deste mês, fomos impactados com a divulgação da notícia de que o presidente da República, Michel Temer, em gravação de conversa entre ele e um dos donos da empresa JBS, Joesley Batista, segundo o qual o conteúdo revelaria confissões de condutas que seriam consideradas crime de obstrução da Justiça previsto no artigo 2º, parágrafo 1º da Lei 12.850/13, dentre outros, incluindo-se crime de responsabilidade previsto no artigo 85, II e VI da CR, regulamentados nos artigos artigos 6º, item 6, parte final, e 9º, item 7, ambos da Lei 1.079/50, revelando-se com isso uma tentativa de se interferir na operação "lava jato".

A partir daí devemos indagar: essa gravação significa o que juridicamente? É lícita ou ilícita? Por que investigar parece ser “terra sem lei”?

Para início de conversa, é importante destacar o significado de alguns termos em juridiquês, por exemplo: a) interceptação, como captação de sinal entre A e B, por terceiro, sem que aqueles saibam; b) escuta, como captação de sinal entre A e B, por terceiro, com o consentimento de um dos interlocutores[1]; e c) gravação clandestina, como captação de sinal por um dos interlocutores sem o conhecimento e consentimento do outro. Referimo-nos a sinal como onda eletromagnética advinda de telecomunicações (por voz), telemáticos ou informáticos (dados) e de ambiente, podendo ser sinais eletromagnéticos, como rádio e TV, sinais ópticos, como filmagens e fotografias, ou sinais acústicos, como gravação ambiente de uma conversa[2].

O caso Temer vem sendo divulgado de diversas formas, razão pela qual tomaremos como verdadeira uma primeira hipótese de que a gravação da conversa entre Joesley e Temer tenha sido gravada, entre presentes, por aquele sem o consentimento deste, tratando-se, portanto de uma gravação clandestina (ambiental). A segunda hipótese seria esta mesma gravação estar orientada por algum órgão de investigação, através de uma técnica especial de investigação, denominada de ação controlada (segundo a mídia), previsto no artigo 3º, III da Lei 12.850/13.

Quanto à primeira hipótese, os tribunais vêm admitindo a gravação clandestina[3] de conversação telefônica ou ambiental como prova lícita, prescindindo de autorização judicial, por ser gravação realizada por um dos interlocutores, ainda que sem o consentimento do outro, tema objeto de reconhecimento em repercussão geral no STF[4], não caracterizando uma forma de interceptação telefônica ou ambiental stricto sensu, prevista no artigo 5º, XII da CRFB, regulado pela Lei 9.296/06 e artigo 3º, II da Lei 12.580/13, mas, sim, pelo artigo 5º, X, CRFB, prevendo a reserva da intimidade, sem regulamento em lei, porém, por não se tratar de um direito absoluto, a intimidade somente fica proibida de ser revelada nas hipóteses legais de dever de sigilo, como, por exemplo, as informações entre advogado e cliente e em caso de autodefesa, ou seja, após demonstração de justa causa, como podemos ver nas lições de Lenio Streck[5]:

“Parece razoável admitir que um dos interlocutores, nos casos de autodefesa ou de defesa de terceiras pessoas ou da coletividade, poderá levar essa prova a juízo. O contrário seria levar o princípio constitucional da intimidade a um patamar liberal-individualista, alheio até mesmo ao conjunto principiológico exsurgente da Constituição, que aponta para a preservação da dignidade da pessoa humana e para a consagração dos direitos coletivos”.

Em síntese, as primeiras decisões do STF taxavam de ilícita a prova decorrente de gravação realizada por um dos interlocutores. Posteriormente, passou-se a admiti-la como válida, tendo-se, inclusive, sedimentado essa posição por meio de julgamento com repercussão geral. Em situações excepcionais (vítimas de corrupção passiva, concussão, sequestro), a corte acolheu como lícita a gravação feita por terceiros (escuta), mormente a polícia, com autorização da vítima ou de seus parentes[6].

Na segunda hipótese (ação controlada midiática), poderia um órgão do Estado se utilizar de um particular para obter de forma sub-reptícia a confissão da prática de algum crime de pessoa investigada em ambiente privado?

Inicialmente, cumpre salientar que defendemos o entendimento de que pessoas com foro por prerrogativa podem ser investigadas sem a teratológica construção pretoriana de autorização prévia pelo STJ ou STF, conforme defendemos em nossa obra Polícia Judiciária no Estado de Direito[7].

Diante de uma legítima investigação criminal em desfavor do presidente da República, como nosso Direito Processual Penal trata a questão da autoincriminação obtida por engodo ou estratagema para se obter a confissão da participação do investigado em um crime? Como se enfrentaria o princípio norteador da proibição de obrigar um investigado a produzir prova contra si mesmo, denominado de nemo tenetur ou nemo tenetur se detegere ou nemo tenetur se ipsum accusare?

Esse princípio talvez seja o mais importante a se destacar dentro das provas proibidas, que em nosso ordenamento constitucional se refeririam às ilícitas, denominada por Munõz Conde de "prohibiciones probatorias"[8], traduzidas do alemão "Beweisverbote", utilizado pelo jurista alemão Ernst Beling, citando com referência da amplitude do nemo tenetur o parágrafo 136 a) do Strafprozessordnung/StPO – Código de Processo Penal alemão.

Nessa obra, Conde levanta as controvérsias sobre o tema, trazendo julgados emblemáticos ocorridos nos tribunais alemãos e norte-americanos, nas quais são debatidos há muito tempo, desde 1903, sobre a extensão desse princípio. Traz decisões nas quais em determinados casos os princípios são violados por teses que tentam diminuir a incidência do princípio à salvaguarda de emprego de técnicas policiais e judiciais que na verdade burlam de forma fraudulenta a proibição constitucional de proibição de produzir prova contra si mesmo.

As teorias que questionam e debilitam a incidência do princípio do nemo tenetur se dá em geral nos casos de grande comoção social e principalmente no terrorismo e na criminalidade organizada. Porém, é fácil registrar que no Brasil há um grupo de pessoas que não possuem direitos, os “vagabundos”, os “etiquetados”[9], como integrantes de uma camada social de desprezíveis estigmatizados, nos quais esta obtenção ardilosa da confissão já vem há muito tempo sendo empregada e avalizada pela opinião pública, formada em grande escala pelo populismo penal midiático e pelas agências estatais de controle social, diga-se polícia, parquet e Judiciário.

Nesse sentido, traz a colação os comentários e críticas feitos pelo jurista alemão Claus Roxin, utilizando como paradigma um leading case da Suprema Corte alemã, na qual em sede policial um investigado que já havia se manifestado no sentido de exercer seu direito de permanecer calado, a polícia faz com que o amigo dele o telefone (investigado) ainda na delegacia, e este amigo o faz falar sobre sua participação no crime que se investigava, enquanto agentes policiais escutavam a conversa em outro ponto (hipótese que caberia juridicamente como uma gravação clandestina ou escuta, alterando-se apenas a forma e o sujeito que grava a conversa, respectivamente pelo próprio interlocutor ou por terceiro com consentimento de um dos interlocutores).

A prova da confissão em casos como esses levou a Suprema Corte alemã a posicionamentos controversos entre as suas salas, como foi o caso da Sala 2ª e a Sala 5ª. A 2ª não aceitou a prova por violar o princípio do nemo tenetur nos moldes do parágrafo 136 a) 1, 2 e 3 do StPO, e a 5ª aceitou a prova, pois entendeu que a voluntariedade do acusado não teria sido viciada, posto que não foi provocada diretamente pelos policiais, mas, sim, por um amigo. Bingo! Seria a hipótese de Temer e Joesley?

A questão foi parar no Pleno da Suprema Corte e restou vencedora a tese da Sala 5ª.

O Pleno fez distinção entre busca direta da confissão, feita pelos próprios agentes da investigação, e provocação indireta da confissão, que é aquela feita perante terceiro alheio aos quadros policiais.

Na provocação indireta, não haveria violação do princípio, pois este deveria ceder diante o princípio da proporcionalidade toda vez que a investigação ou processo se referir a fato de "importante significado" e se outros métodos forem mais complexos, mas com resultados menos eficientes.

Assim, segundo a Bundesgerichtshof: BGH (STF alemão), fora dessas hipóteses, qualquer outra forma de estratagema em enganar ou fraudar o direito do investigado de dizer expressamente se renuncia ou não seu direito de permanecer calado será uma prova inadmissível e sem valor.

Diante desses casos, Roxin[10] alerta que, apesar da admissibilidade do interrogatório por meio de ardil ter sido muito limitado pelos tribunais, até mesmo no caso em que lhes foi negado um direito a lesão ao princípio e ter afirmado a possibilidade de avaliar as provas adquiridas dessa forma, insiste em dizer que se os tribunais entendem que há violação ao nemo tenetur quando o funcionário público não adverte o acusado do seu direito de permanecer calado.

A tese de Roxin é bastante categórica em rechaçar qualquer tentativa de violar o princípio do nemo tenetur, invocando inclusive o projeto alternativo de reforma do Código de Processo Penal alemão na qual é coautor, no seu parágrafo 150 b: "Nadie puede ser inducido a incriminarse a sí mismo por coacción, engaño o ardid".

Nesse sentido, é possível o argumento de vedação de qualquer meio de obtenção de prova obtida por meio de ardil ou estratagema, seja a fraude realizada diretamente por policiais, seja por interposta pessoa. Pior ainda no caso de uma ação controlada empregada em desfavor de um presidente da República. Explico: a ação controlada significa técnica especial de investigação criminal que possibilita o retardamento da prisão em flagrante de um investigado[11], para prendê-lo em conjunto com um maior número de criminosos e a coleta de um maior número de evidências, o que não poderia ocorrer um presidente por proibição constitucional, em face da vedação de sua prisão processual (preventiva ou flagrancial), expressa no artigo 86, parágrafo 3º, CRFB, enfim, foros privilegiados e imunidades prisionais. Em suma, não se trata de ação controlada.

Em razão desses óbices constitucionais, em especial incidentes a um presidente da República, somente restaria este meio de técnica de investigação como meio de obtenção de confissão, o que nos retornaria a pergunta inicial e enfrentada pelos tribunais alemães, americanos e brasileiros, é possível gravação ambiental clandestina como prova de acusação e obtenção de condenação baseado nesta captação ambiental?

A legislação brasileira é míope, anêmica e sofre de esclerose múltipla processual quando o assunto é investigação criminal, em razão de se considerar o inquérito uma fase de “vale-tudo”, posto que não há regras bem delineadas sobre criminalística, em especial sobre as técnicas de investigação criminal relacionadas à reserva da intimidade e maior sofisticação jurídica do ambiente processual em que se dá o investigação preliminar, repetindo-se como um mantra que o inquérito é um “procedimento administrativo inquisitorial”. É preciso evoluir.

Afinal, acaso seja considerada ilícita a gravação sob a batuta de um órgão estatal seria considerada da ilícita a denominada “mera peça de informação” da investigação criminal, o que significa que não é “mera peça de informação”. Em suma, seria declarada sua nulidade! Consequentemente, seu desentranhamento dos autos e sua total impossibilidade de utilização como justa causa para a ação penal, bem como das diligências dela decorrentes. É preciso ou não regras claras?

A investigação criminal deve ser conduzida com um instrumento de realização do Direito, que significa emprego dos meios democráticos para a consecução de um fim também democrático em se buscar a responsabilização penal, que poderá resultar em uma criminalização, ou de um filtro às investidas escusas em busca de um negócio jurídico processual mais lucrativo para quem possui interesse em delatar do que poderia colher a coletividade com uma crise política assolada de demagogias não só políticas, mas com também demagogias jurídicas de que a criminalidade será combatida às custas de direitos e garantias fundamentais, ao mesmo tempo, temos que desenvolver técnicas de investigação que nos permita enfrentar a criminalidade sofisticada. No Brasil, nem uma nem a outra estão sendo realizadas.

A sociedade não enxerga que o Ministério Público não possui estrutura para o enfrentamento da criminalidade em nível Brasil, ou seja, em mais de 5 mil municípios, o que torna uma medida de “combate a corrupção” o investimento em recursos, financeiros, materiais e humanos nas polícias judiciárias (polícias civis) de todos os estados!

É oportuna a demonstração do enfrentamento da corrupção e a divulgação de seus mecanismos de funcionamento, bem como uma reestruturação do sistema de Justiça criminal colocando seus órgãos em seus devidos lugares, criando-se paridade de armas, ainda na fase da investigação criminal. O erro custa caro! Erra-se menos se acusação e defesa possam argumentar ainda em fase da investigação. Descoberto algum erro na fase processual, que lá se vai meia dúzia de anos após o fato criminoso, já é tarde, não se descobre mais nada. Fica impune. Bingo! Está aí mais um fator da impunidade, que não é divulgado pela imprensa.

As gravações divulgadas pela imprensa demonstraram o profícuo interesse de pessoas protegidas pelo foro privilegiado em interferir em investigações criminais. Como dificultar isso?

As gravações demonstraram o recebimento de dinheiro por membro do Ministério Público Federal pelo crime organizado, aquele mesmo Ministério Público que vem lutando pela exclusividade da investigação, argumentando que suas garantias constitucionais o tornavam imunes à corrupção.

No fim, ao olharmos para o passado, estarrecidos, com o mesmo espanto que hoje olhamos para o que foi a Santa Inquisição, que a sociedade e o Supremo Tribunal Federal protagonizaram um espetáculo midiático de empoderamento do crime organizado e deixaram morrer na praia a última trincheira que separa os desprotegidos dos criminosos: a polícia.

Acaso não se invista em autonomia da polícia judiciária, regras claras sobre investigação criminal como um processo administrativo sui generis[12], restrição do foro privilegiado, das imunidades de todos os gêneros e sistematização da criminalística no processo penal, daqui a 20 anos estaremos fazendo a mesma pergunta: É lícita a confissão ardilosamente clandestina de Temer, Caio, Tício, Mévio, Zezinho, Huguinho, Luizinho, blábláblá…


[1] AVOLIO, Luiz Torquato. Provas ilícitas. 3ª Ed., São Paulo: RT, p. 161.
[2] CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Crime Organizado. 2ºEd. Salvador: Juspodvm, 2014, p. 27.
[3] MARCONDES, Leonardo Machado. (In)constitucionalidade das interceptações na Lei de Organizações Criminosas. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mar-14/academia-policia-inconstitucionalidade-interceptacoes-lei-organizacoes-criminosas#_ftnref11>. Acesso em: 21/5/2017. Nesse sentido: STF – 2ª Turma – HC 91.613/MG – rel. min. Gilmar Mendes – j. em 15/5/2012 – Dje 182 de 14/9/2012; STF – 2ª Turma – RE 402.717/PR – rel. min. Cezar Peluso – j. em 2/5/2008 – Dje 030 de 12/2/2009; STJ – 1ª Turma – AgRg no AREsp 135.384/RS – rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho – j. em 3/4/2014 – Dje de 15/4/2014.
[4] STF, RE 583.937-QO-RG, rel. min. Cezar Peluso, j. 19/11/2009.
[5] STRECK, Lenio Luiz. As interceptações Telefônicas e os Direitos Fundamentais: Constituição, Cidadania, Violência: a Lei 9.296/96 e seus reflexos penais e processuais. 2ª ed. rev. Ampl. Porto Alegre: Libraria do Advogado, 2001, p. 114.
[6] MICHELOTI, Marcelo Adriano. A gravação de conversas na visão do Supremo Tribunal Federal e sua disciplina no projeto do novo Código de Processo Penal. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 56, out. 2013. Edição especial 25 anos da Constituição de 1988. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao056/Marcelo_Micheloti.html>. Acesso em: 22/5/2017.
[7] ANSELMO, Mário. Investigação de Autoridades com Foro Privilegiado. In HOFFMANN, Henrique; MACHADO, Leonardo Marcondes; ANSELMO, Márcio Adriano; GOMES, Rodrigo Carneiro; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Polícia Judiciária no Estado de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 30.
[8] CONDE, Francisco Muñoz. Prohibiciones probatórias: de las prohibiciones probatorias al Derecho procesal penal del enemigo. §2: La autoinculpación conseguida mediante engaño. La tesis de Roxin, Buenos Aires, Hammurabi, 2008, p. 33 a 38.
[9] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 3ª ed.  Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002, p 86.
[10] ROXIN, Claus, Nemo tenetur: Die Rechtsprechung am Scheideweg, en “Neue Zeitschrift für Strafrecht”, 1995, apud Conde. Ob. Cit., p. 35,
[11] HABIB, Gabriel. Leis Penais Especiais. Volume único. 9ªEd. rev., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 697.
[12] HOFFMANN, Henrique. Contraditório e Ampla Defesa no Inquérito. In HOFFMANA, Hentique [et all] ob. cit., p 4.

Autores

  • é delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, doutorando em Direitos Humanos na Universidad Nacional de Lomas de Zamora (Argentina), professor de Processo Penal da Emerj, da graduação e pós-graduação de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estacio de Sá (RJ) e do curso CEI. Membro da International Association of Penal Law e da Law Enforcement Against Prohibiton.

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