Estado da Economia

Risco fiscal é fundamento legítimo para modulação de efeitos pelo STF?

Autor

  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

21 de maio de 2017, 8h00

Spacca
Há correntes do pensamento jurídico que buscam a sobrevalorização de certos fundamentos de decisão judicial inexistentes no direito positivo.

Hodiernamente, não é difícil encontrar a defesa da prevalência de fatores como a eficiência econômica (de uma determinada e específica forma de pensar a economia teórica, registre-se) sobre as razões jurídicas do direito positivado. O mesmo acontece com certas ponderações do moralismo jurídico e, cada vez mais frequentemente, argumentos de risco fiscal em derrotas do poder público em ações judiciais de escala.

De forma muito simplificada, tem-se o uso de juízos de conta de chegada toda a vez que a aplicação de uma norma jurídica posta parece contrariar os interesses de natureza moral, setorial, profissional ou ideológica de algum dos lados do litígio (não necessariamente as partes, mas de todos aqueles que queriam uma delas vencedora).

Entre a aplicação do direito ao caso concreto ou o seu brusco afastamento, busca-se a flexibilização a partir da análise das consequências da decisão (daí a denominação de teorias consequencialistas – ora ingênuas, ora festivas, ora malandras, como bem lembrava Luis Fernando Schuartz)[1].

Pois bem, o tema que pretendo tratar pode ser resumido nas seguintes questões:

1) o risco fiscal de uma perda bilionária do governo central seria fundamento jurídico suficiente para que o Supremo Tribunal Federal (STF) aplique uma modulação de efeitos de sua decisão acerca da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins?

2) Haveria legitimidade desse pleito por parte da Procuradoria da Fazenda Nacional ao atribuir este risco fiscal à decisão da maioria dos Ministros e não à própria gestão desse risco por parte do governo federal como um todo?

A decisão em comento foi amplamente debatida, do ponto de vista tributário, nesta revista ConJur, de forma que apenas resumirei a decisão do STF para depois discutir a existência ou não de fundamentos de uma modulação dos efeitos que busque perdoar a gestão de risco fiscal realizada pelo governo federal.

Em março de 2017, o STF, por maioria, definiu que “o ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins” (RE 574.706), o que definiu uma discussão judicial de décadas.

Vislumbrando o risco de derrota judicial, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) requereu a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade para o início de 2018, o que permitiria uma simples alteração por Medida Provisória que reduzisse a base de cálculo das duas contribuições e aumentasse as suas alíquotas de forma a se chegar ao mesmo volume de arrecadação.

Tal modulação permitiria, ainda, que todas as decisões judiciais, embora o acerto de seu pleito, fossem esvaziadas de seus resultados, já que a inconstitucionalidade seria um fato jurídico com data marcada e futura para surgir e produzir efeitos, alterando as bases de nosso controle de constitucionalidade tradicional.

Como tal pedido não constava nos autos, a Min. Relatora Carmen Lúcia não o acolheu, sugerindo o uso de embargos de declaração para que a questão fosse analisada posteriormente.

Muito bem, em construção de cenários, o pedido de modulação pode ser (i) rejeitado; (ii) acolhido para produzir efeitos após a decisão (respeitando aqueles que já discutiam judicialmente as competências anteriores) e, em último caso, (iii) acolhido para produzir efeitos em data posterior, escolhida pela maioria (em tese, de quórum qualificado, nos termos da legislação)[2].

O fundamento da modulação aparece na Lei 9.868/1999, que a permite em virtude de segurança jurídica ou de excepcional interesse social (em seu artigo 27)[3].

Juridicamente, não haveria motivo para a modulação, já que não se trata de reviravolta no entendimento do STF (segurança jurídica), que declarara seu entendimento anteriormente no RE 240.785.

Eventual modulação parece entrar na conta dos contribuintes e de seus advogados, muito mais pela pressão do governo federal, que apresenta números da grandeza de R$ 250 bilhões, do que pela simples leitura do dispositivo legal e da própria tradição de sua aplicação pelo STF.

Nosso texto gostaria de aprofundar o possível enquadramento do fundamento legal de “excepcional interesse social” no argumento de “risco fiscal” da gestão fiscal do governo federal.

Nesse sentido, a PGFN, como qualquer empresa, faz análises de risco de perda em ações judiciais, classificando-os de acordo com a Portaria da Advocacia Geral da União – AGU nº 40, de 2015.

Tal controle tem por fim formar o Anexo V (RISCOS FISCAIS) da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Trata-se de uma forma de gerenciar os riscos de perdas acima de R$ 1 bilhão em ações judiciais.

A questão da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS é acompanhada há muito pela PGFN e pelo processo orçamentário das LDOs. No Anexo V da LDO de 2010, por exemplo[4], há o registro da maioria de votos no STF contrária ao governo e a notícia de que houve a distribuição de uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC nº 18) e a tese insistentemente defendida pela PGFN de que o controle concentrado prefere ao difuso, bem como a assunção de risco do governo federal de que valeria mais apostar na reversão da decisão nesta ADC nº 18, do que orientar o Ministério da Fazenda a sugerir Medida Provisória para estancar o risco jurídico de derrota (aumento de alíquota e redução da base de cálculo nos termos autorizados pela Constituição).

Em 2010, o risco estava quantificado em R$ 89,44 bilhões. Em 2017, em R$ 250,3 bilhões[5].

Não entraremos no mérito se este número está majorado, se leva em conta a perda da arrecadação por conta dos índices macroeconômicos e outras particularidades.

Nossa provocação é outra: se há preocupação do sistema jurídico positivo vigente na avaliação e acompanhamento de riscos fiscais (nas leis orçamentárias) e esses levam em consideração estratégias processuais e a análise das decisões judiciais, poderia uma derrota que já se apresentara anteriormente no plenário do STF ser motivo para transformar a gestão do risco fiscal pelo governo federal em excepcional risco social, para fins de modulação de efeitos?

Voltemos à comparação com as empresas, que realizam análises de riscos semelhantes em seus balanços. Há uma enorme preocupação na tentativa da melhor avaliação possível dos reais riscos de derrotas e, claro, assim como no Anexo V da LDO, ela acaba levando em conta a opinião dos patronos da causa e a posição dos tribunais superiores.

Mas aqui vem o nosso argumento principal: ao contrário do governo, as empresas apenas podem acompanhar da forma mais diligente possível a avaliação dos riscos e a posição dos tribunais superiores. O governo não! Ele pode alterar o cenário de risco, pela simples razão de que ele pode realizar alterações na legislação (diretamente por medidas provisórias e, com apoio do Legislativo, na conversão em lei).

Uma mera alteração legal minimizando os riscos de derrota, reduzindo base de cálculo das contribuições e promovendo os ajustes das alíquotas (inclusive nas cadeias de setores com algum tipo de regime alternativo) seria facilmente aprovada pelo Legislativo, pelo singelo argumento da redução de riscos sem aumento de carga.

O melhor exemplo disso é a longa discussão em torno da definição da base de cálculo do PIS e da COFINS (entre faturamento e qualquer receita – art. 3º da Lei 9.718/1998). O aumento foi implementado por meio de MP pouquíssimos dias antes da Emenda Constitucional (EC nº 20/1998, que permitiu a tributação da receita bruta). Ou seja, a mera edição de uma nova MP, no mês seguinte, teria evitado uma derrota bilionária do governo federal, mas ele preferiu insistir na aposta do risco, tal como jogador compulsivo.

No presente caso, a situação é mais tênue, mas também poderia ter sido evitada. Não por acaso, a fala do Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, afirmando que, no caso de derrota final no STF, promoveria a redução da base de cálculo atendendo a parâmetros constitucionais e o aumento das alíquotas para o mesmo patamar de arrecadação.

Em virtude desses elementos, o risco fiscal com números bilionários deveria ser colocado em perspectiva, não se permitindo o seu uso para fins consequencialistas que acarretem o perdão de um Estado apostador de riscos, em detrimento da aplicação vinculada e jurídica do artigo 27 da Lei 9.868/1999. Não cabe aplicação discricionária deste dispositivo legal, como bem lembra Heleno Torres![6]

Não se pode esquecer, por fim, que eventuais medidas prévias que evitassem essa litigiosidade teriam, ainda, a eficiência administrativa de redução de custo com o acompanhamento de processos pela PGFN, das empresas com o seu contencioso e do próprio gasto público direto da prestação de serviço público jurisdicional, que tem, no próprio Estado, o seu maior e ávido consumidor.

Em tempo: a aposta de risco fiscal de que não haveria derrota do governo, não sendo atendida pelo STF, apesar do apelo do argumento ad terrorem, gerará outro expediente de duvidosa legitimidade: a gestão fiscal no tempo (postergação da devolução dos créditos).

Esta gestão pode ser traduzida na recusa da Receita Federal em aceitar os pedidos de compensação dos contribuintes[7], com a multiplicação da litigiosidade de recursos administrativos e judiciais, retroalimentando, viciosamente, os gastos públicos com fiscalização e com o Poder Judiciário, em nada atendendo aos interesses sociais primários e apenas buscando reforçar o interesse secundário, que vê, no Estado, o credor interessado e parcial e não a República de todos!


[1] A tipologia do consequencialista ingênuo, festivo ou malandro aparece em Luis Fernando SCHUARTZ. “Consequencialismo Jurídico, Racionalidade Decisória e Malandragem”. Working Paper. FGV Rio Direito. Mimeo, 2008.

[2] A insegurança jurídica na modulação de efeitos se faz presente, inclusive, na determinação do quórum necessário para declará-la, já que a lei prevê a maioria qualificada de dois terços, mas já há defensores defendendo que, após a vigência do Novo Código de Processo Civil, poder-se-ia adotar a maioria simples, ainda que a modulação se trate de medida excepcional, nos termos do art. 27 da Lei 9.868/1999.

[3] “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. No mesmo sentido, em matéria de ADPF, art. 11 da Lei nº 9.882/1999.

[4] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/Anexo/anl12309-10.pdf.

[5] http://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/ldo/LDO2017/proposta/anexoV.pdf.

[6] http://www.conjur.com.br/2012-jul-18/consultor-tributario-modulacao-efeitos-decisoes-fundamental.

[7] Como já o está fazendo no caso da derrota no contencioso acerca da incidência do PIS Importação e da Cofins Importação.

Autores

  • Brave

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da USP, livre-docente e doutor pela FDUSP, sócio da Gaia, Silva, Gaede & Associados. Foi secretário-adjunto da secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

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