Políticas públicas

Uso errado da teoria de precedente gera instabilidade jurisprudencial

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20 de maio de 2017, 12h00

A discussão sobre os precedentes judiciais se agigantou após a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015. Não à toa! A despeito de todas as críticas já formuladas à teoria dos precedentes, em boa hora a legislação processual apresentou uma estrutura minimamente segura para orientar a construção da jurisprudência.

A propósito, o artigo 926 determina que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. Para tanto, não apenas os esforços argumentativos (dos quais trataremos mais adiante) são exigidos; é possível dispor de instrumentos forjados exatamente para reduzir a incerteza decisória, a exemplo dos repetitivos, do IRDR e do IAC.

Mais que eliminar grande volume de processo (já que sabemos que os efeitos desejados nesse campo não são sentidos a contento), essas ferramentas conferem maior unidade à jurisprudência dos tribunais pátrios, uma vez que deslocam o julgamento de uma determinada questão de um órgão fracionário para outro mais qualificado e com poder uniformizador (artigo 1036 para os Repetitivos, devidamente complementado pelas disposições regimentais do RISTJ e RISTF; arts. 978 caput e §1º, para o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas; art. 947, §§ 1º a 3º, para o Incidente de Assunção de Competência).

O uso do repetitivo, já experimentado pelo STJ e STF desde 2008 (portanto, antes da vigência do CPC/15) nos mostra, entretanto, que a simples disposição de mecanismos pelo sistema não garante bons resultados. E mais: pode importar em verdadeiro desastre. É o que nos parece sobre a recente afetação do REsp 1.657.156 (tema 106 STJ), que buscará uniformizar o entendimento do STJ sobre a “obrigatoriedade de fornecimento, pelo Estado, de medicamentos não contemplados na Portaria 2.577/2006 do Ministério da Saúde (Programa de Medicamentos Excepcionais)”.

Temos aqui três considerações a fazer (em verdade são receios a apresentar, mas não queremos parecer alarmistas).

A primeira diz respeito à observância do Repetitivo 566.471 do STF – que está referenciado no próprio descritivo do tema 106 no STJ – e que versa sobre a “obrigatoriedade de o Poder Público fornecer medicamento de alto custo”. O STJ já desafetou, anteriormente, repetitivo (REsp 1104382) por supostamente conflitar com o RE 566471. Embora entre os recursos não houvesse semelhança, o STJ achou por bem desafetá-lo, de maneira que o mecanismo de desafetação existe, e é louvável, para evitar situações de conflito de entendimento com o STF, que ao fim e ao cabo suplantaria o firmado pelo STJ.

Dessa vez, porém, o STJ afeta recurso com desenho de tese que revela em termos processuais, continência em relação à tese do STF. Pensando sob o prisma do valor, os medicamentos que estão fora da Portaria do MS podem ser considerados de alto custo ou não. Os medicamentos considerados de alto custo receberão, portanto, tratamento duplicado mesmo sabendo que a decisão do STF sobre o assunto prevalecerá? Qual a necessidade de afetar tese repetida? E ainda: decisão anterior no repetitivo do STF não causaria desajuste no julgamento desse?

Aí que entra nossa segunda consideração: a construção de precedentes exige esforço argumentativo que, por vezes, não identificamos nos Tribunais. A par do guia de redação previsto no artigo 489, §1º, que é tomado de empréstimo para construção dos precedentes pelo artigo 927, §1º, o trabalho de redação de um precedente é eminentemente argumentativo e não pode ser descuidado em sua técnica, sob pena de perpetuação de decisões inconsistentes ou frágeis. A tão só sobreposição temática da tese com a construída pelo STF no RE 566.471 já demonstra falta de cuidado com a organicidade da jurisprudência e com a própria integridade da decisão que se pretende proferir, que poderá ser desmantelada por entendimento superior – ou constitucional, como se queira.

Ademais, quando se busca um entendimento uniforme num instrumento de tamanho impacto na Justiça brasileira, o mínimo de esforço argumentativo para tamanha sedimentação exige uma minuciosa coleta de dados de nível nacional a fim de se verificar qual a real situação (e não apenas a retratada nas teses das respectivas partes)do fornecimento de medicamentos por imposição judicial. Qual a porcentagem de fornecimento de medicamentos de alto custo são judicializados frente ao tema "Judicialização da saúde"? Quantos destes fazem parte da lista do SUS? Qual a porcentagem de fornecimento de medicamentos em relação ao tipo, ao custo, ao estado da federação, ao ente federativo obrigado, para qual público é destinada a maioria dessas decisões judiciais? Até o momento, não parece haver uma pesquisa dos tribunais brasileiros nesse sentido.

Mas, para além disso, vemos o uso indevido do termo Estado para designar Poder Público ou Fazenda Pública. É inadequado porque: (i) o REsp nasce de contenda cujo réu é o Estado do Rio de Janeiro; (ii) Estado, embora seja um termo  de múltiplos sentidos, designa o ente intermediário de nosso federalismo. Logo, seria possível extrair a ideia de que o repetitivo abrangeria somente o ente Estado, deixando de fora a União e os Municípios, que poderiam ser, no curso do julgamento da tese, livremente demandados e condenados por não estarem abrangidos pela suspensão processual.

Acreditamos, porém, que essa conclusão seja equivocada pois o Ministro Benedito, relator do REsp em análise, já usou o termo de forma genérica no REsp 450.960, seguindo tese e redação do Ministro Sérgio Kukina, apresentada no AgRG no AREsp 24.283. Além do mais, no andamento virtual é possível ver que os TRFs também foram notificados da suspensão processual determinada pelo Relator. Logo, por sua competência, não são somente os Estados que estão contemplados.

Por fim, nossa última preocupação está ligada ao risco de quebra de uma poderosa ferramenta de atualização dessa política pública de saúde. A dispensação de medicamentos, pelo Poder Público, que estejam previstos nas listas de dispensação não responde pelas expressivas ações judiciais em curso no País.

Os Comitês e os NATs têm desenvolvido papel de grande destaque na resolução extrajudicial dessas demandas sociais. Os pleitos não resolvidos são justamente aqueles que indicam medicamentos fora das listas públicas, seja por mero capricho de algum cidadão ou por necessidade premente embasada por profissionais médicos.

A atualização das listas não pode ser simplesmente relegada ao arbítrio do Poder Executivo,  justamente porque sua adequação às demandas sociais é matéria passível de controle pelo Poder Judiciário. Compete a este identificar quando a lista atende a critérios científicos ou simplesmente econômicos, pondo em risco o bem-estar da população.

Exemplos potentes do bom uso das ações judiciais para atualização das listas são os litígios envolvendo os componentes do coquetel antirretroviral (HIV/AIDS) e as insulinas fornecidas aos portadores de diabetes, que receberam especial atenção do Poder Judiciário em razão da quantidade de queixas acerca da efetividade dos medicamentos previstos nas listas.

Afinal, o Judiciário não pode abdicar de seu papel de controlador da constitucionalidade das políticas públicas. Não podemos esquecer de que, apesar de toda imposição constitucional e internacional de gasto público com a saúde para a sua progressiva realização como direito humano, o Brasil é o único país com sistema universal de saúde que tem um gasto privado superior ao público.

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