Consultor Jurídico

Renúncia permitiu à Argentina superar crise sem ruptura do sistema

20 de maio de 2017, 6h02

Por Irapuã Santana do Nascimento da Silva, Pedro Duarte Pinto

imprimir

Os recentes escândalos relativos às delações dos donos da JBS, que abalaram as estruturas da República, afundou o país na mais grave crise política de sua história.

As comprovações e diversas denúncias e inquéritos abertos em todas as instâncias e cantos do poder, culminou em um novo pedido de impeachment, agora do presidente Michel Temer.

Mas não é necessário que o Brasil percorra esse árduo caminho para o retorno da governabilidade e saída desta crise política. Além do impeachment, a renúncia também desponta como um instrumento alternativo de solução para o atual momento brasileiro, capaz de estimular a pacificação política e social necessária.

Apesar de a renúncia ser um instrumento estranho à recente história brasileira, o Direito e a própria política frequentemente buscam em modelos comparados contribuições para o aprimoramento de suas instituições. E com o sistema presidencial não é diferente: observar outras experiências pode colaborar com a reconstrução da estabilidade política.

A proximidade geográfica, as dimensões territoriais, as semelhanças dos processos históricos e a renúncia de dois presidentes democraticamente eleitos fazem da Argentina um dos referenciais indispensáveis no estudo de crises políticas e rupturas em governos democráticos, a exemplo da situação brasileira.

Saída, em 1983, de um governo militar, a Argentina presenciou um processo de transmissão democrática similar e contemporâneo ao brasileiro [1].

Raúl Alfonsín (1983-1989) foi o primeiro presidente eleito sob esta nova ordem, com um mandato único de seis anos garantido pela Constituição de 1853[2]. Apesar das promessas de mudança e do sentimento democrático, Alfonsín encontrou um Estado ineficiente, desproporcional e oneroso, o que limitou sua atuação e permitiu o crescimento da inflação e de sua reprovação popular [3][4].

Limitado e enfrentando uma piora na crise econômica, Alfonsín viu-se incapaz de se manter na presidência até o fim do mandato e, em 8 de julho de 1989, renunciou e transmitiu o cargo, com cinco meses de antecedência, a Carlos Menem [5].

Mais tarde, Fernando de la Rúa foi eleito presidente em 1999, mas não completou seu mandato, tendo renunciado em dezembro de 2001.

Escândalos de corrupção, inclusive envolvendo o pagamento de propinas a senadores para a aprovação de medidas legislativas [6], o fracasso de suas medidas econômicas e o frequente emprego dos decretos de necessidade e urgência criaram uma tensão entre o presidente e o Legislativo, inclusive dentro de sua própria coalizão, e entre aquele e a população.[7]

Com protestos e revoltas por toda a Argentina, as eleições parlamentares intermediárias de 2001 foram acompanhadas de um descrédito na classe política, com uma participação de menos do que 75% dos eleitores, que atingiu, principalmente, a coalizão presidencial [8]. A perda da maioria em ambas as Casas e do próprio apoio partidário interno, fez com que o Poder Executivo passasse a sofrer ataques e ingerências do Legislativo, levando, inclusive, à perda de sua capacidade de governar.[9] Limitado, impossibilitado de evitar o colapso econômico e de controlar os crescentes protestos, greves, bloqueios e revoltas da população, Fernando de la Rúa renunciou à Presidência[10].

A exemplo do ocorrido no Brasil, esta instabilidade presidencial na Argentina, experimentada principalmente sob os governos de Fernando de la Rúa e Raúl Alfonsín, pode ser atribuída ao desenho institucional conferido pela Constituição ao sistema político-eleitoral, como também às condições econômicas e sociais argentinas. Assim como na maioria dos países sul-americanos, a Argentina conviveu durante as décadas de 1980 e 1990 com severas crises financeiras, como a que o Brasil passa atualmente, acompanhadas de problemas e desigualdade social, as quais exigiram a tomada de medidas drásticas pelos chefes do Executivo. Esse cenário econômico, desse modo, foge a uma normalidade política e cria condições para a insatisfação e manifestações populares, além de fornecer espaço para que oposições ascendam ao poder[11].

Essa breve exposição demonstra que o histórico presidencial argentino proporciona um diferente instrumento institucional de controle das atuações dos presidentes. Apesar do termo fixo definido pela Constituição aos seus mandatos, a renúncia antecipada mostrou-se uma realidade, e recente, para os chefes do Executivo na Argentina. Diferente do impeachment, que exige uma postura ativa do Legislativo, o “fantasma” da renúncia opera como um lembrete ao presidente e à população de que, a despeito da proteção constitucional, o mandato presidencial possui limites e deve responder ao eleitorado e às instituições.

Na Argentina, a renúncia de dois presidentes democraticamente eleitos não se mostrou como suficiente para a quebra institucional: a democracia persistiu em funcionamento e os mecanismos jurídicos previstos para a sucessão foram acionados, garantindo a continuidade do regime. Pelo contrário, a renúncia mostrou-se um instrumento de garantia da estabilidade institucional, utilizado em último caso pelos presidentes.

A Argentina, com seu histórico de repetidas crises, reflete como a economia e as condições sociais delas decorrentes influenciam no processo político e desenho institucional. Marcada por uma instabilidade nos mandatos presidenciais, com a renúncia de dois presidentes eleitos e de outros dois provisórios, o modelo argentino demonstra como a remoção de um presidente pode ocorrer sem que haja a ruptura do sistema. Mesmo enfrentando crises políticas e sociais, o modelo presidencialista é capaz de manter o funcionamento de suas estruturas democráticas sem originar um retorno aos regimes militares.

É preciso, portanto, que o Brasil mantenha a observância das regras institucionais vigentes na Constituição, sem uma reforma oriunda do calor dos ânimos e sob influência do medo do amanhã. Assim é que a renúncia se apresenta como uma saída viável e menos invasiva evitando maior sacrifício e traumatização de toda a população brasileira.

[1] JONES, Mark P. Evaluating Argentina's presidential democracy: 1983-1995. In: MAINWARING, Scott; SHUGART, Matthew Soberg. Presidentialism and Democracy in Latin America. New York: Cambridge University Press, 1997. p. 260.

[2] CHAVEZ, Fermin. Perón y el peronismo en la historia contemporánea. Buenos Aires: Oriente, 1975.

[3] TORRE, Juan Carlos. Conflict and Cooperation in Governing the Economic Emergency: The Alfonsín Years. In: LEWIS, Colin; TORRENTS, Nissa (eds.). Argentina in the Crisis Years (1983–1990). London: Institute of Latin American Studies, 1993. pp. 73-89.

[4] LLANOS, Mariana. Presidential Breakdowns in Argentina. In: LLANOS, Mariana; MARSTEINTREDET, Leiv. Presidential Breakdowns in Latin America. Causes and Outcomes of Executive Instability in Developing Democracies. New York: Palgrave Macmillan, 2010. pp. 57-62.

[5] JONES, Mark P. Evaluating Argentina's presidential democracy: 1983-1995. In: MAINWARING, Scott; SHUGART, Matthew Soberg. Presidentialism and Democracy in Latin America. New York: Cambridge University Press, 1997. pp. 259-260.

[6] “In particular, the way the president dealt with a corruption scandal in the Senate, in which members of the government had allegedly bribed senators to get the labor reform law approved, triggered a conflict with vice president Álvarez, which eventually led to the latter’s resignation in October 2000”. (LLANOS, Mariana. Presidential Breakdowns in Argentina. In: LLANOS, Mariana; MARSTEINTREDET, Leiv. Presidential Breakdowns in Latin America. Causes and Outcomes of Executive Instability in Developing Democracies. New York: Palgrave Macmillan, 2010, p. 63.)

[7] CALVO, Ernesto. The Responsive Legislature: Public Opinion and Law Making in a Highly Disciplined Legislature. In: British Journal of Political Science, v. 3., n. 37., Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 267.; e LLANOS, Mariana. Presidential Breakdowns in Argentina. In: LLANOS, Mariana; MARSTEINTREDET, Leiv. Presidential Breakdowns in Latin America. Causes and Outcomes of Executive Instability in Developing Democracies. New York: Palgrave Macmillan, 2010, pp. 62-65.

[8] TORRE, Juan Carlos. Citizens versus political class: The crisis of partisan representation. In: LEVITSKY, Steve; MURILLO, María Victoria. Argentine democracy: the politics of institutional weakness. Philadelphia: Pennsylvania State University Press, 2005, p. 176.

[9]“The president’s actions were limited to a couple of marginal changes to the cabinet, the public defense of convertibility, a timid call for a multi-sector compromise, and, ultimately, and under the pressure of his party, for a government of national unity with the Peronists, which the latter rejected”. (LLANOS, Mariana. Presidential Breakdowns in Argentina. In: LLANOS, Mariana; MARSTEINTREDET, Leiv. Presidential Breakdowns in Latin America. Causes and Outcomes of Executive Instability in Developing Democracies. New York: Palgrave Macmillan, 2010. p. 65.)

[10] AUYERO, Javier. The political makings of the 2001 lootings in Argentina. In: Journal of Latin American Studies, v. 38, n. 02, p. 241-265, Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

[11] TORRE, Juan Carlos. Citizens versus political class: The crisis of partisan representation. In: LEVITSKY, Steve; MURILLO, María Victoria. Argentine democracy: the politics of institutional weakness. Philadelphia: Pennsylvania State University Press, 2005, p. 176.