Diário de Classe

Por qual motivo não levamos a Constituição a sério?

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20 de maio de 2017, 8h00

Spacca
As discussões em torno da possibilidade de vacância do cargo de presidente da República, sem o vice natural para sucedê-lo, têm produzido grande perplexidade. Na última semana, essa questão acirrou-se ainda mais em face das consequências bombásticas da delação de um dos donos da JBS, que gravou — não está completamente esclarecido em que condições — uma conversa com o presidente da República. Vá lá: o barulho em torno do anúncio da existência da gravação foi muito maior do que a nitidez da voz do presidente e o real conteúdo da conversa. Da pretensa conspiração para obstrução da Justiça, que a Procuradoria-Geral da República entende ter ficado cristalina pelo teor da conversa, sobra, com muita boa vontade, no máximo, uma possível prevaricação (já que o presidente realmente ouviu do delator uma narrativa prenhe de atividades potencialmente ilícitas e, aparentemente, nada fez para provocar, ao menos, uma investigação sobre elas). Isso com relação à gravação. Se há outros meios de prova para atestar a tese da PGR, é algo a ser conferido a partir do desenrolar dos acontecimentos.

De todo modo, não quero aqui entrar no mérito da validade da prova nem analisar minuciosamente o seu conteúdo. Sem embargo, fato incontroverso é que a divulgação desse áudio aumentou significativamente as chances de o presidente deixar o cargo. Antes, a bolsa de apostas concentrava-se no julgamento do TSE (que pode cassar a chapa que venceu a eleição de 2014). Agora, já há quem defenda o impeachment do presidente (mais um!); há, também, quem proteste por sua renúncia (que, aparentemente, já foi descartada); e existe ainda, como possibilidade remota, a chance de, se autorizado o processo pela Câmara dos Deputados, o presidente ser julgado por crime comum perante o STF.

O aumento da complexidade do caso faz subir o volume do burburinho sobre o que fazer no day after (no caso de a vacância do cargo ser confirmada). Para mim — constitucionalista conservador que sou —, a solução da questão seria absurdamente simples: aplicar-se-ia o disposto no artigo 81, parágrafo 1º da Constituição de 1988 e, 30 dias depois de aberta a vaga, teríamos uma eleição indireta, por meio do Congresso Nacional. Essa é a solução constitucional para casos tais! Está lá, prevista desde o dia 5 de outubro de 1988. Todavia, para alguns constitucionalistas, aparentemente mais, digamos, “progressistas”, a solução constitucional não é a melhor. Pensam eles que, em vez de apostar no Direito Constitucional, o melhor é fazer política judiciária e, a partir de um casuísmo total flex, impor à eventual situação eleições diretas.

Intrigante: em quase 30 anos, nunca houve nenhum questionamento sobre o critério constitucional; talvez uma voz ou outra, perdida em meio à multidão, tenha, em algum obter dicta de um livro de doutrina, considerado inoportuna a decisão do constituinte e sugerido algum tipo de medida mudancista para tentar superá-la (no caso, o mecanismo seria, inevitavelmente, uma emenda à Constituição). Mas nada que ganhasse relevo nacional. Agora, no calor dos acontecimentos, não param de surgir teses que defendem uma excêntrica “hermenêutica constitucional” cujo o resultado final é dizer que a Constituição, para ser coerente consigo mesma, deveria ter dito o que ela não disse: que as eleições para o cargo de presidente da República devem ser sempre diretas, independentemente do período em que se encontre o cumprimento do mandato.

Do ponto de vista jurídico, o debate ganhou algum corpo depois que a Procuradoria-Geral da República promoveu uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5.525) contra o artigo 4º da Lei 13.165/2015, que alterou o Código Eleitoral em relação ao critério de escolha de sucessores de prefeito, governador, senador e presidente da República em caso de cassação pela Justiça Eleitoral.

A tese da Procuradoria é que a lei, ao menos no plano da eleição presidencial, viola a Constituição.

E já tem um bocado de gente pegando carona na ambivalência dos efeitos, tentando produzir uma “interpretação conforme a minha ideia de Constituição” para tirar dela uma solução alternativa ao pedido da PGR.

Defendem, então, que a resposta correta para o caso não está no artigo 81, parágrafo 1º da Constituição, mas, sim, no Código Eleitoral, que daria maior conformação a “princípios constitucionais fundantes” como a soberania popular, o voto direto etc. Ou seja, o código eleitoral — que é uma lei ordinária — teria, a partir da reforma de 2015, salvado a Constituição dela mesma.

A tese é fantasticamente falaciosa: uma alteração levada a cabo por uma lei ordinária teria o condão de modificar a Constituição… Os ossos de John Marshall certamente reviraram-se no túmulo! Ora, para que, então, supremacia constitucional? Rigidez constitucional? Se, para uma lei ordinária é permitido alterar o conteúdo de uma disposição constitucional, todas essas instituições do Direito Constitucional moderno não passam de quimera jurídica.

Eis, assim, mais um capítulo em que o pensamento jurídico nacional encontra-se às voltas daquilo que Canotilho chama, a partir Leisner, de interpretação da Constituição conforme as leis. Nos termos propostos pelo mestre português: com essa técnica, “insinua-se que o problema da concretização da constituição poderia ser auxiliado pelo recurso a leis ordinárias. Nestas encontraríamos, algumas vezes, sugestões para a interpretação de fórmulas condensadas e indeterminadas, utilizadas nos textos constitucionais”[1].

E continua, agora em uma perspectiva mais crítica: “A interpretação da Constituição conforme às leis tem merecido sérias reticências à doutrina. Começa a partir da ideia de uma constituição entendida não só como espaço normativo aberto mas também como campo neutro em que o legislador iria introduzindo subtilmente alterações. Em segundo lugar, não é a mesma coisa considerar como parâmetro as normas hierarquicamente superiores da constituição ou as leis infraconstitucionais. Em terceiro lugar, não deve afastar-se o perigo de a interpretação da constituição de acordo com as leis ser uma interpretação inconstitucional, quer porque o sentido das leis passadas ganhou um significado completamente diferente na constituição, quer porque as leis novas podem elas próprias ter introduzido alterações de sentido inconstitucionais. Teríamos, assim, a legalidade da constituição a sobrepor-se à constitucionalidade da lei”[2].

O texto de Canotilho fala por si mesmo. Dispenso-me, portanto, de qualquer comentário adicional. Talvez seja apenas o caso de registrar que, numa outra possibilidade interpretativa, a tese das eleições diretas para a hipótese do artigo 81, parágrafo 1º da Constituição de 1988, repristina, também, a malfadada tese das “normas constitucionais inconstitucionais”, que foi sepultada na Alemanha, mas que, no Brasil, volta e meia aparece como uma espécie de vírus zumbi: The Walking Dead Constitution Unconstitutionality Thesis

Ora, se cedermos à tentação de criar hierarquias internas dentro do texto constitucional, então abriremos espaço para relativizar as normas constitucionais e, novamente, comprometeremos sua supremacia e sua força normativa.

Na última semana, falou-se em um apocalipse político. Eu discordo. A crise é grave, mas ainda podemos nos recuperar se, depois de tudo, continuarmos uma democracia e preservamos a institucionalidade da Constituição de 1988. A resiliência do regime democrático e das instituições é o que há de mais importante. A receita para isso: levar a Constituição a sério! Ainda que seu texto esteja a nos dizer algo que não seja do nosso agrado. Aliás, é exatamente nesses casos que deveria ficar mais evidente aquilo que, junto com Konrad Hesse, poderíamos chamar de “vontade de Constituição”. Erguê-la para defender teses simpáticas e “progressistas” que nos são convenientes é um exercício muito fácil. A dificuldade aparece nestes momentos de paixões, nos quais o texto parece apontar para uma impopular e inconveniente solução. São nestes momentos que saberemos se estamos a manifestar uma verdadeira “vontade de Constituição” ou se, ao contrário, estamos apenas a exercitar a velha “vontade de poder”.      


[1] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, p. 1234.
[2] CANOTILHO, J.J. Gomes. op. cit., p. 1234.

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