Interesse Público

A interpretação evolutiva das normas constitucionais

Autor

  • Adilson Abreu Dallari

    é professor titular de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da PUC/SP; membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP); membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP; membro do Núcleo de Altos Temas (NAT) do SECOVI; membro do Conselho Superior de Direito da FECOMÉRCIO; membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (ABRADADE); membro do Conselho Superior de Orientação  do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (IBEDAFT);  membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); consultor jurídico.

18 de maio de 2017, 8h05

Spacca
Os advogados que defendem os acusados na operação "lava jato", no legítimo exercício de seus deveres profissionais, propugnam pelo fiel e estrito cumprimento das normas constitucionais favoráveis aos seus clientes. Os estudiosos do Direito, entretanto, não podem esquecer que toda norma precisa ser interpretada, que nenhuma norma existe isoladamente e que sempre será possível uma pluralidade de interpretações. Direito é divergência.

No caso das normas constitucionais em vigor, é preciso fazer uma consideração preliminar. A Constituição que temos é a que foi possível produzir num dado momento histórico, por meio de um arranjo com as forças políticas daquele instante. Não é o caso de se alongar aqui sobre isso, basta apenas ponderar que o texto inicial já sofreu uma centena de emendas, além das que estão sendo produzidas no momento. O tecido constitucional foi bastante remendado.

Tenho afirmado que a Constituição de 1988 foi feita com os olhos no retrovisor, especialmente no tocante à prodigalidade ao conferir direitos e garantias aos acusados, presos e condenados. Com efeito, a grande preocupação dos deputados e senadores, aquinhoados com poderes constituintes, era evitar os abusos perpetrados durantes os anos da ditadura. Nisso tiveram pleno êxito, até porque não temos mais ditadura. Ou seja: resolveram todos os problemas do passado, mas criaram terríveis problemas para o momento presente.

Ninguém ignora que o afloramento dos copiosos e vultosos atos de corrupção perpetrados na última década suscitaram uma indignação popular. As vítimas da roubalheira querem a punição dos culpados. Mas não será fácil a apuração das condutas delituosas, com a identificação dos verdadeiros culpados, com a aplicação exacerbada da literalidade das normas constitucionais que impedem o aprofundamento e a eficácia das apurações.

Vamos ao exemplo. O inciso LVII, do artigo 5º estabelece que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Pela literalidade do texto, nem poderia haver qualquer espécie de prisão preventiva, mas uma interpretação contextualizada permite essa prática. O que se discute agora é o tempo em que se poderá manter alguém nessa condição. Quanto tempo seria razoável?

Para aferir a razoável duração do processo e a celeridade de sua tramitação, é preciso levar em consideração a realidade material do aparelho judicial disponível. Não é possível aferir essa razoabilidade por parâmetros antigos, anteriores à Constituição em vigor, que, pela prodigalidade na afirmação de direitos, criou uma litigiosidade exacerbada. Tempo razoável, portanto, será aquele no qual o órgão competente do Judiciário puder dar fim à provisoriedade, proferindo a decisão que lhe caiba proferir.

Tem-se afirmado que o ônus da prova cabe a quem acusa e que o sistema processual visa proteger o acusado. Essas afirmações são incontestáveis, mas não são absolutas e ilimitadas. Como ensinava o mestre Goffredo da Silva Telles Junior, o Direito é a disciplina da convivência. A ordem jurídica é uma condição indispensável para a vida em sociedade. Não faz sentido interpretar normas jurídicas de maneira a que o entendimento resulte em danos para a sociedade como um todo.

O Supremo Tribunal Federal se deu conta disso ao interpretar a presunção de inocência, decorrente do dispositivo acima transcrito. A presunção continua sendo uma presunção, e a definitividade da condição de culpado somente ocorrerá após o trânsito em julgado, mas nada impede que apurações já realizadas, produzidas com fiel observância do devido processo legal e que levaram a uma decisão judicial válida, produzam algum efeito jurídico.

É simplesmente impensável o retorno aos tempos da pletora de recursos repetitivos e intermináveis, usados não para assegurar o devido processo legal, mas, sim, para violentar esse princípio, levando à impunidade dos acusados melhor aquinhoados financeiramente, num atentado ao postulado fundamental da igualdade de todos perante a lei. Note-se que, nesse caso específico, não houve mudança da norma constitucional, mas apenas na interpretação dada a ela, de maneira a conferir maior eficácia aos direitos e às garantias que afetam diretamente a coletividade como um todo.

O Direito está sempre em constante evolução, e uma das formas de atualização dos mandamentos legais é dar menor apego à literalidade da norma e maior prestígios aos outros, mais apurados e mais sofisticados métodos de hermenêutica. Entre todos estes merece destaque a interpretação evolutiva, segundo a qual as normas devem ser interpretadas não em face do ambiente existente quando de sua edição, mas, sim, de acordo com as circunstâncias vigentes no momento de sua aplicação. Já cuidei desse tema em trabalho publicado, do qual transcrevo um segmento:

“Toda norma legal, inclusive constitucional, decorre de um ambiente político, social e econômico vigente no momento de sua edição. Mas esse ambiente muda com o decorrer do tempo, exigindo do intérprete e aplicador da lei um esforço de adaptação, para que possa dar a correta solução aos problemas emergentes. É certo, portanto,  que a  melhor interpretação da lei (entre as várias possíveis)  vai variar ao longo do tempo de sua vigência. Uma interpretação incontestavelmente correta adotada em um momento do passado, pode tornar-se inaceitável em ocasião posterior, pois obviamente, não faz sentido dar-se a mesma solução para um problema  que se tornou diferente, em razão de alterações no plano da realidade fática” (Adilson Abreu Dallari, “Privatização, Eficiência e Responsabilidade”, in “Uma Avaliação das Tendências Contemporâneas do Direito Administrativo”, obra em homenagem a Eduardo García de Enterria, coordenador Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Editora Renovar, 2003, p. 211).

Com efeito, não é mais possível conferir à presunção de inocência o mesmo valor que tinha no passado, diante da enorme evolução das práticas criminosas. Os avanços tecnológicos permitiram condutas delituosas simplesmente inimagináveis no passado, ao mesmo tempo em que criaram métodos investigativos de muito maior eficácia. As relações econômicas ficaram mais complexas, permitindo a mais eficiente dissimulação, mas a informática propicia meios de rastreamento igualmente eficientes. Isso não pode ser ignorado pelo Direito.

Os meios de que dispõe o juiz, atualmente, para sopesar os fatos, antes de proferir a decisão, devem conferir maior confiabilidade e eficácia ao que foi decidido. A robustez das provas, o risco de comportamento deletério à Justiça pelo acusado e o meio no qual o delito foi cometido; tudo isso não pode ser simplesmente ignorado por força de uma ultra e exacerbada presunção de inocência.

No caso dos crimes de corrupção, a maior severidade com os delinquentes atende, sim, a um clamor popular, mas nem por isso pode deixar de ser aplicada. No fundo, o que o povo deseja é que a Constituição seja fielmente observada, sem privilégios, sem subterfúgios, sem preconceitos e sem supervalorização de presunções conflitantes com fatos devidamente apurados, com observância da ampla defesa e do devido processo legal, e, ainda, com a mais célere possível tramitação dos recursos cabíveis.

É fundamental, para a manutenção da ordem jurídica e do Estado Democrático de Direito, que todos os corruptos sejam punidos, muito especialmente os políticos. É preciso punir os políticos corruptos para salvar a política, sem o que não existe democracia.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!