Opinião

Com caso Mohamed, Supremo tem na pauta um drama da imigração ao Brasil

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17 de maio de 2017, 8h32

Julius Nyerere foi um estadista que governou a Tanzânia até 1985, tendo implementado, durante o período, a política Ujamaa, baseada na cooperação entre as pessoas, fruto do resgate da identidade a ser compartilhada pelo povo. Conseguir essa unidade foi um feito. Ujamaa, na língua Swahili, significa família.

Sob esse ethos, o país manteve unidas as populações das regiões de Zanzibar e do Lago Tanganica. Foi um tempo de cooperação e paz. Um tempo bom.

Nesse período, as maravilhas da Tanzânia, como o monumental Monte Kilimanjaro, passaram a ser emprestadas ao mundo. Ernest Hemingway lá encontrou inspiração para escrever Green Hills of Africa, The Snows of Kilimanjaro e The Short Happy Life of Francis Macomber.

Mas o tempo, irrefreável que é, passou. Mesmo sendo um país que vive em paz, a Tanzânia se viu atirada no precipício da migração de sua gente.

Décadas após o colapso da política da Ujamaa, Edd Abdallah Mohamed, tanzaniano de Zanzibar, aos 28 anos, partiu de Johanesburgo, África do Sul, num navio. Ele fez o mesmo trajeto feito, há séculos, pelos africanos escravizados que habitavam os porões de navios negreiros rumo ao Brasil.

A embarcação que trouxe Mohamed atracou no Porto de Santos em agosto de 2002. Quando se deparou com o povo brasileiro, ele não hesitou em responder: “Sou jogador de futebol”. Na verdade, segundo depoimento dado às autoridades, “veio fugindo de problemas políticos no seu país”. Jamais foi preso nem processado no exterior. No Brasil, ele pediu refúgio ao Conare, mas não foi atendido. Na cidade de São Paulo, passou a dividir um apartamento com outros africanos em situação semelhante à dele. Morava na Rua Apocalipse.

Dia 31 de janeiro de 2013, o fim do seu mundo bateu à porta. Policiais federais, após uma denúncia anônima, avistaram “um indivíduo de aparência africana”, a quem pediram o passaporte. O de Mohamed era falso. Indagado, ele decidiu cooperar. Confessou e avisou as autoridades brasileiras sobre outros imigrantes ilegais. Mesmo tendo colaborado, Mohamed violou o artigo 304 combinado com o artigo 297 do Código Penal, cometendo o crime de uso e falsificação de documento público. Terminou condenado a 2 anos e 7 meses de prisão, que foi cumprida em lugares como a Penitenciária Franco da Rocha.

Seres humanos erram. Eles precisam aprender com o erro e, conscientes de seus compromissos com a comunidade, devem retomar a convivência social sabendo que não devem repetir o erro. Tendo prestado contas à sociedade, Mohamed decidiu recomeçar. Todavia, com a condenação penal, veio a Portaria 552/2006, determinando sua expulsão do território nacional, em conformidade com o que dispõe o artigo 65 da Lei 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro). Ele foi considerado “estrangeiro que atenta contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranquilidade ou moralidade pública e a economia popular” (fls. 266 dos autos).

O Estatuto do Estrangeiro mantém várias restrições estabelecidas pelo Decreto-Lei 941/1969, baixado no ápice do ufanismo brasileiro. “Brasil: ame-o ou deixe-o!” era o mote de um nacionalismo visceral.

Como decorrência dessa realidade, o controle imigratório é percebido sobretudo sob a óptica da segurança nacional, com grande abertura à deportação ou expulsão dos estrangeiros. Esses estatutos foram aprovados quando a concepção de direitos humanos, tal qual como consolidada hoje, não existia.

O artigo 75, inciso II, alínea “b”, do Estatuto do Estrangeiro diz que a expulsão do estrangeiro não se procederá quando este possuir filho brasileiro cuja guarda e dependência econômica seja devidamente comprovada. Ressalva, contudo, no §1º do artigo, não constituir “impedimento à expulsão a adoção ou reconhecimento de filho brasileiro superveniente ao fato que motivar.”

Nesse ponto, a jornada de Mohamed muda de curso. Duas personagens transformaram o universo particular desse africano. A primeira foi a cabelereira Pamela Claude, tanzaniana natural de Kigoma, cidade portuária do Lago Tanganica. Ela é companheira de Mohamed. Do seu ventre veio a segunda personagem: Oprah, filha de Mohamed, nascida no Brasil. Como se vê, o pai veio de Zanzibar. A mãe, de Tanganica. São os frutos da visão conciliadora de Julius Nyerere, o estadista da Tanzânia. Sua fé na Ujamaa funcionou.

Paul Collier, diretor do Centro de Estudos Africanos da Universidade de Oxford, no livro Exodus, ressalta que “cada êxodo individual é o triunfo do espírito humano”. O raciocínio é diverso da compreensão do Poder Executivo da União Federal brasileira. Suas autoridades, especialmente seus advogados, questionaram a paternidade de Mohamed em relação à pequena Oprah. A acusação era de que ela não seria sua filha e que tudo não passaria de uma farsa. Mohamed era tratado, em documentos oficiais, como “o pretenso genitor”.

A Delegacia de Polícia de Imigração, contudo, confirmou o vínculo familiar e a dependência econômica da criança. Disse serem legais os documentos apresentados, pondo abaixo outra acusação feita pelo Poder Executivo da União Federal.

Judicializada a questão, o Superior Tribunal de Justiça considerou sem efeito o decreto de expulsão, motivo pelo qual a União interpôs Recurso Extraordinário, sustentando que “a expulsão é medida de retirada compulsória do estrangeiro do território nacional, expressão da soberania nacional e, por isso, poder discricionário do chefe de Estado”.

A análise endossaria o pedido de expulsão de Mohamed, pois o nascimento e registro de sua filha foram verificados após a ocorrência do ato criminoso que deu ensejo ao decreto de expulsão. Há precedentes do STF nesse sentido[1]. Todavia, a orientação do STJ, notadamente após o julgamento do HC 31.449/DF, inaugurou interpretação mais condizente com os tempos atuais.

O relator, o saudoso ministro Teori Zavascki, ponderando sobre caso análogo, considerou as nuances trazidas pela Constituição Federal de 1988, pela Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), e pelas convenções internacionais recepcionadas em nosso ordenamento jurídico. Sua Excelência entendeu pela proibição de expulsão de estrangeiro cujo filho seja superveniente ao fato motivador do decreto de expulsão.

Na perspectiva do relator, deve prevalecer o melhor interesse da criança, de maneira a priorizar a garantia da infância e da juventude ao direito à identidade, à convivência familiar e comunitária, bem como à assistência pelos pais.

Olhando para a situação, é possível observar a situação de vulnerabilidade em que se encontram os imigrantes. Não são poucos os obstáculos impostos a pessoas como Mohamed. O idioma, os costumes, a xenofobia e o preconceito são só alguns deles. As condições pioram quando falamos de negros, africanos e sem recursos financeiros.

Em uma época de intensa imigração para a Europa, somada à crise dos refugiados e frequentes atentados terroristas, houve o fortalecimento de um cenário político mundial conservador quanto aos fluxos migratórios. É nesse cenário que o RE 608.898, de relatoria do ministro Marco Aurélio, será julgado. O caso está pautado como segundo item na agenda de trabalhos do Pleno do Supremo Tribunal Federal para esta quarta-feira (17/5).

O nacionalismo, outrora lançado ao ocaso, está de volta. Na Alemanha, ano passado, eleições locais deram o triunfo a um partido de ultra-direita, nacionalista, cuja proposta central é combater os imigrantes. Nos Estados Unidos, o candidato eleito do Partido Republicano à presidência da República participou de convenções nas quais seus aliados gritavam coisas como “Construa o muro! Mate todos eles!” e “Mandem aqueles bastardos de volta!”.[2] No Brasil, a União recorre à Suprema Corte para expulsar o pai de uma criança brasileira, que prestou contas à Justiça, à nossa sociedade e à sua própria consciência. Tudo pelo nacionalismo.

O que mudaria esse cenário seria um comportamento gravemente contrário à ordem jurídica. Mas, se, de fato, Mohamed pagou pelo seu crime e jamais delinquiu, ele, sem dúvida, aprendeu a sua lição. 

Mohamed poderia estar na Tanzânia, premiado pela magia do Monte Kilimanjaro, o lugar de onde Ernest Hemingway tirou inspiração. Ele estaria ao lado daqueles que compartilham o seu nome, sua língua-mãe, sua cultura e onde está fincada a sua linha ancestral. Mas ele alimentou a esperança numa nova jornada que começou num navio que partiu do continente africano em direção ao Brasil. A história mostra que foram muitos os navios que fizeram esse trajeto e intensas as dores que essa jornada alimentou.

Por adulterar seu passaporte – um crime –, ele passou anos na cadeia. Ressocializado, ao que se sabe hoje trabalha em São Paulo. Da sua união com Pamela, nasceu Oprah, uma brasileira. Expulsá-lo não tornará o Brasil uma nação mais elevada. Pelo contrário. O ato mostrará um país repleto de rancor e tendente à revanche.

Somos assim? Sem Mohamed, Oprah verá o ideal de Julius Nyerere, o pai fundador da Tanzânia, ser destruído mais uma vez. A menina verá seu pai partir, expulso de um país que é dela. Não haverá mais Ujamaa pela qual lutar. Estará condenada a família, o pai, a mãe e a criança. Talvez dentro de um outro navio, coberto de vergonha e marcado por uma pena que parece ser perpétua, Mohamed sentirá na pele um elemento que não parece compor a nossa alma coletiva: a incapacidade de perdoar.  


[1] HC 72.082/RJ (Min. Francisco Rezek, DJ 01.3.1996, p. 113); HC 80.493/SP (Min. Marco Aurélio, DJ 27.6.2003, p. 590); HC 82.040/PA (Min. Ilmar Galvão, DJ 20.9.2002, p. 477).

[2] Cf. http://www.nytimes.com/2016/08/04/us/politics/donald-trump-supporters.html?_r=0

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