Diário de Classe

Você conhece o jurista mais ou menos (ou o mais ou menos jurista)?

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13 de maio de 2017, 8h00

Spacca
Imagine que você está com dores no coração e procura um médico. Ao chegar, pergunta se ele entende de dor no coração, ao que ele responde: mais ou menos. Em seguida, você pergunta se ele sabe o que isso pode significar e, novamente, ele diz: mais ou menos. Qual a impressão que ele lhe passa? Confiança? Segurança? Qualidade técnica?

No Direito, vivemos um momento de multiplicação de fontes, legislação, compreensões e, principalmente, de gente que não estuda minimamente sequer os textos normativos.

Dia desses perguntei em uma palestra quem havia lido a Constituição da República. A resposta foi: mais ou menos. O Código Penal? O Código de Processo Penal? Todas as respostas foram: mais ou menos. Repeti isso em algumas salas de aula: mais ou menos, com honrosas exceções.

Está complicado estabelecer um diálogo com gente que desconhece os materiais básicos do campo jurídico, justamente porque são incapazes de discordar ou concordar motivadamente. Sabem alguma coisa sobre tudo e pouca coisa com profundidade, normalmente porque o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça já decidiu, ou talvez porque na memória de curta duração ainda esteja presente o resquício da leitura das ementas do último informativo[1].

Depois fui a campo e insisti em uma conversa animada com um membro da plateia, que veio dizer que discordava de um ponto de vista porque “tem muito crime” e não se poderia, em nome dos princípios da legalidade, taxatividade, ausência de tipicidade ou mesmo por ausência de provas, deixar de condenar quem se sabe “bandido”. Disse-me, ainda, que, se há prova, não interessa se é lícita ou ilícita, porque o que importa é a “verdade”, daí que “tem que condenar”.

Passada a impressão de que era pegadinha, até porque olhei ao redor para ver se não era algum colega querendo pregar uma peça, percebi que as afirmações eram sinceras. De uma sinceridade apoteótica de senso comum, sinceramente, sorri levemente dizendo que era bem legal encontrar gente séria e que estuda os fundamentos democráticos e saí correndo.

Não se trata de defender posturas reacionárias ou progressistas. O problema está em que eles não sabem o que dizem, na superficialidade da opinião, do lugar comum, da compreensão rasteira, desfundamentada. Tenho amigos e inimigos que são capazes de estabelecer um discurso coerente e consistente, autorizadores de um debate sério. Entretanto, são cada vez em menor número. Não é preciso ter imensa formação acadêmica, nem pedantismos de títulos, dado que, se o jurista tiver uma formação minimamente sólida, poderá dominar os requisitos básicos de um diálogo que se diz jurídico.

Enfim, você conhece a teoria do ordenamento jurídico? Teoria do Delito? Teoria do Processo? Se você respondeu mais ou menos, talvez tenhamos que conversar melhor. Claro que não poderemos saber tudo e todos os pormenores do Direito, mas é inaceitável que gente que se diz formada em Direito não tenha lido a Constituição, não domine sequer as normas em que precise operar. O resultado é o que vemos se alastrando por aí: juristas mais ou menos ou mais ou menos juristas que não se envergonham de não saber. Se você foi ao médico e teve a impressão de ele ser um charlatão ou incompetente, quem sabe possa ter a dimensão da farsa que alguns são. O que fazer? Estudar, estudar e estudar, autores sérios e que ajudem a dominar um campo importante da convivência humana. Inteligência a maioria tem, bem assim capacidade cognitiva. Mas será preciso investir tempo e dedicação na atividade cognitiva, embora o sofá, a internet e as redes sociais possam ser bem mais atrativas. Se você é capaz de sentir vergonha e pensa no futuro, escolha uma área para se dedicar depois de dominar a estrutura democrática do Direito e boa sorte. De juristas mais ou menos o inferno e os ambientes forenses estão cheios. Você quer ser mais um?


[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

Autores

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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