Interesse Público

Crise fiscal: o que deu errado com a fiscalização dos tribunais de Contas?

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11 de maio de 2017, 8h05

Spacca
A imposição de teto para os gastos públicos por intermédio da Emenda Constitucional 95/16 ainda tem sido objeto de debates na imprensa e na sociedade civil. Como se sabe, o chamado novo regime fiscal foi aprovado como resposta inicial à mais grave recessão dos séculos XX e XXI, segundo o Ministério da Fazenda. Em apertada síntese, o novo regime limita as despesas primárias, permitindo correção pela inflação, objetivando conter os gastos da União nos próximos 20 anos. Enfoques distintos a respeito dos méritos e do futuro das medidas — ambos igualmente importantes — foram expostos nesta ConJur em textos lapidares dos colegas Júlio Marcelo e Élida Graziane Pinto.

Interessa-me no momento discutir não a crise econômica ou os remédios prescritos para combatê-la, mas simplesmente verificar como os tribunais de Contas se inserem nesse preocupante cenário. Para além das medidas constantes da EC 95/16, aplicáveis somente à União, pretendo realçar a responsabilidade do controle externo em todos âmbitos e unidades da federação no exercício de competências extraídas da Constituição e de normas nacionais.

A abrangência do controles externo não se limita à mera verificação de conformidade ou subsunção à lei, em um juízo restrito que se costuma chamar de controle de legalidade. De acordo com a Constituição, o controle externo atribuído ao Legislativo abrange a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial quanto à legalidade, legitimidade, economicidade (artigo 70). A fiscalização financeira abrange toda a atividade financeira do Estado, compreendendo a obtenção, gestão e aplicação de recursos públicos. A aplicação de subvenções e a renúncia de receitas mereceram expressa referência na Constituição no que toca à fiscalização financeira, além de detida atenção da Lei de Responsabilidade Fiscal. A fiscalização orçamentária tem como objeto, como se percebe, as leis orçamentárias. Abrange o processo de formação do plano plurianual, lei de diretrizes orçamentárias e lei orçamentária anual, com todos os requisitos exigidos pela Constituição e pelas leis. A execução orçamentária também é foco de fiscalização, compreendendo todas as etapas de realização da despesa pública. A fiscalização do orçamento não se limita ao cumprimento das normas respectivas, mas também abrange a verificação da execução de programas, projetos e atividades. O acompanhamento dos resultados do orçamento com foco na eficiência dos gastos públicos tem ganhado relevo por intermédio do chamado Performance Budget, definido por Marcos Nóbrega como “procedimento ou mecanismo ligando os fundos providos pelo setor público e os resultados (outputs e outcomes) alcançados, considerando para tanto as informação sobre a performance dos programas de governo e a utilização dessa informação pelos tomadores de decisão, gerentes, políticos e sociedade”[1]. Trata-se de um caminho sem volta por meio do qual se objetiva cobrar uma performance adequada dos gastos efetuados pelo poder público. A fiscalização contábil, por seu turno, tem como foco principal a obediência às normas técnicas de contabilização presentes, sobretudo na Lei 4.320/64.

A fiscalização patrimonial incide sobre a gestão, uso e proteção do patrimônio público. Convém anotar que a Lei 4.320/64 impõe a existência de registros analíticos de todos os bens de caráter permanente, com indicação dos elementos necessários para a perfeita caracterização de cada um deles e dos agentes responsáveis pela sua guarda e administração (artigo 94). Finalmente, a fiscalização operacional visa averiguar a economicidade, eficácia e eficiência. De acordo com as Normas de Auditoria NA 1.0.38 e 1.0.40 da Organização Internacional de Entidades Fiscalizadoras Superiores – INTOSAI (International Organisation of Supreme Audit Institutions), a auditoria operacional, instrumento da fiscalização de mesmo nome, tem como objetivos verificar:

a) se a administração desempenhou suas atividades com economia, de acordo com princípios, práticas e políticas administrativas corretas;

b) se os recursos humanos, financeiros e de qualquer outra natureza são utilizados com eficiência, incluindo o exame dos sistemas de informação, dos procedimentos de mensuração e controle do desempenho e as providências adotadas pelas entidades auditadas para sanar as deficiências detectadas; e

c) a eficácia do desempenho das entidades auditadas em relação ao alcance de seus objetivos e avaliar os resultados alcançados em relação àqueles pretendidos[2].

Compreendidos o escopo e abrangência da fiscalização, cabe perguntar a respeito da relação existente entre as competências atribuídas ao controle e a constatação de crise fiscal.

Inicialmente, convém voltar ao ano 2000 e relembrar o contexto de edição da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/00). Na época, era comum dizer que a norma viera para impor ao gestor a mesma responsabilidade exigível da dona de casa com relação ao orçamento doméstico: não se pode gastar mais do que se arrecada; planejar é preciso, dizíamos reiteradamente. Nos termos da lei, “a responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar” (artigo 1º, parágrafo 1º).

A lei, dentre outras providências, a) trouxe regras para planejamento, incluindo o estabelecimento de metas; b) impôs como requisito a arrecadação de todas as receitas possíveis, estabelecendo requisitos para a renúncia de receita; c) limitou despesas com pessoal e estabeleceu pressupostos para criação de despesas de caráter permanente; d) trouxe limites e requisitos para dívida e endividamento; e e) criou instrumentos de transparência, essenciais para o controle social dos gastos públicos.

O acompanhamento das medidas mais importantes trazidas pela lei foi atribuído aos tribunais de Contas. Não se trata de mera verificação posterior, mas de acompanhamento concomitante, apto a prevenir riscos e corrigir desvios, nos termos da lei. A importância do acompanhamento foi tamanha que se criou um dever de emitir ato de alerta sempre que forem constatadas situações que ameaçarem as metas fiscais, o controle da despesa com pessoal e dos montantes das dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito e concessão de garantia, além de fatos que comprometam os custos ou os resultados dos programas ou indícios de irregularidades na gestão orçamentária (artigo 59, parágrafo 1º).

O alerta tem uma razão de ser: os tribunais de Contas devem impedir que a situação piore, evitando que desajustes se transformem em crises. Dessa forma, o primeiro ponto de controle é evitar crises fiscais por intermédio do acompanhamento concomitante da realização da receita e da geração da despesa. A execução do orçamento só é possível se houver receita, isto é, se a previsão da receita se realizar. A respeito da receita pública, é imperiosa a realização de auditoria em benefícios fiscais, buscando um controle mais efetivo na receita, pois a indevida renúncia de receitas agrava a crise fiscal e impede a execução da despesa. Como aduziu a Atricon, “a fiscalização, sempre que possível, deverá resultar em contribuições para o aperfeiçoamento da gestão pública, por meio de recomendações que otimizem a capacidade de gestão, o cumprimento de metas e/ou resultados das políticas públicas” (Resolução Atricon 06/16). Como se trata de uma medida econômica com enfoque em benefícios para o interesse público, é também essencial acompanhar se os beneficiários estão cumprindo as condições e/ou contrapartidas que ampararam a concessão da benesse fiscal.

O segundo ponto é, efetivamente, constatar a existência de crise. Em um país no qual a invocação de calamidades é frequente e onde reina a descontinuidade administrativa, a real existência de crise fiscal é essencial para que seja possível precisar sua extensão e identificar as medidas fiscais aplicáveis. Cito como exemplo atuação recente do Tribunal de Contas do Estado do Piauí, após provocação do Ministério Público de Contas, auditando a situação de municípios nos quais foi decretado estado de calamidade pública (no tocante às finanças públicas), mas os gastos públicos com o Carnaval foram preservados[3]. Se há mesmo crise, existe prazo maior para adaptação da situação fiscal, nos termos dos artigos 65 e 66 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Pode existir a possibilidade de contratação direta, sem licitação, em havendo calamidade, relativizando o dever de licitar. Por outro lado, deve ser verificada o atendimento das prioridades constitucionalmente eleitas por intermédio da vinculação de recursos: saúde e educação, sobretudo.

O terceiro e último ponto é assumir o protagonismo na formação de gestores públicos, notadamente nos municípios, e o papel de órgão indutor das reformas necessárias para a busca da eficiência e eficácia na gestão pública. A esse último ponto, contudo, voltaremos em outra oportunidade.

Os deveres estão postos no ordenamento; as competências estão estabelecidas; os objetivos, perfeitamente delineados.

Crise é comumente associada à oportunidade. Em se tratando do controle externo da administração, surge uma oportunidade necessária para refletir sobre a fiscalização dos ditames da Lei de Responsabilidade Fiscal pelos tribunais de Contas: o que deu errado?


[1] NÓBREGA, Marcos. Orçamento, eficiência e Performance Budget. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 10, n. 40, p. 175-211, out./dez. 2012.
[2] INTOSAI – International Organization of Supreme Audit Institutions. Diretrizes para aplicação de normas de auditoria operacional. Traduzido por Inaldo da Paixão Santos Araújo e Cristina Maria Cunha Guerreiro. Salvador: Tribunal de Contas do Estado da Bahia, 2005.
[3] http://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2017/01/tce-pi-rejeita-decretos-de-situacao-de-emergencia-de-15-cidades.html

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