Opinião

Lideranças políticas precisam enfrentar a questão do licenciamento ambiental

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8 de maio de 2017, 6h52

Há uma longa discussão e um razoável consenso sobre a necessidade de aprimoramento da prática do licenciamento ambiental no Brasil. Existem evidências e estudos sérios sobre o que tem funcionado e o que precisa ser aprimorado para que o licenciamento possa ser mais previsível, menos conflitivo, mais efetivo na proteção de direitos socioambientais. E por que não dizer também mais ágil e com menor grau de "judicialização"? Há grande convergência entre os diagnósticos produzidos ao longo das últimas décadas que apontam, entre outras coisas, a necessidade de:

  • investimento na capacidade as instituições de meio ambiente (conhecimento, infraestrutura, recursos tecnológicos, contratação e manutenção de quadros técnicos qualificados) e definição de fontes estáveis para seu funcionamento;
  • maior transparência e melhor gestão da informação e dos processos técnico-administrativos do licenciamento;
  • processos mais continuados e estruturados de participação e controle social (do planejamento das obras até sua operação) com mecanismos claros de devolução e prestação de contas;
  • a produção de referências estratégicas e melhor ligação entre licenciamento e planejamento territorial;
  • a definição de regra geral clara a partir da definição da Constituição Federal que estabelece a realização de Estudo de Impacto Ambiental prévio para os casos "de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente".

Muitos dos aperfeiçoamentos acima independem da mudança de legislação, mas esse tem sido o foco dos debates públicos. Há dezenas de projetos de lei que abordam esses temas em variados graus. Entretanto, a maioria deles orienta-se pela ideia de "agilização" através da "simplificação" das regras que regem o licenciamento ambiental. A maior parte desses projetos ignora os diagnósticos produzidos e não avalia consequências das mudanças legislativas propostas.

Para tornar curta uma longa história, temos hoje o substitutivo produzido pelo deputado Mauro Pereira no âmbito da Comissão de Finanças e Tributação com chances reais de ser levado ao Plenário da Câmara para votação em breve. Esse substitutivo foi elaborado sem consulta pública e aponta exatamente na direção contrária do que indicam as evidências e os estudos sobre a prática do licenciamento no país. Ele deverá agravar os problemas, em particular aumentar a insegurança jurídica, e não deveria interessar a ninguém, nem mesmo aos amplos setores públicos e privados que parecem apoiá-lo.

Um aspecto central do substitutivo diz respeito ao que deve ser licenciado, aos ritos de licenciamento e aos casos de exigência de Estudo de Impacto Ambiental. Ao contrário de propor uma regra geral clara (aprimorando as atuais estabelecidas pelo Conama), ele remete essas definições essenciais para cada ente da federação (União, estados e os quase 6 mil municípios) ou licenciadores, estimulando a fragmentação da ação dos órgãos ambientais, a redução da proteção ambiental como forma de atração de investimentos, a criação de um complexo emaranhado de legislações nos três níveis da federação e o aumento da discricionariedade das instituições de licenciamento.

De forma sumária, o substitutivo propõe ainda:

  • não considerar critérios ambientais para a definição da exigência de EIA;
  • dispensa de licenciamento uma série de atividades/empreendimentos com impacto ambiental, contrariando a própria jurisprudência do STF (ADI 1.086/SC);
  • admitir arbitragem para controvérsias que se refiram ao descumprimento das condicionantes da licença ou que versem sobre o nexo de causalidade entre as condicionantes e os impactos, mesmo sendo claro que não estamos frente a direitos privados e disponíveis;
  • o descumprimento de condicionantes ou normas ambientais deixa de ser causa para a suspensão ou cancelamento das licenças;
  • confidencialidade na comunicação entre os órgãos ambientais e eliminação da obrigatoriedade de audiência pública a partir da solicitação pelo MP, entidade civil ou 50 cidadãos;
  • caráter não vinculativo da manifestação de instituições especializadas como Funai, Fundação Palmares, entidades ligadas ao patrimônio cultural e do órgão gestor de unidade de conservação, com a revogação expressa do parágrafo 3º do artigo 36 da Lei do SNUC. Ainda estabelece prazos claramente insuficientes (tendo em vista a capacidade dessas instituições) para sua manifestação e prevê a continuidade do licenciamento caso os prazos não sejam respeitados;
  • que o licenciamento independa da certidão de uso do solo, autorizações ou outorgas (exceto recursos hídricos), fatores muitas vezes centrais para a definição da viabilidade de atividade/empreendimentos. Como o órgão licenciador poderá tramitar o procedimento sem saber se o empreendimento atende, por exemplo, o plano diretor do município?
  • a possibilidade de terceirização da “responsabilidade” pela execução de medidas compensatórias e mitigadoras;
  • eliminar a responsabilidade objetiva e solidária entre todos os envolvidos na execução das medidas compensatórias e pertencentes à mesma cadeia produtiva, contrariando lei e jurisprudência;
  • considerar a responsabilidade dos bancos e órgãos de fomento apenas nos casos de dolo ou culpa, mais uma vez criando exceção à regra da responsabilidade civil objetiva por danos ambientais e contrariando a Lei 6.938/81 e jurisprudência do STJ (Resp 650.728-SC).
  • modificação da Lei do Parcelamento do Solo Urbano para tornar o cronograma de execução de obras mínimas em loteamentos idêntico ao do licenciamento, procrastinando obras necessárias para as cidades e desconsiderando que os loteadores exercem função pública subsidiária na construção da cidade;
  • isentar de processo licitatório qualquer aquisição de bens e serviços relacionados ao licenciamento ambiental, desconsiderando que a proposta mais vantajosa para a administração pública deveria contemplar a dimensão da sustentabilidade, e não apenas a dimensão econômica.

Esse conjunto de proposições claramente desestimula a organização do Sistema Nacional de Meio Ambiente e retrocede na proteção da sociedade e do meio ambiente de forma profunda. Não trará, certamente, o aprimoramento das práticas do licenciamento. Ao contrário, apesar do discurso em favor da celeridade, criaram-se tantos retrocessos, atropelando órgãos técnicos especializados, buscando alterar o regime de responsabilidade pelo dano ambiental, ampliando a discricionariedade dos órgãos licenciadores, que não haverá segurança jurídica alguma e, certamente, gerará um aumento das disputas judiciais. Também se prevê a inviabilização de financiamentos internacionais por desatendimento dos standarts dos bancos internacionais.

Está mais do que na hora de nossas lideranças políticas enfrentarem o desafio de uma discussão transparente, aberta e tecnicamente qualificada sobre a melhoria das práticas de licenciamento no país. Isso envolve olhar para uma série de aspectos fundamentais que vão além do marco regulatório. A alternativa para isso não devem ser propostas "mágicas" que, sob pretexto de celeridade, desprotegem a sociedade e perpetuam o licenciamento como problema.

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