Direito Civil Atual

Qual é o prazo prescricional da responsabilidade contratual? Parte 1

Autores

  • Judith Martins-Costa

    foi professora adjunta de Direito Civil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É doutora e livre docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Presidente do Instituto de Estudos Culturalistas (IEC) e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas (ABLJ).

  • Cristiano de Sousa Zanetti

    é professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Bacharel mestre doutor e livre-docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Mestre em Sistema Jurídico Romanístico Unificação do Direito e Direito da Integração pela Università degli Studi di Roma Tor Vergata. Foi vice-reitor executivo adjunto de Administração da Universidade de São Paulo.

8 de maio de 2017, 9h19

O Código Civil de 2002[1] procurou disciplinar de maneira criteriosa a influência do tempo nas relações jurídicas. Guiada pela diretriz da concretude, ou operabilidade, a Comissão Elaboradora do Anteprojeto decidiu “estabelecer soluções normativas de modo a facilitar sua interpretação e aplicação do Direito”[2]. E o primeiro exemplo dessa diretriz está no tratamento dado à prescrição e à decadência. Baldados os esforços para se oferecer guia seguro à distinção entre uma e outra, “com graves consequências de ordem prática”, resolveu-se enumerar, na Parte Geral, os casos de prescrição, em numerus clausus[3].

A diretriz da concretude, ou operabilidade, contudo, embora possa importar em simplificação de soluções (como é exemplo o tratamento dado à prescrição e à decadência), não se confunde com o oferecimento de soluções simplistas impermeáveis ao distinguo que está na base da técnica jurídica.

Não obstante o esforço de precisão levado a efeito pelo legislador no regramento do fenômeno tempo e direito, logo surgiu uma importante controvérsia acerca da regra que prevê o prazo prescricional de três anos para a “pretensão de reparação civil”, no artigo 206, § 3º, inciso V, do Código Civil. Designadamente, discutiu-se se a pretensão à reparação de danos decorrente da violação de um contrato estava sujeita ao prazo prescricional de três anos, previsto na referida regra, ou se, diversamente, se enquadraria na regra geral, que prevê o prazo prescricional de dez anos, nos termos do artigo 205 do Código Civil, ressalvadas, naturalmente as hipóteses em que a Lei prevê prazo especial para determinadas espécies de contratos.

Dada sua relevância, a questão foi submetida à apreciação do Superior Tribunal de Justiça. A primeira decisão sobreveio em 2006 e concluiu pela aplicação do prazo de três anos também para a responsabilidade contratual[4]. No ano de 2008, a matéria foi submetida à apreciação da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, composta pela 3ª e 4ª Turma da Corte e responsável por julgar as questões de Direito Privado, a qual decidiu que o prazo prescricional se enquadrava na regra geral e, portanto, era de dez anos[5]. No ano seguinte, a matéria foi apreciada pela 5ª Turma, responsável por julgar as questões de Direito Penal, que concluiu pela prescrição trienal[6].

Na sequência, no período compreendido entre 2009 e 2011, sobrevieram sete julgados que decidiram pela aplicação do prazo de dez anos[7]. No ano de 2012 foi proferido julgado que manteve a prescrição de três anos, mas apenas pela circunstância de a decisão da instância inferior nesse sentido não ter sido impugnada em sede recursal[8]. No intervalo entre 2013 e 2015, houve mais 13 julgados: 12 concluíram pela prescrição decenal[9] e um pela prescrição trienal, novamente por não se tratar de matéria objeto de recurso[10]. No primeiro semestre de 2016, houve mais dois acórdãos, ambos favoráveis à prescrição decenal[11].

Ao longo de um decênio, de maneira majoritária, o Superior Tribunal de Justiça concluiu que a pretensão indenizatória fundada na responsabilidade contratual estava sujeita à prescrição de dez anos, conforme previsto na regra geral constante do artigo 205 do Código Civil. De fato, foram proferidos 22 acórdãos nesse sentido contra apenas quatro em sentido oposto. Não há dúvidas, portanto, sobre a constância e firmeza do entendimento segundo o qual a pretensão indenizatória, quando reportada a danos advindos da violação de um negócio jurídico, obedecia ao prazo decenal.

A orientação prevalente fundou-se no fato de a expressão “reparação civil”, comumente, apontar à responsabilidade extracontratual, enquanto a responsabilidade contratual é denominada, de modo habitual, como “responsabilidade pelo inadimplemento do contrato”, ou, mais sinteticamente, “inadimplemento”, “incumprimento” ou “inexecução contratual”.

De maneira surpreendente, no entanto, no final de 2016 sobreveio julgado que – paradoxalmente fundado no propósito de promover a segurança jurídica –, concluiu pela aplicação do prazo trienal também para as pretensões indenizatórias fundadas no inadimplemento contratual[12]. Acabou-se por chegar a uma solução simplista, que desatende à outra das diretrizes da Comissão Elaboradora do Anteprojeto, a diretriz sistemática, pela qual se há de compreender que o Código tem de ter uma unidade lógica[13].

O julgado chama a atenção por várias razões. A primeira delas é o fato de que tanto o relator quanto os demais ministros votantes reviram suas posições anteriores, para, então, afirmar que a “pretensão à reparação civil” indica não apenas a indenização por danos advindos de ilícitos absolutos, abrangendo igualmente a indenização devida em razão de danos provocados pelo inadimplemento contratual[14]. Para justificar a mudança de orientação, o julgado invocou três fundamentos jurídicos — o literal, o sistemático e o axiológico.

Em primeiro lugar, fundou-se na letra da lei, para afirmar que o termo “reparação civil” deve ser lido de maneira ampla, de modo a abarcar tanto a responsabilidade contratual, como a extracontratual; em segundo lugar, defendeu que essa interpretação mais bem se harmoniza com as demais regras que governam a responsabilidade contratual; e, em terceiro lugar, sustentou que o princípio constitucional da isonomia impede que haja prazos distintos para as obrigações fundadas em uma e outra espécie de responsabilidade.

As colunas subsequentes procurarão demonstrar que nenhum desses argumentos convence, pois não concretizam os valores nos quais abstratamente parecem repousar. Na coluna da semana que vem, dedicada à Parte II, será examinado o elemento literal constante do dado normativo. Na sequência, na Parte III, o texto legal será analisado em consonância com as exigências próprias à interpretação sistemática. Por fim, na Parte IV, serão postos em evidência os valores subjacentes à distinção promovida pela legislação.

Desse modo, os argumentos invocados pelo recente julgado do Superior Tribunal de Justiça para promover a mudança de sua própria orientação serão submetidos a escrutínio voltado a trazer à tona o que parece ter sido esquecido: as diretrizes da operabilidade, ou concretude, e a da sistematicidade, dois dos eixos fundantes sobre os quais se ergue a arquitetura codificada, constituindo, ao mesmo tempo, “travamento lógico e técnico” e a base da “sustentação ética” do Código Civil[15].

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[1] O estudo completo dos autores a propósito tem o título de “Responsabilidade contratual: prazo prescricional de 10 anos” e se encontra na Revista dos Tribunais 979/215-240. Publicadas a partir de hoje, as quatro partes da coluna procuram sintetizar as ideias contidas em tal artigo.

[2] REALE, Miguel. Estrutura e Espírito do Novo Código Civil. In: REALE, Miguel; MARTINS-COSTA, Judith (coord.). História do novo Código Civil. Biblioteca de direito civil. Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 40.

[3] REALE, Miguel. Estrutura e Espírito do Novo Código Civil. cit, p. 40.

[4] REsp 822.914/RS. Terceira Turma. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros. j. em 01.06.2006.

[5] REsp 1.033.241/RS. Segunda Seção. Rel. Min. Aldir Passarinho Junior. j. em 22.10.2008.

[6] AgRg no Ag 1.085.156/RJ. Quinta Turma. Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima. j. em 03.03.2009.

[7] O REsp 616.069/MA. Quarta Turma. Rel. Min. João Otávio de Noronha. j. em 26.02.2008; REsp 1.121.243/PR. Quarta Turma. Rel. Min. Aldir Passarinho Junior. j. em 25.08.2009; REsp 1.222.423/SP. Quarta Turma. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. j. em 15.09.2011; REsp 1.276.311/RS. Quarta Turma. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. j. em 20.09.2011; REsp 1.150.711/MG. Quarta Turma. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. j. em 06.12.2011; Ag no REsp 1.057.248/PR. Terceira Turma. Rel. Min. Sidnei Beneti. j. em 26.04.2011; Ag no AREsp 14.637/RS. Quarta Turma. Rel. Min. Maria Isabel Gallotti. j. em 27.09.2011.

[8] REsp 1.346.289/PR. Terceira Turma. Rel. Min. Sidnei Beneti. j. em 11.12.2012.

[9] AgRg no Ag 1.401.863/PR. Quarta Turma. Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira. j. 12.11.2013; AgRg no AREsp 426.951/PR. Quarta Turma. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. j. em 03.12.2013; REsp 1.326.445/PR. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. J. 04.02.2014; REsp 1.159.317/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. j. em 11.03.2014; AgRg no AREsp 477.387/DF. Quarta Turma. Rel. Min. Raul Araújo. j. 21.10.2014; EDcl no AgRg no REsp 1.436.833/RS. Terceira Turma. Rel. Min. Sidnei Beneti, rel. p/ acórdão Min. Paulo de Tarso Sanseverino. j. 02.12.2014; AgRg no REsp 1.485.344/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Marco Aurelio Bellizze. j. 05.02.15; AgRg no REsp 1.516.891/RS. Segunda Turma. Rel. Min. Humberto Martins. j. 28.04.2015; AgRg no Ag 1.327.784/ES. Quarta Turma. Rel. Min. Maria Isabel Gallotti. j. 27.08.2013; AgRg no REsp 1.317.745/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. j. 06.05.2014; AgRg no REsp 1.411.828/RJ. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. 07.08.2014.

[10] AgRg no AREsp. 54.771/PR. Quarta Turma. Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira. j. 05.03.2015.

[11] AgRg no AREsp 783.719/SP. Quarta Turma. Rel. Min. Maria Isabel Gallotti. j. 10.03.2016; e AgIn em REsp 1.112.357/SP. Primeira Turma. Rel. Min. Sérgio Kukina. j. 14.06.2016.

[12] REsp 1.281.594/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. j. 22.11.2016.

[13] REALE, Miguel. O projeto de Código Civil – Situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 5.

[14] AgRg no REsp 1.485.344 / SP, rel. Min. Marco Aurelio Bellizze, j. 5.2.15; REsp 1.159.317/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. j. em 11.03.2014; AgRg no REsp 1.411.828/RJ. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. em 07.08.2014; e EDcl no AgRg no REsp 1.436.833/RS. Terceira Turma. Rel. Min. Sidnei Beneti, rel. p/ acórdão, Min. Paulo de Tarso Sanseverino. j. em 02.12.2014.

[15] REALE, Miguel. O projeto de Código Civil, cit, p. 3. 

Autores

  • Brave

    foi professora adjunta de Direito Civil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É doutora e livre docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Presidente do Instituto de Estudos Culturalistas (IEC) e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas (ABLJ).

  • Brave

    é professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Bacharel, mestre, doutor e livre-docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Mestre em Sistema Jurídico Romanístico, Unificação do Direito e Direito da Integração pela Università degli Studi di Roma Tor Vergata. Foi vice-reitor executivo adjunto de Administração da Universidade de São Paulo.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!