Observatório Constitucional

O Supremo e seu papel de tribunal da federação

Autor

  • Marco Túlio Reis Magalhães

    é doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo mestre em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

6 de maio de 2017, 8h05

Uma importante competência originária do Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, é aquela que o autoriza a processar e julgar, originariamente, as causas e os conflitos entre a União e os estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração direta. Essa competência está prevista no artigo 102, inciso I, alínea f, da Constituição Federal de 1988.

Embora aparentemente simples a sua compreensão, a interpretação da referida competência tem revelado uma postura cuidadosa e restritiva do STF quanto ao seu alcance. Nesse sentido, a doutrina e, em especial, a jurisprudência da corte têm desenvolvido parâmetros e balizas hermenêuticas que, pouco a pouco, vão desvendando a potencialidade e os limites dessa norma. É sobre esse tema que se busca apontar algumas considerações a seguir.

Do ponto de vista institucional, a aludida competência atribuída ao Supremo Tribunal Federal realça uma perspectiva de sua atuação que vai além da sua compreensão como órgão da União, como última instância recursal ou como garante maior da correta interpretação e aplicação da Constituição. Revela-se aqui a sua faceta de efetivo tribunal da federação. Em certo sentido, isso ilustra a pertinência da caracterização do Supremo Tribunal como federal.

Essa competência revela a feição nacional do STF, que atua para dirimir conflitos que possam afetar o equilíbrio do princípio federativo em nossa República. A esse respeito, vale destacar o entendimento da jurisprudência da corte:

"A Constituição da República confere, ao Supremo Tribunal Federal, a posição eminente de Tribunal da Federação (CF, art. 102, I, "f"), atribuindo, a esta Corte, em tal condição institucional, o poder de dirimir as controvérsias, que, ao irromperem no seio do Estado Federal, culminam, perigosamente, por antagonizar as unidades que compõem a Federação. Essa magna função jurídico-institucional da Suprema Corte impõe-lhe o gravíssimo dever de velar pela intangibilidade do vínculo federativo e de zelar pelo equilíbrio harmonioso das relações políticas entre as pessoas estatais que integram a Federação brasileira. A aplicabilidade da norma inscrita no art. 102, I, "f", da Constituição estende-se aos litígios cuja potencialidade ofensiva revela-se apta a vulnerar os valores que informam o princípio fundamental que rege, em nosso ordenamento jurídico, o pacto da Federação. Doutrina. Precedentes" (ACO 1.048-QO/RS, rel. min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 31/10/2007).

A doutrina também alude à ideia de um tribunal da federação, seja a partir da sua relação com a própria afirmação histórica do judicial review (sobretudo no contexto norte-americano), seja a partir da importância da função de garantir certa homogeneidade constitucional inerente a toda federação[1].

Apesar da forte referência ao aspecto do equilíbrio federativo, há uma série de ressalvas e balizas que devem orientar a compreensão desse tema.

Um primeiro ponto diz respeito à situação dos municípios no contexto brasileiro. A despeito de a Constituição de 1988 inserir os municípios no pacto federativo (conferindo-lhes autonomia político-administrativa), eles não foram mencionados no artigo 102, I, f, da Constituição. Esse importante aspecto tem efeito prático, pois impede, em princípio, o acolhimento de causas e conflitos que envolvam municípios entre si ou municípios e os demais entes da federação. De fato, dado o elevado número de municípios existentes no país, isso poderia se revelar como forte empecilho ao regular funcionamento da corte.

Além disso, a referência expressa a entidades da administração indireta da União, estados e Distrito Federal, eleva o número de sujeitos capazes de provocar o exercício da referida competência constitucional (Rcl 2.549/PE, rel. min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, DJ 10/8/2006).

Basta lembrar que, no âmbito federal, a Procuradoria-Geral Federal, órgão da Advocacia-Geral da União, exerce a representação judicial e extrajudicial, a consultoria e assessoramento jurídicos de mais de 150 autarquias e fundações públicas federais (entidades da administração indireta da União), bem como a apuração da liquidez e certeza dos créditos, de qualquer natureza, inerentes às suas atividades, inscrevendo-os em dívida ativa, para fins de cobrança amigável ou judicial. Por consequência, diversas causas e conflitos atinentes à atuação das autarquias e fundações públicas federais podem atrair a competência do STF.

No âmbito da administração pública federal, há ainda um importante órgão que pode atuar como um significativo colaborador do STF como tribunal da federação: a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCaf). Duas competências administrativas da CCaf chamam a atenção nesse aspecto (artigo 18, incisos III e IV, do Decreto 7.392, de 13 de dezembro de 2010):

“III – dirimir, por meio de conciliação, as controvérsias entre órgãos e entidades da Administração Pública Federal, bem como entre esses e a Administração Pública dos Estados, do Distrito Federal, e dos Municípios;

IV – buscar a solução de conflitos judicializados, nos casos remetidos pelos Ministros dos Tribunais Superiores e demais membros do Judiciário, ou por proposta dos órgãos de direção superior que atuam no contencioso judicial”.

Nesse sentido, há aqui a possibilidade de solução administrativa ex ante ou, ainda, no curso do processo judicial, em evidente auxílio à resolução de demandas que sejam remetidas por ministros do Supremo Tribunal Federal. É um mecanismo de integração administrativa à atuação político-jurídica do STF como tribunal da federação, que merece contínuo desenvolvimento.

Outro ponto interessante diz respeito à menção que o texto constitucional faz a dois termos distintos: causa ou conflito. Segundo José Afonso da Silva, essa distinção remeteria à ideia de uma atuação mais ampla, abrangendo não só o litígio judicial em que se busca submeter um interesse a outro (próximo ao conceito de lide processual), mas também a outras situações em que, independentemente da característica anterior, remanesceria um conflito a ser dirimido[2].

De todo modo, a amplitude da disposição constitucional parece apontar, em princípio, para toda e qualquer causa e para todo e qualquer conflito que envolvesse os entes federativos e respectivas entidades da administração indireta. Contudo, como já evidenciado no precedente anteriormente mencionado, o Supremo Tribunal Federal tem firmado o entendimento de que é preciso fazer um juízo acerca da intensidade e da potencialidade ofensiva do conflito analisado.

Esse parâmetro interpretativo tem como finalidade afastar da apreciação da corte as causas que envolvam os entes mencionados no dispositivo constitucional, mas que não tenham, necessariamente, um efetivo conflito federativo. Em outras palavras, casos em que a intensidade e a potencialidade ofensiva do conflito não configurem uma possível instabilidade no equilíbrio do pacto federativo ou uma ruptura da harmonia federativa. Em síntese, compete ao Supremo Tribunal dirimir conflitos federativos, o que não significa, necessariamente, conflitos entre entes federados (ACO 1.295-AgR-Segundo, rel. min. Dias Toffolli, Tribunal Pleno, DJe 2/12/2010; ACO 1.048-QO/RS, rel. min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 31/10/2007).

O aludido parâmetro é de grande interesse, pois abre espaço para ricos debates de compreensão da dinâmica federativa em variadas situações levadas à apreciação da corte. Ele funciona como um elemento político-jurídico de estabilização e harmonização de conflitos federativos. E do ponto de vista estritamente processual, esse controle determina a (in)competência absoluta da corte para solução dos casos, comumente dirimida em julgamento de questões de ordem.

A definição de que casos devem ser apreciados acaba recebendo diversos contornos de fundamentação, a depender de suas peculiaridades. Alguns exemplos são interessantes.

O STF costuma afastar a sua competência em causas de conteúdo estritamente patrimonial, como aquelas fundadas em títulos extrajudiciais ou que discutam específica exação tributária, sem qualquer substrato político (ACO 359-8/SP, rel. min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 11/3/1994; ACO 1.339/SC, rel. min. Roberto Barroso, DJe 5/3/2014).

Contudo, em situações que envolvam litígio sobre propriedade de terras devolutas, é possível a configuração do conflito federativo apto a atrair a competência da corte (ACO 477 QO/TO, rel. min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, DJ 24/11/1995 — nesse caso, havia discussão entre autarquia federal e estado-membro).

No campo tributário, pode-se mencionar, por exemplo, a questão da imunidade recíproca, compreendida pelo STF como uma projeção concretizadora do princípio da federação, de modo a impedir cobrança de ICMS de empresa pública prestadora de serviço público — por exemplo, Correios e Casa da Moeda do Brasil (ACO 2.654 AgR/DF, rel. min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJe 22/3/2016; ACO 2.179 TA-AgR/DF, rel. min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJe 9/3/2016).

Outro tema comum é a discussão sobre a possibilidade e os efeitos de inscrição de estados e do Distrito Federal em cadastros de inadimplência (como Siafi, Cadin, Cauc), por parte da União ou de suas entidades da administração indireta, em que o STF costuma deferir a suspensão dos efeitos negativos dos referidos cadastros, em situações em que o impedimento de repasse de verbas federais possa trazer risco para a continuidade da execução de políticas públicas (ACO 2.455 MC-AgR/AC, rel. min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 4/11/2015; ACO 1.600 AGR/PI, rel. min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 3/8/2015).

Contudo, há precedentes recentes que, em certas situações, vêm modificando a compreensão da intensidade e da configuração do conflito nesse contexto, em favor da União e de entes de sua administração direta, no sentido de afastar a competência do STF para o caso (ACO 2.445/AC, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJe 13/6/2014; ACO 2.227, rel. min. Roberto Barroso, DJe 30/5/2014).

Casos ligados às políticas fundiária, indígena e ambiental também costumam ser decididos pelo STF em razão da existência de conflitos federativos ou de causas capazes de afetar o equilíbrio federativo, posto que envolvem a delimitação de interesses superpostos e comumente conflitantes de estados, Distrito Federal, União e entidades da administração indireta. Isso pode ocorrer em situações de delimitação de áreas indígenas, de áreas para exploração econômica e de áreas de proteção ambiental.

Um exemplo marcante é o famoso caso da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Em razão de provimento de reclamação constitucional (Rcl 2.833/RR, rel. min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, DJ 5/8/2005), que aludia à usurpação de competência do STF em relação à ação popular ajuizada em primeiro grau e em que se entendeu haver grave conflito federativo entre União e estado-membro, o julgamento do caso foi deslocado para a suprema corte (Pet 3.388/RR, rel. min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, DJe 25/9/2009).

Fenômeno semelhante também já ocorreu em casos originalmente ajuizados como ação civil pública em instâncias inferiores (ACO 473, rel. min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ 27/4/2001).

Outro campo temático dessa discussão diz respeito a questões ligadas a conflitos de atribuições entre Ministérios Públicos estaduais e do Distrito Federal, em relação ao Ministério Público Federal. Em face da ausência de disposição constitucional que trate de sua solução, o STF tem decidido, a partir de uma intepretação alargada do artigo 102, I, f, da Constituição, no sentido de haver aí a configuração de conflito de substrato político de órgãos de distintos entes federativos, apto a atrair a sua competência (MS 22.042 QO/RR, rel. min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, DJ 24/3/1995; Pet 3.528/BA, rel. min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJ 3/3/2006).

Há também casos recentes e pendentes de posicionamento mais claro da corte, em que se discute, por exemplo, a compensação de valores ligados à sistemática de ajuste de contas do Fundeb (repassados a título de complementação da União), com a questão de se saber se há, de fato, conflito federativo — a atrair a competência do STF — ou apenas discussão patrimonial sobre cobrança de verbas devidas (ACO 2.793 MC/DF, rel. min. Marco Aurélio, DJe 23/2/2017).

Como visto, a aludida competência do Supremo Tribunal Federal abarca não só uma diversidade de entes federativos (e respectivas entidades da administração indireta), mas também uma grande potencialidade de causas e conflitos federativos.

As considerações e precedentes jurisprudenciais aqui apresentados permitem entrever a importância do exercício da aludida competência do STF, no sentido de se concretizar um verdadeiro tribunal da federação, bem como a complexidade existente na definição da abrangência e das balizas interpretativas que guiam a compreensão jurídica do artigo 102, I, f, da Constituição.


[1] MENDES, Gilmar Ferreira; STRECK, Lênio Luiz. Comentário ao art. 102. I, CF/88. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes et al. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1367; MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 1376 (inclusive em referência à afirmação de Carl Schmitt).
[2] O referido autor relembra o seguinte episódio histórico: “A causa mais rumorosa entre Estado e União foi a movida pelo Estado do Amazonas, reivindicando o Território do Acre, logo depois que ele foi adquirido pela Bolívia. Ruy Barbosa foi o advogado do Estado do Amazonas; perdeu a causa. A causa não deixa de ter um conflito, mas a configuração separada dos dois termos significa que o conflito de que se trata não é a controvérsia em juízo. É de lembrar que na definição territorial dos Estados-membros surgiram diversos conflitos relativamente a limites estaduais, a ponto de o art. 34, n. 10, da Constituição de 1891 conferir competência privativa ao Congresso Nacional para resolver definitivamente sobre os limites dos Estados entre si. Hoje o assunto está pacificado”. SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 9 ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 562.

Autores

  • é doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!