Resgate da história

Batizar Congonhas de Freitas Nobre simboliza resistência à ditadura militar

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28 de junho de 2017, 15h08

Quando se quer criticar o Poder Legislativo, diz-se que os parlamentares não discutem nada que interesse ao país. Gastam tempo e o dinheiro do contribuinte mudando nome de rua e homenageando ex-políticos rebatizando prédios públicos. Mas não foi nada trivial a mudança do nome do Aeroporto de Congonhas para Aeroporto de Congonhas Deputado Freitas Nobre. O nome apareceu como oposição à ideia de se usar o aeroporto para tentar resgatar a memória de figuras ligadas à ditadura militar, que se instalou no Brasil em 1964 e durou até 1985.

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Desde o dia 19 de junho, Congonhas se chama Aeroporto Internacional de Congonhas Deputado Freitas Nobre.

No dia 25 de maio deste ano, o Senado aprovou, por unanimidade, a mudança do nome do segundo aeroporto mais movimentado do Brasil. A matéria estava parada no Senado desde 2012, quando a Câmara dos Deputados aprovou o projeto por aclamação, por sugestão do autor do projeto, o ex-deputado João Bittar (DEM-MG). No dia 19 de junho, foi publicada a lei que mudou o nome do aeroporto, sem vetos.

Morto em 1990, Freitas Nobre foi um dos símbolos da luta pela redemocratização do Brasil em diversos momentos. Esteve à frente da reivindicação da anistia para os perseguidos pela ditadura militar, foi uma das lideranças da Aliança Democrática que costurou o fim do regime, e da campanha por eleições diretas depois que os militares deixaram o poder.

A ideia de rebatizar Congonhas com o nome dele nasceu em um jantar de deputados, em Brasília. Foi quando ficaram sabendo que se fortalecia um movimento no Congresso de usar o aeroporto para homenagear alguém ligado à ditadura. Queriam demarcar posição contrária às articulações de rediscutir a Lei da Anistia e resgatar as histórias de tortura e repressão por parte do governo.

Os nomes preferidos para Congonhas eram os do general Golbery do Couto e Silva e o de Romeu Tuma. Golbery foi o criador do Sistema Nacional de Informação (SNI), um dos principais teóricos da doutrina da segurança nacional e, segundo o jornalista Elio Gaspari, o grande articulador do “golpe dentro do golpe”, por meio do qual os militares continuaram no poder, sem devolvê-lo aos civis, conforme havia sido prometido para emplacar o golpe de 1964 e derrubar o governo civil de João Goulart.

Mas, pelas conexões políticas, foi o nome de Romeu Tuma o escolhido. Senador por dois mandatos, Tuma também é das figuras intimamente ligadas ao governo militar: era delegado da Polícia Civil e chefiou o Departamento de Ordem e Política Social de São Paulo (Dops) e sua versão de São Paulo, o Deops-SP. Ao todo, ficou no governo de 1966 a 1985. Depois do fim da ditadura, foi diretor-geral da Polícia Federal e superintendente da corporação em São Paulo.

Alternativas
O rebatismo de Congonhas com o nome de Tuma chegou a ser proposto em projeto de lei de 2011, do então senador José Sarney (PMDB-AP). “Como político, é meu dever reconhecer a importância de homens que marcaram sua existência com a dedicação à causa da Justiça e à valorização da cidadania”, escreveu Sarney, na justificativa ao projeto de lei.

Não era a primeira vez que se tentava mudar o nome do aeroporto. Em 2001, o próprio Tuma quis homenagear o piloto Omar Fontana, fundador da Sadia S/A Tranportes Aéreos, que depois virou Transbrasil. Também havia projetos para homenagear o fundador da TAM, hoje Latam, Rolim Amaro, e o papa João Paulo II.

Mas o projeto de Sarney, que chegou a ser aprovado nas comissões do Senado, causou indignação entre parlamentares. Foi quando o ex-deputado João Bittar sugeriu o nome de Freitas Nobre.

Memórias
Político, advogado e jornalista, Freitas Nobre trabalhou em diversas redações de jornais e foi presidente do sindicato da categoria em São Paulo e da Federação Nacional dos Jornalistas. Advogado, era especialista em liberdade de expressão e matérias ligadas a imprensa – seu livro sobre a extinta Lei de Imprensa é até hoje um dos mais citados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal nos julgamentos sobre o assunto.

Reprodução/Senado - J.C.Brasil/CPDoc JB
Freitas Nobre foi deputado de 1970 a 1989 e líder das Diretas Já e do movimento pela anistia ampla, geral e irrestrita aos perseguidos pela ditadura militar.
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Nobre se elegeu deputado federal em 1970. Antes disso, foi vice-prefeito de São Paulo durante a última gestão de Prestes Maia, entre 1961 e 1965. Na época, prefeito e vice eram eleitos separadamente.

“O Aeroporto de Congonhas era a sua casa”, escreveu João Bittar no projeto de mudança de nome do aeroporto para homenagear o amigo. Durante a ditadura, os saguões de Congonhas eram ponto de encontro de diversos políticos e intelectuais paulistas da época que se opunham ao governo militar.

Entre as lideranças que habitavam “o oponente e belo hall” do aeroporto, estavam Ulysses Guimarães, Almino Afonso, Franco Montoro e Alencar Furtado, conforme lembra o advogado Marcelo Nobre, ex-conselheiro do CNJ e filho de Freitas Nobre, em artigo publicado na ConJur. Durante a ditadura, disse Marcelo, “Congonhas reafirmou a sua essência e, silenciosamente, contribuiu com a ligação dos semeadores da democracia com seu povo”.

Verdades
Embora contemporâneo de Freitas Nobre, Romeu Tuma traz outra memória ao aeroporto. Delegado da Polícia Civil, passou a integrar os quadros do governo militar depois da criação do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi), que centralizou os órgãos de segurança sob o comando do governo federal.

Já em 1966, Tuma foi chefiar o Deops-SP. Ficou lá 11 anos (saiu em 1977 para chefiar o Dops). Nesse período, criou “íntima relação” com a chamada “comunidade de informação” do governo militar, centralizada no SNI, segundo o relatório final da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo.

Agência Pública
Delegado e senador por dois mandatos, Romeu Tuma foi chefe do Dops e do Deops-SP, dois importantes instrumentos de repressão política da ditadura militar.
Agência Pública

De acordo com o documento, Tuma enviou diversos relatórios a Brasília sobre atividades sindicais, protestos, passeatas e atos estudantis, sob a justificativa de serem atos potencialmente violadores da segurança nacional. A Comissão Nacional da Verdade, do governo federal, diz que não há provas de que Tuma tenha participado ou tomado conhecimento de torturas ou prisões ilegais. Apenas de que ele chefiou pessoas contra quem há inúmeras acusações de tortura.

Por causa de seu tempo à frente do Deops-SP, Romeu Tuma tornou-se réu numa ação civil pública em que o Ministério Público Federal pede que as famílias de desaparecidos durante a ditadura sejam indenizadas. Ele é acusado de ocultação de cadáver.

Crime permanente
A ação do Ministério Público se baseia em conclusões CPI aberta pela Câmara Municipal de São Paulo em 1990 para investigar a descoberta de uma vala clandestina no Cemitério de Perus. A conclusão foi que a vala foi usada para sepultar perseguidos políticos que foram mortos em confronto com a ditadura ou sob tortura.

De acordo com o relatório final, publicado em 1992, o cemitério foi criado como um crematório paralelo, destinado a indigentes. Conforme o combinado com o Instituto Médico Legal – os mortos da ditadura eram enviados como indigentes a Perus, embora o governo e o IML soubessem de suas identidades.

Tuma é acusado de ter participado da ocultação do cadáver de Flávio Carvalho Molina. O corpo de Flávio foi enterrado sob nome falso no Cemitério de Perus e, em 1976, seus restos mortais foram transportados para a vala comum descoberta pela CPI. Ficaram lá até o dia 1º de dezembro de 1990, quando foi exumado com outras mil ossadas, segundo o relatório da CPI da Câmara Municipal dos Vereadores.

De acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, em agosto de 1978, Romeu Tuma enviou ofício ao juiz auditor responsável pelo caso de Molina com cópia do atestado de óbito. No ofício, “o delegado assumia a prisão de Flávio ao informar o juiz que, por ocasião do ‘estouro do aparelho’ onde havia sido preso José Roberto Arantes, teriam localizado manuscrito de encontro com André, que, na verdade, era Álvaro Lopes Peralta ou Flávio Carvalho Molina”.

Na contestação às alegações do MPF, a defesa de Tuma negou que esses fatos tenham acontecido. “Não é razoável imaginar” que ele tivesse tantas responsabilidades, diz a petição. “Ainda que fosse possível”, continua o documento, Tuma apenas exercia funções de polícia judiciária, e não participava de atividades de polícia ostensiva.

Já o nome de Freitas Nobre, diz o ex-deputado João Bittar, ao justificar o novo batismo do aeroporto, "significa o reconhecimento e o resgate da memória de um homem público de bem que nunca teve medo de enfrentar os obstáculos da sua época para promover a igualdade, a liberdade e a fraternidade entre todos os brasileiros”.

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