Tribuna da Defensoria

Financiamento imobiliário e a proteção deficiente do consumidor

Autores

  • Bruno de Almeida Passadore

    é doutorando em Teoria do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Processual pela mesma instituição defensor público estadual em Curitiba e diretor da Escola da Defensoria Pública do Estado do Paraná.

  • Fabíola Parreira Camelo

    é Defensora Pública do Paraná atuante nos ofícios Cível e Juizado da Fazenda Pública de Curitiba especialista em Direito do Estado pela Uniderp.

27 de junho de 2017, 10h40

O Poder Público possui a obrigação de garantir direitos fundamentais de diversas formas. É possível que esse mandamento se dê através de abstenções ou condutas positivas. Ademais, como subespécie destas medidas, é possível que, no intuito de garantir direitos fundamentais, o Estado venha a regular a ação entre particulares, obstando-se medidas despropositadas de um indivíduo em face de outrem ou incentivando condutas de particulares em prol de um objetivo coletivo.

Trata-se de reconhecer, portanto, que, para realização do Estado Democrático de Direito, há a necessidade de uma determinada ordem que seja capaz de tornar menos frequente e menos ásperos os conflitos sociais, ao lado da necessidade de direcionar interesses divergentes no sentido de objetivos sociais comuns. Assim, se de um lado, há a necessidade de reconhecer que para o regime democrático se mostra imperativa uma estrutura que deva ser preservada e capaz de viabilizar a convivências dos indivíduos na sociedade; por outro, há a necessidade de se buscar a cooperação entre os indivíduos ou grupos — os quais perseguem cada qual seus interesses privados — em prol de um fim comum[1].

Exatamente neste fito, o Estado Brasileiro procura garantir o direito fundamental à habitação digna não só através da construção e concessão de imóveis aos seus cidadãos, mas, igualmente, interferindo nas relações contratuais que envolvam a obtenção de referido bem intimamente relacionado à dignidade do ser humano.

Com este objetivo, regulam-se alguns contratos com o fim de adquirir bens imóveis, como se dá através pela Lei 9.514/1997, cujo fito é regular o “negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel” (artigo 22). Em outras palavras, aludido diploma ocupa-se de interferir e estabilizar uma importante forma pela qual a casa própria é obtida: um contrato em que o consumidor obtém numerário para a aquisição de sua morada, porém transferindo a propriedade de referido imóvel ao seu credor — usualmente instituição financeira — até, entre outras coisas, o pagamento de sua dívida (artigo 17, IV) adicionada, por evidente, de juros e outros encargos.

Cria-se, portanto, uma propriedade marcada pela temporariedade e pela transitoriedade, uma vez a instituição financeira adquire um imóvel não com o propósito de mantê-lo como sua propriedade em definitivo, mas, sim, com a finalidade de pressionar o consumidor a pagar o débito financiado pelo banco[2].

Assim, coube ao Estado, através do diploma em comento, obstar comportamentos extremos de ambos os contratantes e conferir previsibilidade ao negócio jurídico em análise, tornando possível a circulação e incremento de riquezas na sociedade em benefício de todos.

Por sua vez, ante a carga social do instituto, e no intuito de atrair investimento do mercado privado, criou-se — através do artigo 6º e seguintes do diplomas em questão — formas de securitização de valores investido nestes negócios, bem como criou novo título de crédito denominado Certificado de Recebíveis Imobiliários (CRI), permitindo ao agente financeiro especular no mercado de valores mobiliários e, assim, ter o retorno necessário para viabilidade financeira de negócio de alto viés social.

Mas não é só. Deve-se, igualmente, e por um lado, permitir a retomada de bens de devedores inadimplentes, sob pena de todo o sistema de financiamento da modalidade contratual aqui analisada ruir. Porém, por outro viés, não se pode permitir que as instituições financeiras venham a espoliar os consumidores que busquem este instrumento para aquisição de sua moradia.

Logo, estimula-se a ampliação do financiamento mobiliário e garante-se (ou dever-se-ia) uma limitação da atividade das instituições financeira, regulando negócio jurídico entre ela e consumidores, em prol de um objetivo social maior relacionado com a garantia de direitos fundamentais.

Infelizmente, referida lei sofre de evidentes inconstitucionalidades, conferindo prerrogativas leoninas às instituições financeiras e não protegendo o consumidor de forma eficaz.[3] Neste diapasão, com base em referida lei, as instituições bancárias arvoram-se no direito de tomar medidas despropositadas e claramente excessiva para, assim, garantir seus interesses egoísticos.

Especificamente chamativo é possibilidade de arrematação de bens à margem de tutela do poder judiciário, por preço vil. Acerca do tema, aludida lei, de forma aberrante, cria simplificada forma de expropriações[4] de bens de devedores inadimplentes, de forma extrajudicial, e em prejuízo excessivo ao consumidor que potencialmente se verá despossado de sua residência e dos valores pessoais direcionados para aquisição de tal.

Por este procedimento, a instituição bancária notificará o consumidor, em caso de suposto inadimplemento do consumidor, por meio Oficial de Registro de Títulos Documentos, constituindo-o em mora, para pagar o débito em 15 dias, sob pena de consolidação da propriedade em nome do credor fiduciante (artigo 26).

Após, iniciará, em até 30 dias (artigo 27, caput), procedimento igualmente extrajudicial de leilão do bem em comento, permitindo-se a venda do fundamental bem em questão pelo “maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais” (artigo 27, §2º).

Finalmente, cria-se hipótese igualmente simplificada de desalojamento do consumidor, bastando-se, para abertura desta via, a consolidação da propriedade pela instituição financeira (artigo 30), sendo até mesmo dispensada a realização de aludido leilão para isto. Isto é, viável o manejo desta via simplesmente pela inércia do devedor, ante o decurso de meros 15 dias após ser notificado de sua suposta mora pela instituição financeira.[5]

Pois bem.

De início, aponta-se que as execuções forçadas extrajudiciais por particulares não contam com a devida previsão constitucional, não sendo, por sua vez, tolerado em nosso sistema jurídico o exercício da jurisdição executiva privada[6]. Assim, entender como adequada a possibilidade de procedimento neste sentido, em última análise significará a perda de bens sem a garantia do devido processual judicial ao arrepio do artigo 5, LIV, da CF[7].

Ademais, ao permitir a venda do imóvel pelo simples valor da dívida mais encargos, ignora-se, por completo os direitos do consumidor em prol dos interesses da instituição financeiras. Afinal, e no intuito de facilitar exclusivamente a recomposição financeira desta, permite-se que o bem seja adquirido por preço de bagatela às custas do consumidor que se verá despojado de sua morada e dos valores despendidos até então.

Tais questões, vale apontar, restaram bem evidenciadas por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:

“[…] um aspecto na norma merece destaque. Há evidente inconstitucionalidade no §2º do art. 27 da Lei 9.514/97. O dispositivo permite que no segundo leilão se aceite o maior lance oferecido, sendo bastante que supere o valor do débito em aberto. Assim, se A pagou R$50.000,00 de um débito total de R$70.000,00, quando o seu imóvel for a leilão, nada impede que no segundo leilão seja a coisa vendida por apenas R$20.000,00. Nesse caso, A não só perderá o imóvel, como tudo que pagou. Há ofensa ao devido processo legal, pois a pessoa será privada do direito de propriedade sem a garantia constitucional do processo e da presença do Estado-juiz. Sempre devemos lembrar que o trinômio vida/liberdade/propriedade é genericamente garantido pelo due processo of law.” [8]

Assim, indo além da questão da própria violação do devido processo legal, resta evidente a inconstitucionalidade de referida forma de expropriação, sob o prisma da proteção deficiente.

A respeito, invocando posicionamento Ronald Dworkin e igualmente aquele trazido por Lenio Luiz Streck, aplicável à espécie a figura da proporcionalidade[9]. Esta, segundo o paradigma da coerência e da integridade — ambas prestigiadas pelo artigo 926 do CPC[10] —, exige que a aplicação das normas jurídica se dê equanimemente, afastando aquilo que o jurista norte-americano chama de “leis de conveniência”. Isto se dá quando, por exemplo, uma lei, tal qual a Lei 9.514, segundo Farias e Rosenvald, “na defesa dos interesses do mercado e da segurança na circulação jurídica […] ofende excessivamente ao princípio da justiça”[11]

Deste modo, nosso sistema constitucional proíbe tanto a intervenção excessiva (übermasverbot), quanto a proteção deficiente (untermasverbot)[12]. Um exemplo tornará o argumento mais claro.

Ante a necessidade de garantia de proteção do Estado de certos interesses, inclusive através de mandados de criminalização, tornava-se evidente a não recepção pela Constituição de 1988 do contido no artigo 107, VII do Código Penal — já revogado pela Lei 11.106/2005 — e que estabelecia como causa de extinção de punibilidade, nos crimes contra os costumes — hoje redefinidos como crime contra liberdade sexual —, o casamento da vítima com o ofendido. Tal crise de constitucionalidade se dava ante a clara proteção deficiente dos direitos da vítima de violência doméstica.

Nesse diapasão, a Constituição brasileira, ao mesmo passo que estabelece a proteção contra violência cometidas no âmbito familiar (artigo 226, § 8º[13]), igualmente estabelece como direito fundamental, a proteção do consumidor (artigo 5º, XXXII, da CF[14]), bem como reconhece como um dos princípios da ordem econômica a sua defesa (artigo 170, V, da CF[15]).

Como não poderia ser diferente, há imperativo de tutela em prol do cidadão a ser garantido pelo Poder Público, sendo, por outro lado, evidente que a Lei 9.514/97, ao criar situação de nítida superioridade da instituição financeira, atenta contra esse mandamento.

Especificamente, a expropriação totalmente extrajudicial de imóvel por preço vil e a simplificada forma de desalojamento do consumidor de sua morada, em claro benefício à instituição financeira — acarretando a quase imediata colocação do cidadão na rua —, em procedimento cuja legalidade não é analisada previamente pelo Estado-Juiz — e, muitas vezes, sequer com a possibilidade de o cidadão ser reembolsado pelos valores já pagos —, bem demonstram esta situação.

A Lei 9.514/97, neste aspecto, torna-se, portanto, inconstitucional por evidentemente não proteger de forma eficaz o consumidor, em benefício de instituição financeira, a qual, como visto já conta com enorme arcabouço para proteção de seus interesses e para que seja garantida a viabilidade econômica do negócio em questão. Assim, cabe à Defensoria Pública, através de seus órgãos de atuação insistir na impossibilidade de medidas, tais quais as aqui discutidas em benefício de toda a massa ainda carente de seu direito fundamental à moradia digna.


1 BOBBIO, Norberto, Da Estrutura à Função: Novos Estudos de Teoria do Direito, trad. Daniela Versiani. Barueri: Ed. Manole, 2007, 110/111.

2 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson, Curso de Direito Civil – Vol. 5: Direitos Reais. 11ª edição, São Paulo: Ed. Atlas, 2015, p. 491.

3 Segundo Cristiano Chaves de FARIAS e Nelson ROSENVALD, ao analisarem a Lei 9.514/1997: “Na defesa dos interesses do mercado e da segurança na circulação jurídica, muitas vezes o legislador ofende excessivamente ao princípio da justiça. Incentiva-se o tráfego negocial, pois a propriedade fiduciária é sobremaneira atraente ao credor, pelo fato de a lei em comento ter criado novo título de crédito – lastreado em crédito imobiliário – permitindo-lhe negociar valores emprestados, transferindo crédito a terceiros. Todavia, restringem-se direitos fundamentais, pois na tensão entre autonomia privada e os direitos fundamentais elencados na Constituição Federal, a ponderação do legislador foi equivocada, privilegiando o ‘ter’, em detrimento do ‘ser’, na contramão do afirmado pelo sistema civil-constitucional” (Curso de Direito Civil – Vol. 5: Direitos Reais. 11ª edição, São Paulo: Ed. Atlas, 2015, p. 498 – grifos adicionados).

4 Vale ressaltar que o procedimento extrajudicial de expropriação de bens de aludida lei não se trata de modalidade alienação de bens por iniciativa particular regulado pelos artigos 879 e seguintes do CPC, mas, em realidade, de procedimento que corre totalmente fora das cortes de justiça.

5 Neste sentido, veja-se o seguinte trecho de julgado do Superior Tribunal de Justiça: “Com a inadimplência, o credor, aqui recorrido, inaugurou os procedimentos para a retomada do bem, previstos na Lei nº 9.514/97, constituindo em mora o devedor e, ato contínuo, consolidando em seu nome a propriedade do bem, nos termos do o art. 26, §1º a 7º, da Lei 9.514/97. Ao fazê-lo, o recorrido resolveu o contrato que fundamentara a posse do imóvel pelos recorrentes, de modo que o fundamento jurídico dessa posse se esvaiu. Vê-se, portanto, que não há, na hipótese dos autos, a disputa da posse sobre o bem fundamentada em situações de fato autônomas. A posse, pelos recorrentes, decorria do contrato que estes haviam firmado com o próprio recorrido. Resolvido esse contrato, o fundamento de seu poder de fato sobre o bem desapareceu. […] À questão levantada pelos recorrentes, acerca de que destino deve ser dado ao imóvel entre o prazo da consolidação da propriedade em nome do credor-fiduciante, e a data dos leilões judiciais, a resposta é simples: deve ser dado ao imóvel sua natural destinação econômica. A permanência daquele que promoveu esbulho do bem no imóvel não atende a essa destinação” (Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n. 1.155.716/DF, Rel. Min. Nancy Adrighi, j. 13/03/2013, p. 9/10)

6 Lembramos que mesmo se tratando de questão discutida no âmbito de procedimento arbitral, ainda assim a execução forçada de medida imposta por árbitro se dará no âmbito das cortes judiciais, não sendo por outra razão que a sentença arbitral é modalidade de título jurídico, conforme artigo 515, VII, do CPC.

7 “LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

8 Curso de Direito Civil – Vol. 5: Direitos Reais. 11ª edição, São Paulo: Ed. Atlas, 2015, p. 497 – grifos adicionados.

9 Registramos que lemos a questão da proporcionalidade sob um paradigma bastante diverso da teoria de Robert ALEXY. Por limitação de espaço e por fugir do tema em análise, não desenvolvermos as diferenças entre a tese aqui lançada com o entendimento do jurista de Kiel.

10Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente

11 Curso de Direito Civil – Vol. 5: Direitos Reais. 11ª edição, São Paulo: Ed. Atlas, 2015, p. 498.

12 STRECK, Lenio Luiz, Verdade e Consenso. 5ª edição, São Paulo: Ed. Saraiva, 2014, p. 190 e 248/249.

13 § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.

14XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”

15Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: […] V – defesa do consumidor; […]”

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