Opinião

A verdade real de Miriam Leitão é a mesma da maioria dos juristas

Autor

  • Djefferson Amadeus

    é advogado mestre em direito e hermenêutica filosófica pela Unesa pós-graduado em filosofia pela PUC-Rio pós-graduado em processo penal pela ABDCONS-RJ membro da FEJUNN e do Movimento Negro Unificado (MNU).

27 de junho de 2017, 14h59

De início – e por dever de honestidade intelectual – ressalto que as críticas à verdade real nas linhas que se seguem não são fruto da originalidade deste autor; de fato, se tais críticas foram possíveis, nos moldes em que estão postas, é porque – de há muito – Ernildo Stein e Lenio Streck possibilitaram-nas.

Eis por que é vital louvar aqueles que conseguem o grande feito: romper as barreiras do senso comum teórico e conquistar um merecido lugar diferenciado de reputação.

Pois bem, nos últimos dias, os ministros Herman Benjamim e Ricardo Lewandowski, para fundamentar suas decisões, invocaram o (sic) “princípio” da verdade real.

Vejamos o que disseram os eminentes ministros:

“Aqui, na Justiça Eleitoral, nós não trabalhamos com os olhos fechados…” “Esta é a tradução deste princípio da verdade real…” (Herman Benjamim). "No processo penal o juiz está comprometido com a descoberta da verdade real. Por isso, ela tem um papel preponderante.” (Ricardo Lewandowski).

Miriam Leitão, comentando o tema, escreveu uma coluna intitulada: Verdade Real. Nela, a referida jornalista, que parece concordar com Herman Benjamim, afirmou o seguinte:

“Santana e Monica foram ouvidos uma segunda vez a pedido do Ministério Público Eleitoral, mas aí os advogados quiseram que os depoimentos fossem anulados. O ministro disse que como relator procurou a “verdade real”.[1]

Incontinenti, lembrei-me de Millôr Fernandes, porque – dizia ele – a jaca nunca cai longe da jaqueira; se caiu longe, é porque alguém (ou alguma coisa) a levou para lá. E o que se retira disto, transportando o pensamento de Millôr para o direito, é que, se ambos os Ministros e Miriam Leitão estão invocando a verdade real, é porque leram (ou ouviram) isso em algum lugar.

Lendo os livros e manuais de concurso mais vendidos no Brasil, fica fácil entender de onde vem a tal verdade real, que domina o imaginário gnosiológico dos referidos ministros e – por que não? – de Miriam Leitão.

Por todos, cito Guilherme Nucci e Gustavo Badaró. O primeiro, porque é o livro de concurso público mais vendido no país; o segundo, porque é a demonstração de que até doutrinadores estudiosos e sofisticados, como é o caso do professor Gustavo Badaró, pagam um preço alto ao falarem de questões filosóficas, como é o caso da verdade, sem, contudo, fazer qualquer menção àqueles que dedicaram suas vidas a tais estudos: os filósofos!

Nucci, ao tratar deste tema, afirma que: “Material ou real é a verdade que mais se aproxima da realidade.”[2]

Badaró, por sua vez, sustenta que o “conceito de verdade é um conceito de relação. Um conhecimento é verdadeiro quando há concordância entre o objeto e sua ‘imagem’ capturado pelo sujeito”. [3]

Do exposto, é possível concluir que a verdade, para Nucci e Badaró, é uma questão de correspondência: veritas est adaequatio intellectus (“a verdade está no enunciado e seu juízo capaz de exprimir as coisas como elas realmente são”.)[4]

Ambos os autores, portanto, inseridos no paradigma aristotélico-tomista, acreditam que a correspondência entre o significado e o significante pode ser sempre garantida, dada a existência de um ente supremo[5] (o fundamentum absolutum inconscussum veritas).[6]

Por isso, para eles, o conhecimento é um processo de adequação do olhar ao objeto, buscando a similitude entre pensamento e coisa, desvendando as essências próprias das coisas.[7] A verdade, assim, caracteriza-se pela correspondência entre o intelecto e a coisa visada, como a fórmula aristotélica e medieval.

Ocorre, todavia, que, de maneira paradoxal, Badaró, no final de seu texto, parece abandonar a ideia da verdade como correspondência, na medida em que a verdade deixa der ser mera semelhança com o objeto para significar, em suas palavras, uma “manifestação subjetiva da verdade”. É o que se extrai da passagem a seguir, colhida em seu livro:

“A verdade é o reflexo fiel do objeto na mente, não basta que um conhecimento seja verdadeiro sendo necessário alcançar a certeza de que é verdadeiro. (…) A certeza, portanto, constitui a ‘manifestação subjetiva da verdade’, sendo um estado de ânimo seguro da verdade de uma posição.[8]

Vejam: se no início de seu texto a verdade era, para Badaró, relacional (porque se chegava à verdade quando houvesse uma “concordância entre o objeto e sua ‘imagem’ capturada pelo sujeito”), depois, de uma hora para outra, a verdade passou a ser uma “manifestação subjetiva” (isto é, “o sujeito kantiano e cartesiano entra em cena”; investe a si mesmo e, em razão disso, “o homem passa a ser aquele existente no qual se funda todo o existente à maneira de ser e de sua verdade.”[9])

E qual o problema disso? Muitos – para não dizer: todos! – porquanto, em termos filosóficos, o que Badaró fez – e isto é muito comum entre os juristas – foi conciliar paradigmas inconciliáveis. E por um simples motivo: não dá para dizer que a verdade é relacional (correspondente) e, ao mesmo tempo, o sujeito pode se valer de sua manifestação subjetiva para buscar a verdade.

Assim, ou se está na metafísica clássica (estando o sujeito assujeitado às essências), ou se está na metafísica moderna (sendo o sujeito um assujeitador dos objetos).[10] Dizendo de outro modo, não dá para usar Kant, com o intuito de descobrir a essência da coisa ou, por outro lado, usar Platão para dizer que o sujeito é um assujeitador dos objetos.

Aliás, é justamente essa mistura de paradigmas promovida por Badaró – objetivismo / subjetivismo – que Lenio Streck chamou de “mixagem teorética” ou “cruzamentos fundacionais”.

Nas palavras do referido autor: “A aplicação do direito, como venho afirmando há tempos, está assentada num tipo muito curioso de sincretismo que podemos nomear aqui por “cruzamentos fundacionais”. Vale dizer, no direito, o paradigma objetivista, da filosofia clássica, encontra-se por vezes associado ao paradigma subjetivista, da filosofia da consciência.”[11]

Mas, afinal, o que pretende o articulista? – é a pergunta que, naturalmente, o leitor deve estar se fazendo.

Simples: pretendo apenas demonstrar que o que há de comum entre a verdade real de Miriam Leitão, Guilherme Nucci, dentre tantos outros juristas, é o seguinte: a total ausência (ou resistência) à filosofia.

Um adendo: depois do linguisticturn, como ensinou Jacinto Coutinho, sobra pouco para continuar investindo na verdade como se fez até então, mas tal rompimento – lembra-nos Alexandre Rosa – não se fez (e não se faz) sem ranhuras, porque o conforto metafísico da verdade fundante, passível de ser alcançada/descoberta construiu prédios inteiros; e a verdade real está – viva – para demonstrar. Então, para que isso ocorra, é necessário, segundo Salah Khaled, “romper em definitivo com a busca da verdade correspondente, seja ela tida como real, material, substancial, relativa ou aproximativa.”[12]

 


[1] http://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/verdade-real.html

[2] NUCCI, Guilherme De Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 11ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014, p. 55-56.

[3]BADARÓ, Gustavo Henrique RighiIvahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 25-26

[4] HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Edição em Alemão e Português. Tradução e Organização: Fausto Castilho. Campinas: Vozes, 2014, p. 283.

[5] STEIN, Ernildo. Racionalidade e Existencia. Uma Introdução a Filosofia. Porto Alegre: L&PM, 1988, p. 47

[6] MICHELAZZO, José Carlos. Do Um Como o Princípio Ao Dois Como Unidade. Heidegger e a Reconstrução Ontológica do Real. São Paulo: Fapesp, 1999, p. 106.

[7]STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica do direito. 10. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 162.

[8]BADARÓ, Gustavo Henrique RighiIvahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 25-26

[9] MICHELAZZO, José Carlos. Do Um Como o Princípio Ao Dois Como Unidade. Heidegger e a Reconstrução Ontológica do Real. São Paulo: Fapesp, 1999, p. 61.

[10] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 346/347

[11] STRECK, Lenio Luiz. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p.146

[12] KHALED JR. Salah. A busca da verdade no processo penal. Para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013, p. 4.

Autores

  • Brave

    é mestre em Direito e Hermenêutica Filosófica (UNESA-RJ), pós-graduado em filosofia (PUC-RJ), Ciências Criminais (Uerj) e Processo Penal (ABDCONST). Advogado eleitoralista e criminalista.

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