Opinião

Colapso no sistema coloca em risco a continuidade da democracia no país

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26 de junho de 2017, 15h58

O colapso do sistema partidário e eleitoral brasileiro tem passado por diferentes e cada vez mais agravadas fases e, finalmente, chegou à etapa em que coloca em risco a continuidade da democracia no país. A ameaça mais evidente ao Estado Democrático de Direito é a possibilidade de ocupantes momentâneos do poder usarem as instituições para se protegerem das denúncias de que são alvo e fazerem alterações perenes no arranjo institucional com o único objetivo de resolverem problemas pessoais e do presente.

Outra grave ameaça à democracia decorre indiretamente das falhas no sistema representativo e está atrelada à insuportável sensação de impunidade predominante na sociedade. Trata-se do risco de que este momento infeliz de incerteza e imprevisibilidade seja usado para aumentar o caráter policialesco do Estado e dar a alguns poucos agentes públicos o poder de ingerência na vida de cada cidadã e de cada cidadão brasileiro.

É preciso refletir e atuar contra o impulso de algumas autoridades públicas que caem na tentação de agir à margem da lei durante a mais grave crise institucional vivida pelo país desde o fim da ditadura militar. Não existe fim nobre capaz de justificar a tomada de decisões contrárias à legislação, como é o descumprimento de regras estabelecidas para a persecução penal. A lei existe para todos e assim deve ser aplicada. Qualquer proposta divergente desse valor republicano apenas contribui para jogar o Brasil no mais do mesmo da lama que nos trouxe até aqui: um país profundamente agredido pela corrupção e pelos desvios cometidos por parte dos detentores do poder e de funções públicas.

Hoje temos até mesmo quem tente impor que a sociedade não tem o direito de saber quem são os contratantes das palestras oferecidas a clientes privados por um procurador da República nem o quanto ele ganha por isso. Mas o princípio da transparência e o acesso à informação se aplicam a todos os servidores públicos.

Infelizmente, são recorrentes e cada vez mais volumosas as reclamações sobre abusos no uso de medidas como a condução coercitiva. De acordo com a lei, esse instrumento deve ser usado apenas quando a pessoa convocada para depoimento se nega a colaborar com as autoridades. O que tem acontecido, porém, é que cidadãos que jamais receberam qualquer convocação anterior acabam sendo surpreendidos com a “condução sob vara”, em verdadeiro constrangimento pessoal e moral.

O intuito de algumas autoridades no Brasil é conseguir produzir, a partir da condução coercitiva, provas para municiar as peças de acusação criminal a respeito dos próprios conduzidos. Está na lei, e o Supremo Tribunal Federal já reiterou esse entendimento, que a anuência do acusado é indispensável para que ele participe de um ato que vise à produção de provas contra ele mesmo. Por este motivo, a OAB apresentou ao STF uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), para que seja reconhecida a não recepção do artigo 260 do Código de Processo Penal pela Constituição Federal de1988, que torna possível a condução coercitiva.

A condução coercitiva para depor, sem que antes haja sequer uma intimação, é uma prisão disfarçada, afrontando a garantia constitucional de ir e vir. Nenhum cidadão pode ser submetido a medidas ilegais e de tamanho constrangimento sem que haja rigoroso cumprimento da Lei. Qual o sentimento de um cidadão de bem frente ao seu círculo social quando retirado de sua casa na madrugada e conduzido coercitivamente a uma delegacia para prestar depoimento? O que pensarão aqueles que assistiram a este ato? É evidente o sentimento de condenação frente à opinião pública! Não se combate o crime cometendo outro crime. Ninguém, inclusive as autoridades do Estado, podem agir contra a lei.

É lamentável, em pleno 2017, ter que explicar de forma didática valores básicos da democracia e do mundo civilizado. Essa necessidade, no entanto, é sintomática da ameaça de retrocesso que o país enfrenta.

São inúmeras também as ocorrências de constrangimentos impostos aos advogados com o objetivo de enfraquecer a representação de seus clientes. Grampos telefônicos em conversas sigilosas entre advogados e clientes são recorrentes. Mas podemos citar agressões, físicas e verbais, praticadas contra os advogados no intuito de prejudicar os clientes. Temos até registro de mortes causadas por essa onda de estímulo à violação das prerrogativas da defesa, como ocorreu em 2016, em Santa Catarina. Na ocasião, policiais agrediram o advogado Roberto Luís Caldart quando ele tentava garantir os direitos de seus clientes. Infelizmente, o profissional morreu no exercício de sua profissão. É preciso que as autoridades dos mais altos escalões deem o exemplo para que esse tipo de situação pare de acontecer no cotidiano do país.

Do mesmo modo como deve ser combatido o assalto aos cofres públicos, é preciso também combater a corrupção dos que promovem um ataque ao Estado Democrático de Direito se colocando em posição de criar e aplicar as próprias leis, à margem da Constituição e do arcabouço legal oficial.

A desorganização momentânea causada pelo comportamento burlesco de alguns dos ocupantes do poder não pode servir de pretexto para a ascensão de um Estado policialesco em que as liberdades individuais são ignoradas sob a desculpa de aumentar o combate à corrupção a partir do cometimento de atos ilegais.

Todos nós queremos combater a corrupção e a impunidade, mas o futuro de nossa sociedade depende da preservação das instituições e do sistema de direitos e garantias. Do contrário, quando a crise acabar, estarão em escombros as instituições que servem de pilar para o desenvolvimento do Brasil. Nesse caso, a imprevisibilidade será perene e não apenas momentânea, como é hoje. Fora da lei não há solução!

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