Opinião

Caso Dilma/Temer no TSE e a revanche de Schmitt contra Kelsen

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25 de junho de 2017, 12h50

Em sugestivo artigo recentemente publicado no ConJur, Rafael Tomaz de Oliveira disse algo profundamente interessante sobre o recente julgamento do Caso Dilma/Temer no Tribunal Superior Eleitoral: “Quem irá vencer? Não sabemos. Mas há um perdedor indiscutível: a ciência jurídica.”.

Talvez isso seja sintomático do momento que vivemos no Brasil em que a cientificidade do direito, aliada à coerência e correção de seus pressupostos teóricos (chegando ao “direito como integridade” de Ronald Dworkin) dá lugar a casuísmos e voluntarismos profundamente desaconselháveis em um Estado que se pretenda democrático de direito, como estabelece a atual Constituição da República.

Em verdade, esse caso julgado no TSE que envolveu a chapa presidencial vitoriosa nas eleições de 2014 precisa ser analisado para além da correção/incorreção da tese prevalente na Corte e de sua antagonista. Sobre isso, há muita gente melhor qualificada que eu para discuti-las. A questão fundamental neste texto vai em outra direção: de como os magistrados chegaram a tais conclusões, considerando como possa ter sido seu “livre convencimento” a respeito.

A história da Ação de Investigação Judicial Eleitoral 194.358 é razoavelmente conhecida. Consiste na junção de várias ações eleitorais de iniciativa do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e da Coligação Muda Brasil, que alegavam fundamentalmente a ocorrência de abuso de poder econômico e político por parte dos vencedores do pleito de 2014. A então Ministra Relatora, Maria Thereza de Assis Moura, em fevereiro de 2015, chegou a negar seguimento à Ação, considerando na ocasião que as acusações eram excessivamente genéricas e não apresentam indícios probatórios suficientes ao seu prosseguimento.

Os autores recorreram e em outubro de 2015, o TSE reformou a decisão monocrática em questão, com voto-vista vencedor do Min. Gilmar Mendes, acompanhado por outros 4 Ministros, entendendo, dentre outras coisas, que ilícitos verificados pelos órgãos fiscalizadores no curso de investigações em andamento ou futuras seriam aptos à instrução da Ação (AgR-AIME 7-61.2015.6.00.0000/DF).

Em meio à grave crise que resultou em uma substancial mudança de cenário político, com a destituição da Presidente da República Dilma Roussef através de um processo de impeachment e a ascensão à titularidade do executivo nacional do antes vice-presidente Michel Temer, agora apoiado politicamente pelos autores da Ação, a decisão do TSE se deu somente em junho de 2017, com uma composição da corte parcialmente modificada e tendo o ministro Gilmar Mendes, agora presidente do TSE, decidido de modo diverso em relação ao anterior voto-vista quanto à validade da apuração daqueles ilícitos, sendo acompanhado por outros 3 Ministros, o que resultou na absolvição da chapa presidencial e na continuidade do Presidente Michel Temer à frente do Executivo nacional.

A discrepância de entendimentos da corte em tão curto espaço de tempo pode ensejar várias reflexões: por um lado, a volatilidade das posições do Tribunal diante de situações similares em face da frequente alteração de sua composição; por outro, a possibilidade de que tal circunstância possa favorecer posturas casuístas da corte, pois a ausência de razoável deferência à sua própria jurisprudência contribui para situações de significativa insegurança jurídica, dificultando a dworkiniana integridade no direito, dada a corrente incoerência decisória.

Não obstante, esse último aspecto pode ocasionar em hard cases da importância do caso Dilma/Temer decidido no último dia 9 de junho uma opção decisionista dos julgadores, alterando os fundamentos jurídicos a partir de considerações de natureza política, econômica ou moral, no caso, paradoxalmente se utilizando das “virtudes passivas” (técnicas de autorrestrição) apontadas por Alexander Bickel.

O TSE teria então se colocado em posição de autocontenção, blindando a análise do mérito do conjunto probatório por considerar a existência de óbices de natureza processual. Entretanto, esses mesmos óbices foram desconsiderados na decisão pelo provimento do Agravo Regimental suprarreferido, quando há menos de 2 anos, a Corte teve posição ativista no mesmo caso e sobre a mesma questão, permitindo a continuidade da Ação e das investigações pertinentes.

Como constitucionalista que sou, diante de tal “estado da arte”, não tenho como não lembrar das célebres contendas teóricas entre o austríaco Hans Kelsen e o alemão Carl Schmitt sobre ciência jurídica, constituição, jurisdição constitucional e outras.

Kelsen é famoso por sua “Teoria pura do direito” que fundamenta sua concepção de constituição como norma hierarquicamente superior e do direito como uma estrutura escalonada de supra/infraordenação (Stufenbautheorie). Também autor da ideia de um tribunal constitucional para julgar questões de constitucionalidade in abstracto.

Seu pensamento normativista, embora com substanciais modificações, influencia praticamente toda a cultura jurídica ocidental do pós-2ª Guerra, na perspectiva de uma estruturação do ordenamento jurídico segundo bases lógico-formais precisas, ao lado de uma jurisdição constitucional e controle de constitucionalidade das leis nas mesmas bases. Sua teoria, no dizer de Verdú, é quase uma geometrização do fenômeno jurídico e um reforço da defesa da constituição como norma, dotada de efetiva força normativa, antes mesmo do conhecido trabalho de Konrad Hesse a respeito.

Carl Schmitt, por outro lado, articula de modo estreito direito e política, afastando o normativismo kelseniano, deslocando o fundamento do direito para um ente metajurídico, a decisão política, e buscando o fundamento desta em um ente, em princípio, metapolítico: a teologia. Em sua “teologia política”, defende que detém soberania aquele que decide sobre o estado de exceção e que os conceitos significativos da moderna teoria do Estado são essencialmente conceitos teológicos secularizados.

Suas posições radicalmente negadoras da autonomia científica do direito apontam igualmente para uma remissão frequente ao conceito que ele chama de “positivo” de constituição, concebendo esta como decisão política fundamental de organização da sociedade, prevalecendo em relação a ela a racionalidade própria ao fenômeno político e não jurídico. Também antagoniza com Kelsen na proposta sobre o guardião da constituição que, em sua visão, não deve ser um tribunal constitucional, mas o presidente da República, no contexto da Constituição parlamentarista de Weimar, de 1919.

Em termos gerais, a expansão do constitucionalismo ocidental após a 2ª Guerra Mundial apontou fortemente no desenvolvimento de paradigmas jurídicos e constitucionais estruturalmente racionalistas, ainda que não em estrita consonância com o modelo kelseniano. Por outro lado, a constituição como norma hierarquicamente superior dentro de uma estrutura escalonada da ordem jurídica e o tribunal constitucional com competência para o controle de constitucionalidade das leis são ideias amplamente consagradas na maior parte do ocidente e até fora dele. Não por acaso há autores que afirmam ser Kelsen o jurista mais importante da primeira metade do século XX.

Dado o fato de que Schmitt ficou politicamente estigmatizado pelos seus vínculos políticos com o nazismo e que sua teoria tenha sido muitas vezes considerada uma tentativa de justificação racional para um poder arbitrário e ilimitado do Estado, é possível afirmar que, durante décadas, Kelsen foi majoritariamente vitorioso na teorização normativa do direito e da constituição. Até mesmo aqui no Brasil é possível apontar para significativa recepção teórica e hermenêutica de seu pensamento em termos de logicidade do direito e sedimentação de paradigmas em conformidade com o modelo constitucional preconizado pela Carta de 1988.

Todavia, nos últimos anos, os acontecimentos no âmbito do direito, talvez refletindo a agudeza da crise pela qual passa o país, parecem apontar em outra direção. Tem sido perceptível o aumento de casuísmos e voluntarismos em decisões judiciais, aumentando consequentemente a frequência com que julgadores privilegiam em seus julgados razões de natureza política, econômica ou moral em vez de fundamentos de dogmática e teoria do direito.

Um curioso paradoxo: na maioria dos casos as decisões casuístas parecem associadas a posturas judiciais ativistas; porém, no Caso Dilma/Temer decidido pelo TSE, é possível que estejamos diante de um caso emblemático em que a fundamentação autorrestritiva a partir dos óbices processuais teria como razão de decidir a opção por um acentuado decisionismo schmittiano, especialmente considerando-se a mudança de posição do Presidente da Corte.

Talvez, por vias tortuosas, o alemão Schmitt esteja alcançando uma revanche contra o austríaco Kelsen no Brasil recente.

Um novo 7 x 1 contra o Brasil?


1. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de: “Quem venceu no TSE? A teoria do avestruz ou do cofrinho?”, in: http://www.conjur.com.br/2017-jun-10/diario-classe-quem-venceu-tse-teoria-avestruz-ou-cofrinho, acesso: 11/06/2017.

2. DWORKIN, Ronald: O império do direito (trad. Jefferson Luiz Camargo). São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 271ss.; DWORKIN, Ronald: Taking rights seriously. Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press, 1997, pp. 81ss.; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco & SILVA, Diogo Bacha e: “Supremo Tribunal Federal, Devido Processo Legislativo e a Teoria do Direito como Integridade: Em Busca da Promoção dos Valores Democráticos”, in: Ronald Dworkin e o direito brasileiro (org.: OMMATI, José Emílio Medauar). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, pp. 23ss.; STRECK, Lenio Luiz: “Coerência e integridade de Ronald Dworkin: uma análise de sua aplicação ao contexto brasileiro”, in: Ronald Dworkin e o direito brasileiro (org.: OMMATI, José Emílio Medauar). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, pp. 332ss.

3. Em menos de dois anos, 5 dos 7 Ministros que julgaram o Agravo Regimental referido já não eram os mesmos, restando apenas os Mins. Gilmar Mendes e Luiz Fux, da composição de outubro de 2015.

4. BARBOSA, Leon Victor de Queiroz; GOMES NETO, NETO, José Mário Wanderley & LIMA, Flávia Danielle Santiago: “No julgamento do TSE, as virtudes passivas venceram o mérito”, in: http://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/11/opinion/1497193889_442339.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM, acesso: 11/06/2017.

5. Sobre os conceitos de ativismo e autocontenção, cf. LIMA, Flávia Santiago: Jurisdição constitucional e política (ativismo e autocontenção no STF). Curitiba: Juruá, 2014.

6. KELSEN, Hans: Teoria pura do direito (trad. João Baptista Machado). Coimbra: Armenio Amado, 1984, 6ª ed., pp 309ss.; KELSEN, Hans: ¿Quién debe ser el defensor de la constitución? (trad. Roberto J. Brie). Madrid: Tecnos, 2002, 2ª ed.; GALINDO, Bruno: Teoria intercultural da constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, pp. 61-66; VERDU, Pablo Lucas: “El orden normativista puro (supuestos culturales y políticos en la obra de Hans Kelsen)”, in: Revista de Estudios Políticos, nº 68. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1990, pp. 7-93.

7. HESSE, Konrad: A força normativa da constituição (trad. Gilmar Ferreira Mendes). Porto Alegre: Sergio Fabris, 1991.

8. SCHMITT, Carl: Teologia política (trad. Elisete Antoniuk). Belo Horizonte: Del Rey, 2006, pp. 7ss.; SCHMITT, Carl: La defensa de la constitución (trad. Manuel Sanchez Sarto). Madrid: Tecnos, 1998, 2ª ed.; SCHMITT, Carl: Teoría de la constitución (trad. Francisco Ayala). Madrid: Alinza, 1996; GALINDO, Bruno: Teoria intercultural da constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, pp. 67-75; VERDU, Pablo Lucas: “Carl Schmitt, intérprete singular y máximo debelador de la cultura político-constitucional demoliberal”, in: Revista de Estudios Políticos, nº 83. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1989, pp. 25-92.

9. BONAVIDES, Paulo: Reflexões: política e direito. São Paulo: Malheiros, 1998, 3ª ed., pp. 395ss.

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