Diário de Classe

Como exorcizar os fantasmas do livre convencimento e da verdade real

Autor

24 de junho de 2017, 8h05

Spacca
Diário de Classe 322; 
aula das 8h às 9h. Tema:
apreciação da prova, livre
convencimento e verdade real
— as trampas (pré)modernas.

Na década de 1980, Tim Burton lançou um filme extremamente divertido e que fez muito sucesso chamado Beetlejuice (que em português recebeu o título de Os Fantasmas se Divertem). Nele é contada a história de um casal recém-falecido que procura se ajustar à vida post-mortem — na verdade, eles não aceitam muito bem a facticidade de sua morte — e tentam repelir que um outro casal, de pessoas vivas, venha a residir em sua antiga casa. A princípio, o casal falecido tenta fazer uso de sua nova realidade para, fantasmagoricamente, pregar peças e sustos nos vivos, na perspectiva de afugentá-los do lugar que consideram seu lar por direito. Todavia, por serem ectoplasmas recentes, eles não possuem a capacidade de serem vistos pelos vivos, de modo que a “assustabilidade” do casal é bastante baixa. Assim, eles tentam recorrer ao mundo dos mortos para receber uma espécie de credencial que possibilitaria uma eficácia maior no horror que queriam impor aos vivos. Mas, para frustração dos dois, o mundo dos mortos era extremamente burocrático; prenhe de filas quilométricas, de modo que a perspectiva de atendimento no setor dos sustos fantasmagóricos pela senha que tiraram era de aproximados 125 anos. Frustrados em seus planos, eles resolvem pedir a ajuda de um fantasma picareta que se diz especialista em “exorcizar os vivos”, chamado Beetlejuice (interpretado por Michel Keaton). Quando o casal ectoplasmático percebe as verdadeiras intenções de Beetlejuice, eles tentam desfazer o contrato, mas já era tarde demais, uma vez que o “exorcista de vivos” já havia causado estragos na vida de todos.

Os recentes acontecimentos que estão mobilizando a opinião pública e, especialmente, os atores jurídicos no Brasil têm um que desse universo Beetlejuice (do filme como um todo, não apenas da personagem). Impressiona-nos sobremaneira a intensidade com que as ideias de livre convencimento e verdade real são chamadas à colação sempre que o assunto é análise de provas ou compreensão do Direito. A aproximação desse fenômeno tupiniquim com o filme de Tim Burton pode ser realizada em pelo menos dois aspectos: de forma mais abrangente, podemos dizer que essas ideias (livre convencimento e verdade real) são fantasmas contratados pela modernidade jurídica — especialmente no âmbito da processualística — para assustar alguns moradores (não necessariamente novos) que habitavam o mundo do Direito. Especialmente no caso do livre convencimento, é fácil notar que sua construção aparece no contexto da destruição do imaginário medieval (de estruturas prontas de significado que as formas de vida iam se adaptando) para a construção de outro, moderno, em que o sujeito — ser humano — procura se afirmar como o próprio construtor dos significados.

A palavra usada para representar isso no plano da juridicidade é livre convencimento. Ou livre apreciação da prova. Mas o que é isto — o livre convencimento? Uma resposta no nível da dogmática apresentaria a seguinte construção: para se livrar da prova tarifada (refém de uma metafísica ontoteológica), impõe-se a análise daquilo que é produzido como prova por meio do livre convencimento do julgador. Porém, quando setores do pensamento jurídico conseguiram desvelar a armadilha que existe por trás dessa ideia superficial sobre o livre convencimento, era tarde demais para “quebrar o contrato” fantasmagórico. E muito estrago já havia sido feito. O principal deles é a sedimentação e o enrijecimento do sentido de livre convencimento na linguagem. Ele acaba sendo transmitido, de geração em geração, sem um exame hermenêutico mais profundo. Na verdade, os juristas acabam por pronunciar a expressão sem saber exatamente o que querem significar com ela… Há uma dimensão do impessoal (Das Man) aqui: isso é assim porque eles disseram; porque está escrito nos livros de doutrina, nas sentenças, nos acórdãos etc.

Daí vem a segunda possibilidade aproximativa: uma vez descoberta a trampa do livre convencimento, aqueles que a denunciam e tentam se livrar dela, aparentemente, só conseguem fazer com que ela seja cada vez mais citada e cada vez mais aparente. Conseguimos retirá-la do Código de Processo Civil. Grande avanço! Mas, ainda assim, o fantasma retorna, como um ectoplasma resistente a toda forma de exorcismo. Desse modo, assim como em Beetlejuice, no qual quanto mais as personagens pronunciavam seu nome mais ele aparecia para fazer suas trapaças, também aqui, quanto mais falamos do livre convencimento, ainda que seja para tentar sepultá-lo de vez, mais ele aparece.

Mas, como somos incansáveis, mais uma vez vamos aqui fazer um exercício hermenêutico em torno do livre convencimento. Quando alguém diz que o julgador possui livre convencimento, está a se referir que é a sua consciência-de-si-do-pensamento-pensante que deverá determinar o resultado da apreciação da prova. Só essa constatação já é significativa o bastante para se demonstrar que, se uma única consciência pode formar uma convicção sobre aquilo que foi trazido ao processo, não há aqui democracia. E não há, igualmente, aquilo que define a magistratura, que é a efetiva imparcialidade. Pelo contrário, há uma assunção voluntário que acaba por transferir ao juiz a condição de legibus solutus para aquele caso concreto que por ele deve ser julgado.

Há quem acredite que esse problema estaria resolvido com a simples exigência da motivação do tal “livre convencimento”. Ora, essa é só mais uma trampa; apenas mais uma trapaça do Beetlejuice jurídico. A motivação do livre convencimento significa apenas expor as razões pelas quais o julgador se convenceu. Mas e se alguém não concordar? E se estiver errado perante um exame público de suas razões? Bem, o magistrado dará de ombros.

É por isso que, em um contexto democrático e de Estado de Direito, não existe essa coisa de livre convencimento. Há, sim, uma obrigação, que se projeta a partir da responsabilidade política que a atividade jurisdicional comporta, de tornar pública a compreensão. E o ônus não está em dizer porque se convenceu de tal ou qual maneira, mas, sim, em mostrar que a interpretação mais adequada para hipótese só pode ser aquela que se apresenta, uma vez que houve efetiva suspensão dos pré-conceitos e que a resposta oferecida é uma resposta efetivamente jurídica (e não moral, econômica, política etc.).

Mas o que é realmente inacreditável, e fato gerador de profunda perplexidade, é que, no mais das vezes, quem invoca o fantasma do livre convencimento procura fazê-lo em nome da “verdade real” (remetemos o leitor à saga do Cego de Paris I (aqui), II (aqui) e III (aqui), escrita na ConJur). Para nós, esse fato revela o quanto que os agentes jurídicos desprezam a Filosofia (ou a usa apenas com função ornamental/instrumental). Ora, se a “verdade real” remete a uma “realidade verdadeira”; realidade está que se apresenta objetivamente, como que a irradiar uma essência a ser captada pelo sujeito cognoscente, então, nesse caso, estamos novamente às voltas com a ontoteologia, quadro teórico ou paradigma filosófico que a modernidade e seu ectoplasma jurídico chamado livre convencimento pretendem derrotar.

Note-se: como é possível se convencer livremente de algo que emana uma essência real (res = a coisa)? Se essa verdade é real, objetivamente posta, então ela não é uma criação livre do convencimento do julgador. Ao contrário, ela é um dado objetivo ao qual o intelecto tem, necessariamente, que se submeter. Não há liberdade aqui! Há o mais puro e completo determinismo.

Portanto, está bem claro que somos assombrados no Direito brasileiro por um fantasma trapaceiro, tal qual o Beetlejuice de Tim Burton, mas com um elemento a mais: além de trapaceiro, ele é contraditório e inconsistente.

Por fim, uma última consideração acerca da “verdade real”. Muito já se falou. Há volumosas críticas ao conceito. Mas é preciso registrar que, nalguns casos, a emenda pode sair pior que o soneto. De nada adianta criticar o álibi retórico da “verdade real” para pôr no lugar alguma posição cética e improdutiva com relação ao conceito de verdade, objetividade e possibilidade de melhores respostas em Direito. Nesse caso, não estamos exorcizando os ectoplasmas; ao contrário, estamos criando um novo: Beetlejuice jurídico II.

Numa palavra final, o que mais nos impressiona não é apenas o “ressuscitamento” desses fantasmas provenientes de dois paradigmas filosóficos (estamos sendo generosos, porque pouca gente sabe o que está por trás disso) antitéticos. Impressiona é a mistura dos dois, como já vimos muitas vezes alguém dizer: “Com minha livre apreciação, busco encontrar a verdade real”. Ups. Assim não dá. Ora, pelo menos que cada um fique no seu quadrado. Quem é adepto da verdade real deve ficar fiel a ela. Mas isso tem um custo, porque implica abrir mão do livre convencimento. Ou da livre apreciação da prova, o que dá no mesmo. Ou seja, quem é do PLC (Partido do Livre Convencimento) não pode votar no PVR (Partido da Verdade Real). São programas de governo absolutamente discrepantes. E não dá para fazer “presidencialismo epistêmico de coalizão”, mesmo que façamos emendas hermenêuticas.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!