Ideias do Milênio

"A raiz da misoginia é a impotência intelectual e sexual dos homens"

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23 de junho de 2017, 16h47

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Entrevista concedida pelo filósofo francês Michel Onfray à jornalista Elizabeth Carvalho para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (17h30), quartas (15h30), quintas (6h30) e domingos (14h05).

Este é o começo de um dia em Paris do filósofo francês Michel Onfray, o intelectual mais comentado do país, o mais admirado, o mais criticado. Gravando de improviso respostas às perguntas de milhares de seguidores de www.michelonfray.com, um site que acolhe assinantes de todas as latitudes a módicos 4 euros por mês. Onfray fala de tudo, de Emmanuel Macron a Donald Trump, da cultura persa ancestral de um Irã demonizado pelo Ocidente, da arte contemporânea, do islamismo que não é o Estado Islâmico, da moral imoral que campeia na política. Onfray é um homem de combate: o combate da palavra.

Michel Onfray — "A via de acesso ao califado não é uma linha de telefone vermelho, onde bastaria ligar dizendo: 'Quero falar com o califa Al Bagdhadi, sou Michel Onfray e queria marcar um encontro para que pudéssemos chegar a uma solução pacífica.' Claro que não é assim que funciona".

Um homem contraditório, polêmico, recusou-se a votar nas últimas eleições presidenciais, mas passou toda a campanha, organizando conferências para debater os rumos dos partidos políticos franceses.

É capaz de discutir durante horas o significado das civilizações com velhas estrelas da intelectualidade francesa, como Régis Debray e Jean-Pierre Chevènement. E tarde da noite, manter ainda a forma no platô de TV CNews, para o último round do dia, um confronto sobre política com o mestre do conservadorismo, o filósofo Alain Finkielkraut.

Ateu, anarquista, Onfray acaba de publicar um livro demolidor sobre mais de dois mil anos de civilização cristã para provar minuciosamente em 650 páginas que ela está se apagando na história deste século XXI. Dos mais de 50 livros que escreveu, Decadência – Vida e morte do judeo-cristianismo é talvez o mais controverso e escandaloso. A frase inaugural do primeiro capítulo é definitiva: “A civilização judaico-cristã se constrói sobre uma ficção: a de um Jesus que nunca teve uma existência a não ser alegórica, metafórica, simbólica e mitológica.”

Elizabeth Carvalho — Eu queria justamente saber como seria o treinamento de um filósofo de combate para que ele mantivesse a forma e a coerência intelectual.
Michel Onfray — Seria a sinceridade. Não precisamos de outra virtude além da sinceridade. Se dizemos o que pensamos e não tememos ninguém por sermos autônomos e independentes, basta ser você mesmo e reagir a partir de cada assunto proposto. Podemos tratar da eleição presidencial, mas também podemos tratar de questões existenciais. “Acabei de perder meu marido”, “acabei de perder um filho”, “acabei de saber que tenho câncer”, “acabei de ser abandonado”, “não tenho dinheiro”, etc. “O que posso fazer?” Para mim, são questões importantes. Não existe uma realidade menor. Então, quando uma pessoa simples faz uma pergunta e sentimos o sofrimento de alguém que diz: “Vou fazer essa pergunta”, já quer dizer que a pessoa duvida que a filosofia possa servir para isso, para viver de outra forma, diferente, melhor. É incrível que tenham entendido que a filosofia não é uma coisa de professor para fazer teses, criar coletivos, para se perguntar o que Kant pensava da República ou o que Maquiavel achava do Príncipe. É legal, mas as pessoas querem entender o real, o mundo, a vida. Querem viver de forma diferente.

Elizabeth Carvalho — Esse esporte de combate, segundo entendi pelo seu livro, foi inventado por uma mulher, Eva, que preferiu pecar para saber a obedecer. Essa ideia é muito interessante.
Michel Onfray — Uma nova leitura do “Gênesis”. Sempre dizem: “O primeiro homem pecou.” E nós dizemos: “Certo.” “Ele comeu a maçã.” “Entendi.” Se lermos realmente o texto — o que poucos fazem —, vemos que não há maçã na Bíblia. O texto do “Gênesis” diz que havia duas árvores no Paraíso: a árvore do conhecimento e a árvore da vida. Deus diz a Adão e a Eva: “Podem fazer tudo, menos provar o fruto da árvore do conhecimento.” Então Eva não come uma maçã. Ela só quer o conhecimento, enquanto Adão não quer. No geral, temos dois estilos: Adão, que obedece, e Eva, que se rebela e diz: “Eu quero saber.” E foi o homem que ficou com o pomo de Adão. Ele ficou entalado na garganta dos homens porque cometemos esse erro. Mas aprendemos que foi a serpente que falou com Eva e que essa serpente é o Diabo. É o Demônio. Então é demoníaco querer saber quando o assunto é religião. Essa é a lição. Então eu digo que… Se Adão cometeu o famoso pecado… Nos esquecemos de que foi Eva que cometeu o pecado, mas que o pecado foi o de querer saber, pois Deus exigiu que ela obedecesse. Então eu digo que Eva inventou a filosofia, a inteligência. Tudo isso é muito metafórico, alegórico, mas, quando a decodificamos, a alegoria diz: Deus não quer que saibamos, e sim obedeçamos. Já Eva diz: “Eu quero entender primeiro. Depois vamos ver o que posso fazer.” E Deus então a pune. “Se quiser saber quem sou, você será punida porque descobrirá que eu não existo.”

A raiz da misoginia
Michel Onfray — As necessidades delas são impossíveis de serem supridas. A necessidade de informação, de saber. Elas querem saber. As necessidades sexuais também. O corpo delas foi feito de tal modo que o prazer e o desejo das mulheres não são iguais aos dos homens, e poucos homens estão à altura do prazer das mulheres. A mulher é um poço sem fundo. Então, por causa disso, ela é um perigo. Como ela é perigosa, nós a detestamos. A raiz da misoginia e da falocracia é a impotência intelectual dos homens diante das mulheres e a impotência sexual dos homens diante da potência das mulheres.

Elizabeth Carvalho — Há três momentos emblemáticos no seu livro: a história do mito do judeu errante, o momento em que o antissemitismo se torna o antissemitismo de Estado, depois de Constantino, o imperador romano, e a ideologia nazista, que o senhor vê como um sinal de colapso da civilização judaico-cristã. Fale um pouco dos três momentos, por favor.
Michel Onfray — Não acredito na existência histórica de Jesus. Eu acho que os judeus — no sentido histórico do termo — nos disseram que um messias viria. E, um dia, alguns dos judeus disseram: “Esse messias não virá, pois ele já veio.” Realmente, quando pegamos o Antigo Testamento, os judeus dizem: “O messias virá. Ele dirá isto, fará isto, agirá assim etc.” Eles descrevem a vinda de alguém. Então, um dia, alguns judeus, Jesus, e depois São Paulo, dizem: “Esse messias não virá. Ele já veio. Ele se chama Jesus e fez isto, aquilo etc.” Por coincidência, tudo que foi anunciado já tinha sido realizado.

Mas, quando pedimos à História, à Arqueologia, às ciências ou às disciplinas científicas provas da existência de Jesus, não achamos nenhuma prova, nenhum vestígio. Achamos mais provas de que ele é um mito.

Por exemplo, Jesus nasceu num lugar que não existia na época em que se diz que ele nasceu. É como se disséssemos que alguém nasceu em Brasília no século 17. Diremos: “Mas Brasília não existia no século 17.” Se essa pessoa nasceu, só pode ter sido no século 20, quando a cidade já existia. Nazaré não existia na época em que se supõe que Jesus nasceu. É o que diz a Arqueologia. Então, na verdade, Jesus é uma ficção conceitual.

Quem diz que Jesus veio ao mundo e tais coisas aconteceram são os judeo-cristãos, que hoje são chamados de cristãos. Quando as pessoas se tornavam cristãs, ficava claro que os judeus estavam errados. Estavam errados em achar que o profeta viria, pois ele já veio. Além disso, há um momento muito importante: a crucificação. Nele, vemos que Pôncio Pilatos dá a vida de Jesus aos judeus que a exigiam. Por muito tempo, os judeus foram o povo deicida, o povo que levou Deus à morte, que matou Deus.

E há uma lenda, a do judeu errante. Num dado momento, Jesus, a caminho do Calvário, pede água a alguém que se recusa a dar e bate nele. Esse homem era um judeu, e Jesus diz que ele estaria amaldiçoado até o fim dos tempos, que seria condenado a caminhar para sempre. Depois, Constantino, ao chegar ao poder, entendeu que o Cristianismo era sua chance de afirmar e garantir o poder. Há um Deus no Céu, então era preciso um príncipe, um imperador, na Terra. Então, o imperador Constantino cristianizou o império no início do século 4, e o antissemitismo se tornou política de Estado. As Cruzadas também foram marcadas pelo antissemitismo. E, em certo momento, um personagem recupera e reúne tudo isso: Adolf Hitler. Costumamos nos esquecer, mas Hitler era católico. Ele não era nada ateu. Lembre que os soldados do Reich usavam um cinturão no qual se lia: “Gott mit uns”, “Deus conosco”.

O Vaticano, inclusive, colaborou com o 3º Reich. Sabemos que Pio XII possibilitou a deportação de judeus e que Pio XII colaborou — ao contrário de Pio XI, que morreu no início da guerra ou pelo menos no início do governo nazista. Pio XI era antinazista, mas Pio XII considerava o nazismo, por ser um movimento anticomunista — já que o comunismo era um materialismo ateísta —, algo a ser abraçado, um aliado.

Elizabeth Carvalho — Você usa uma imagem interessante: uma garrafa de tinta se espalhando sobre o mapa no momento em que o Cristianismo se espalhou por todo o mundo. Estamos vendo isso hoje com o Islamismo.
Michel Onfray — É preciso estudar demografia. Se, em certo momento, uma população tem, em média, dois filhos e outra tem três, pronto. Não é muito complicado. Basta fazer o cálculo e veremos que, daqui a uma ou duas gerações, uma religião dominante será dominada e vice-versa. Não falo pensando: “Que catástrofe! Temos que combater isso. Vamos instaurar um regime que impeça isso.” Não. Só estou descrevendo uma situação e dizendo que nossa civilização não tem mais como se defender porque não acredita mais nesses valores e virtudes.

O Cristianismo não dita mais as leis. Conheço muitos cristãos para quem o Inferno, o Purgatório, o Paraíso, o amor ao próximo, a virgindade de Maria não são… São jeitos de falar. Mas não. Não podemos ser cristãos e dizer que todos os dogmas são interpretações. Que a Eucaristia é simbólica e não há a presença do corpo de Cristo. Um cristão pensa que o corpo de Cristo está na hóstia. Eu diria que houve um certo colapso dogmático do Cristianismo em si. Por exemplo, vemos as opiniões do Papa Francisco hoje e vemos que o Cristianismo está entrando em colapso. O Cristianismo ao qual as pessoas estão se convertendo hoje é uma religião adaptada.

Para mim, o momento do início do colapso do Cristianismo foi o Concílio Vaticano II, que eliminou o Sagrado e a Transcendência e quando a religião cristã se tornou uma moral e uma política. Eu vivi isso quando era jovem. Na época, eu era coroinha e me lembro bem. Ajudei na missa antes e depois do Concílio Vaticano II. Os homens ficavam à direita, o lado bom, e as mulheres, à esquerda, o lado ruim, e o padre dava as costas à assembleia para ficar voltado para o Santo Sacramento, que ficava na direção do sol. Tudo isso fazia sentido. Cristo era a luz, então ficávamos voltados para a luz. O padre ficava diante dele e atrás ficava o povo. Isso fazia sentido.

Com o Concílio Vaticano II, mudaram tudo. Os homens se misturaram às mulheres, o padre deu as costas ao Santo Sacramento e passou a olhar para… Interessante. Nunca tinha pensado nisso. Ele se voltou para os fiéis e deu as costas ao Santo Sacramento. Para mim, o colapso do Cristianismo se torna visível nisso, no desaparecimento do Sagrado e na redução do Cristianismo a um tipo de moral de escoteiro.

Ateu e agnóstico
Michel Onfray — Devemos chegar a um acordo sobre ateísmo, porque para o ateu Deus não existe. Já um agnóstico é um preguiçoso ou alguém que não pensou nisso. Temos de definir. Ou Deus existe ou não existe. Se Ele existe, então existe de tal modo. Acho que poucas pessoas param para pensar nisso. Então as pessoas são mais ou menos ateias, querem acreditar em algo, mas não sabem no quê. Quando perdem a avó ou o pai, acham que a morte não é um final, que, quando eles morrem, ainda estão vivos de certa forma, que ainda há alguma coisa depois da morte. Para mim, eles não são realmente ateus. Acho que o ateísmo é raro no mundo. Muito raro.

Elizabeth Carvalho — Você fala de uma 3ª rachadura no edifício judaico-cristão: o encontro dos europeus com o Novo Mundo. Eu queria comentar este trecho em que você diz: “Esse homem, que se alimenta do seu semelhante e não faz do seu corpo um inimigo, faz envelhecer de imediato o homem crucificado em nome do qual mil anos de História foram vividos. O que ainda não chamamos de ‘bom selvagem’ faz a história judaico-cristã dar início ao seu fim.” Comente isso.
Michel Onfray — Falamos de brasileiros para falar da América do Sul na época em que os navegadores foram, por causa do comércio, ver como era o mundo. Eles chegaram a um país sem saber que país era. Era o que chamamos de América. As Américas. Então descobrimos, a partir desse momento, que havia pessoas que não tinham a nossa cor de pele, nem as mesmas roupas, nem os mesmos costumes que nós. Elas existiam, estavam vivas e tinham uma filosofia. Eram seres humanos e tinham alma, então podíamos cristianizá-los. Esse fato é a prova de que eram humanos. Não cristianizamos macacos, cães, vacas, nem cavalos. Se cristianizamos alguém, é porque ele é humano. De repente, descobrimos que o homem branco cristão não era o único do planeta.

Montaigne, o gênio
Michel Onfray — Montaigne conheceu brasileiros. De repente, descobrimos que eles tinham outra cultura, outra religião, outro modo de ver as coisas. E Montaigne disse: “No fim, tem o mesmo valor da nossa.” Achávamos que nossa cultura estava aqui e as outras eram inferiores. Montaigne muda as coisas e diz: “Tem o mesmo valor da nossa.” Montaigne era incrível e disse: “Em certas coisas, eles são superiores a nós.” Por exemplo, ele disse: “Ficaram impressionados ao ver que podemos nos prostrar diante de uma criança”, o delfim, “e dar poder a uma criança.”

Ele também disse que ficaram muito impressionados ao constatar que, na rua, havia pessoas miseráveis, no chão, morrendo na lama, enquanto outras pessoas comiam banquetes fabulosos e jogavam comida fora. Montaigne disse: “Têm bom senso. Não podemos dar poder a uma criança nem fazer orgias enquanto o povo está morrendo. E, entre os selvagens, não se faz isso. Não dão poder às crianças e não deixam pessoas morrerem de fome diante do lixo dos outros. Por que eles fazem isso?” Assim, ele abriu uma porta para a etnografia francesa, e o Cristianismo deixou de estar no centro do mundo.

Elizabeth Carvalho — Eu queria fazer uma última pergunta. Todos estamos mergulhados, hoje, na vitória do neoliberalismo, do mercado, do individualismo, do consumismo, e as suas conclusões não são muito otimistas.
Michel Onfray — Estamos seguindo em direção a uma civilização global, geral e já estamos nessa configuração. Quando temos um celular com um pacote internacional, estamos em casa em qualquer lugar do mundo. Então acho que a universalização do mercado também é uma universalização do pensamento, e isso vai acontecer rápido. Hoje aceitamos a reprodução assistida, mas não a gestação por substituição. Na França, temos esse problema. Como podemos ser contra a barriga de aluguel, se isso é feito em muitos outros países? Se alugar uma barriga na Índia, por exemplo, e vier para a França, a entrada dessa criança é proibida de ser proibida. Ou seja, se você tiver dinheiro para fazer isso na Índia, vá fazer, pois seu filho será francês de qualquer jeito. Isso quer dizer que todo o poder da ciência se tornará mundial. O problema não é mais saber se haverá civilizações que farão ciência com consciência, mas que civilizações farão ciência sem consciência com dinheiro.

Um novo homem novo?
Michel Onfray — Já é possível criar lembranças no cérebro de um rato. Lembranças de coisas que ele não viveu. É incrível. Isso quer dizer que podemos tirar lembranças do cérebro do rato e colocar coisas que ele não viveu no lugar. Se tivermos a matriz concreta da memória, então dominaremos tudo. Vão achar um jeito de você ter a lembrança de Em Busca do Tempo Perdido e de termos uma conversa sobre o livro com pessoas que nunca leram Proust. E se você tiver uma reflexão pessoal diferente, vão suprimir isso porque ela é perigosa demais.

Então eu acho que tudo que estão preparando na Costa Oeste dos EUA como um homem novo, que seria fabricado pela ciência, com a possibilidade que temos hoje de passar tudo que temos em dados digitais para o cérebro e passar o que temos no cérebro para as máquinas — ou seja, o pareamento entre o vivo, o humano e o mecânico… Se passarmos a máquina para o cérebro e vice-versa, então fabricaremos algo que será pós-humano. Quando chegarmos ao pós-humano, à transgênese — e isso só deve exigir três ou quatro gerações —, vamos rir da nossa época e da nossa civilização.

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