Direito do Agronegócio

A água como agente nocivo para a produção de alimentos

Autores

  • Flavia Trentini

    é professora associada do Departamento de Direito Privado e de Processo Civil e do programa de mestrado da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e livre docente em Direito Agrário pela FDRP-USP com estágio pós-doutoral pela Scuola Superiore Sant'Anna di Studi Universitari e Perfezionamento (SSSUP Itália) e em Administração/Economia das Organizações (FEA/USP).

  • Francesca Spagnuolo

    é senior research fellow da Scuola Universitaria Sant’anna de Pisa na Itália.

23 de junho de 2017, 8h00

Spacca
Este artigo segue a temática da coluna do mês anterior, ou seja, da presença de vários riscos para a (ou da) agricultura. Recorda-se que na coluna anterior a autora, Mariagrazia Alabrese[1], propunha duas categorias de risco que se relacionam com a agricultura. Na primeira categoria — risco para a agricultura —, inserem-se os riscos técnicos e econômicos. Cabe salientar que nessa categoria estão os riscos bióticos que têm origem na ação nociva de vírus e bactérias indesejados. Na segunda categoria, encontram-se os considerados riscos da agricultura, ou seja, riscos que tenham fonte agrícola e consequências externas, por exemplo: riscos ambientais — poluição, nos casos em que o exercício da agricultura pode gerar efeitos danosos ao solo e à água. A água, por exemplo, pode também apresentar essa dualidade, no que se refere aos riscos ambientais. Via de regra, sofre os impactos negativos (qualitativos e quantitativos) das atividades econômicas, industriais ou agrícolas. Mas, neste artigo, traremos uma temática diversa, quando a água é quem apresenta riscos, ou seja, a água como o agente nocivo à produção de alimentos, por exemplo, os sucos de frutas[2].

Para fazer essa análise, conto com a participação, neste artigo, de Francesca Spagnuolo, senior research fellow da Scuola Universitaria Sant’anna de Pisa (SSSUP-Itália), certamente uma das maiores especialistas italianas no assunto, principalmente com estudos focados na relação da água com a alimentação dentro da nuance agroalimentar do Direito Agrário.

A discussão que permeia todo o artigo é a presença de arsênico na água, especificamente na Itália. Em razão das condições geológicas de muitas regiões, devido às atividades vulcânicas, o arsênico é naturalmente presente em vários aquíferos cuja água é destinada ao consumo humano ou faz parte da produção de outros alimentos[3]. A entrada em vigor da Diretiva 83 de 1998 da União Europeia impôs valores paramétricos para substâncias presentes na água com base nos atuais conhecimentos científicos e no 
princípio da prevenção. Foram selecionados valores para garantir que a água destinada ao consumo humano possa ser consumida com segurança durante toda a vida do consumidor, concorrendo assim para um elevado nível de proteção à saúde[4]. Uma das substâncias químicas que tiveram seus valores reduzidos pela Diretiva 83/98 foi o arsênico, com um novo parâmetro fixado na água para o qual foi estabelecido um limite máximo de 10 microrganismos por litro, que revoga o antigo limite de 50 mg por litro estipulado pela Diretiva 778 de 1980[5]. A modificação teve como fundamento o estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) que considerou uma presença superior a 20 mg por litro como um risco sanitário.

Cabe salientar que o arsênico pode estar presente em vários produtos destinados à alimentação humana que possuam em sua composição a água, mas também é possível encontrá-lo em produtos in natura como: cenoura, rabanete, espinafre, feijão e tomate são alguns exemplos de produtos agrícolas. Ressalta-se que a casca da batata concentra a maior quantidade de arsênico total. Em outros produtos agroalimentares, pode afetar consideravelmente o seu crescimento, por exemplo, o arroz[6].

A entrada em vigor da Diretiva 83/1998 da UE implicou na adoção de medidas corretivas, e algumas regiões italianas (Campanha, Lombardia, Toscana, Trentino-Alto, Adige e Umbria) solicitaram a revogação do parâmetro estabelecido pela normativa europeia com base nas disposições do Ministério da Saúde e do Meio Ambiente italiano, que indicavam que o limite de arsênico na água seria de 50 mg por litro, e a possibilidade prevista pela própria diretiva em seu artigo 15, que possibilitava ao Estados-membros, em circunstâncias excepcionais e para áreas geograficamente definidas, apresentarem à comissão um pedido especial para um prazo mais longo do que o previsto no artigo 14. Esse prazo adicional não poderia ser superior a três anos, ao fim do qual deveria ser efetuado um reexame apresentado à comissão, que, com base nele, poderia autorizar um novo período adicional de três anos, no máximo[7]. Porém, a possível revogação somente seria permitida desde que não se apresentasse um potencial perigo para a saúde humana. O pedido italiano também apontava que o abastecimento de água nas regiões descritas não poderia ser garantido por outros meios, também devido à complexidade das medidas corretivas.

O parecer da Comissão C(2010) 7.605 foi favorável ao pedido italiano, porém estipulava que a Itália deveria informar aos consumidores sobre como reduzir os riscos associados à água a que foi concedida a isenção e informar especialmente sobre os riscos associados ao consumo dessa água por lactantes e crianças de até três anos de idade[8].

A Decisão 3.390 do Conselho do Estado Italiano, de 21 de junho de 2013, referente ao Recurso 4.648/12, proposto pelos ministérios da Saúde e Meio Ambiente contra as associações dos usuários dos serviços públicos a respeito da sentença 64/2012, a qual observou que os ministérios agiram com atraso e com informações incompletas à população sobre o risco da presença de arsênico na água, considerou que as regiões cumpriram em tempos diversos as obrigações previstas na comunicação, adotando de acordo com a disponibilidade de orçamento medidas informativas necessárias[9].

Ora, a importância da água é incontestável, seja como bebida, seja como alimento (componente de alimentos). Qualquer que seja sua contaminação, química ou microbiológica, deve ser comunicada e resolvida na maior brevidade possível, pois é indispensável para garantir um nível elevado de proteção à saúde dos cidadãos. Apesar de tudo, como demonstra o caso da água com arsênico, o controle para se adequar aos valores estabelecidos e informar tempestivamente os consumidores dos potenciais riscos conexos ao consumo foi ineficaz e inidôneo a produzir os resultados esperados.


[1] Alabrese, Mariagrazia. Riflessioni sul tema del rischio nel diritto agrário. Pisa: ETS, 2009.
[2] Importante atentar para as definições do Regulamento 178/2002 da UE. “«Empresa do Sector Alimentar», qualquer empresa, com ou sem fins lucrativos, pública ou privada, que se dedique a uma actividade relacionada com qualquer das fases da produção, transformação e distribuição de géneros alimentícios; e «género alimentício» (ou «alimento para consumo humano»), qualquer substância ou produto, transformado, parcialmente transformado ou não transformado, destinado a ser ingerido pelo ser humano ou com razoáveis probabilidades de o ser. Este termo abrange bebidas, pastilhas elásticas e todas as substâncias, incluindo a água, intencionalmente incorporadas nos géneros alimentícios durante o seu fabrico, preparação ou tratamento. A água está incluída dentro dos limiares de conformidade referidos no artigo 6º da Directiva 98/83/CE, sem prejuízo dos requisitos das Directivas 80/778/CEE e 98/83/CE. União Europeia. Regulamento 178 de 2002. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2002:031:0001:0024:PT:PDF>. Acesso em: 20.jun.2017.
[3] Mais detalhadamente sobre o assunto, ver Spagnuolo, Francesca. Profili di sicurezza alimentare nella disciplina multilivello delle acque destinate al consumo umano. Federalismi.it. Rivista di diritto pubblico italiano, comparato, europeo. n. 2, 2015, p. 3-17.
[4] Na água subterrânea, os óxidos de ferro são os principais absorventes devido a sua grande abundância e forte afinidade por arsênio, contudo, óxidos de alumínio em grande quantidade podem ter um importante papel na absorção. As altas concentrações de arsênio em aquíferos estão associadas a três principais fatores: i) à fonte de arsênio, geralmente de características geológicas ou industriais. Quando estas fontes são associadas a óxidos de ferro, o arsênio encontra-se imobilizado, mas mudanças nas condições geoquímicas podem provocar sua mobilização. ii) À mobilização, provocada por uma dessorção devido a mudanças nas condições de oxirredução. Outros fatores de dessorção têm relação com a diminuição da área superficial ou dissolução dos óxidos minerais onde acontece a adsorção. iii) Ao transporte, refere-se à quantidade de água que toma contato com o arsênio liberado na fase sólida para o aquífero, de maneira a determinar a taxa de arsênio que não é absorvido pelos outros elementos presentes no meio. Altas concentrações em água subterrânea são encontradas nos poços de Bangladesh « 0,5 a 3.200 Ilg/L), onde as características geológicas e o ambiente reduzido favorecem a mobilização de arsênio. (Carabantes, Alexandra Lena Galetovic. Contaminação do ambiente com arsênico e seus efeitos na saúde humana: uma revisão. p. 35. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo. Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas. São Paulo, 2003).
[5] União Europeia. Diretiva 83 de 1998. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A31998L0083>. Acesso em: 19.jun.2017.
[6] Carabantes, Alexandra Lena Galetovic. Contaminação do ambiente com arsênico e seus efeitos na saúde humana: uma revisão. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo. Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas. São Paulo, 2003. 124 p.
[7] União Europeia. Diretiva 83 de 1998. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A31998L0083>. Acesso em: 19.jun.2017.
[8] União Europeia. Comunicação 7.605 de 2010. Disponível em: <http://ec.europa.eu/transparency/regdoc/rep/3/2010/IT/3-2010-7605-IT-F-0.Pdf>. Acesso em: 19.jun.2017.
[9] Itália. Conselho do Estado Italiano, n. 3.390, de 21 de junho de 2013. Disponível em: <https://www.iusexplorer.it/Dejure/RicercaStessaClassificazione?classificazione=%7C68800252%7C&idDataBank=0>. Acesso em: 20.jun.2017.

Autores

  • é professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto. Doutora em Direito pela USP, com pós-doutorado em Administração/Economia das Organizações (FEA/USP). Atualmente é visiting professor na Scuola Universitaria Superiore Sant’anna (Itália). Tem experiência na área de Direito Privado, com ênfase em Direito Agroambiental.

  • é senior research fellow da Scuola Universitaria Sant’anna de Pisa, na Itália.

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