Carreira constitucional

Em 15 anos de STF, Gilmar foi testemunha e protagonista dos principais eventos do país

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21 de junho de 2017, 17h08

Os últimos 15 anos foram agitados para o Brasil. Escândalos de corrupção, crises econômicas, mudanças de sistema eleitoral e algumas crises institucionais. Esse período de incertezas consolidou o Supremo Tribunal Federal como árbitro por excelência de todos os conflitos importantes do país. Não é exagero, portanto, dizer que quem ocupou uma das onze cadeiras nesse período pôde assistir à historia de camarote, quando não foi personagem dela.

O ministro Gilmar Mendes, que completou 15 anos de Supremo na terça-feira (20/6), pode se dizer um protagonista desse salto. Ele chegou ao tribunal por indicação do presidente Fernando Henrique Cardoso. Foi a terceira e última indicação de FHC, feita três dias depois da aposentadoria do ministro Néri da Silveira. Foi uma indicação tão polêmica quanto elogiada: Gilmar era advogado-geral da União quando foi indicado e participou ativamente do governo. Mas também já era um dos mais importantes constitucionalistas do país.

Spacca
Com estudos profundos sobre a jurisdição constitucional e a efetivação dos direitos fundamentais, há quem diga que a obra de Gilmar é inescapável para quem quer se dedicar ao Direito Constitucional brasileiro.

É possível ver as digitais do ministro em diversos momentos fundamentais para o controle de constitucionalidade do país. Ele era chefe do jurídico da Casa Civil da Presidência da República quando foram criadas as leis que tratam da ação direta de inconstitucionalidade, da arguição de descumprimento de preceito fundamental e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão.

São essas ações que permitem ao Supremo regular o processo decisório do Congresso, a casa dos representantes do povo. Por meio delas, o tribunal pode “derrogar tacitamente” a Constituição Federal, conforme analisa o jurista Carlos Blanco de Morais,catedrático da Universidade de Lisboa. Em entrevista à ConJur, o professor disse que o tribunal tem feito isso por meio de uma concentração dos próprios poderes, a partir de decisões vinculantes, como a que equiparou a união estável entre pessoas do mesmo sexo ao casamento, embora a Constituição diga que o casamento é a unidade familiar constituída por homem e mulher.

Fazer-se ouvir
O ministro Gilmar até concorda com Blanco de Morais, de quem é amigo, mas acredita que o problema não seja exclusivo do tribunal. A demanda à corte vem aumentando, e para problemas cada vez mais complexos. Ao mesmo tempo em que isso “exige cautela” do STF, também levanta a preocupação sobre a legitimidade das decisões da corte, analisa o ministro.

“Na atuação como ministro do STF, é mister fazer com que os julgados do STF verberem em todo o país e para muito além dos limites objetivos e subjetivos ínsitos ao processo porventura julgado”, escreveu Gilmar, na apresentação de seu livro Estado de Direito e Jurisdição, lançado em 2012.

Por isso, grande preocupação dos dias atuais do ministro tem sido com formas de execução das decisões do STF. “Na realidade constitucional brasileira, atormenta-nos o risco de julgados do Supremo estarem se transformando em meros discursos lítero-poéticos”, escreveu em sua coluna na ConJur em outubro de 2016.

Os exemplos são muitos, como a liminar em que o ministro Marco Aurélio mandou o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) deixar a Presidência do Senado, solenemente descumprida. Ou a determinação do ministro Luís Roberto Barroso de que a reforma na Lei Geral de Telecomunicações fosse rediscutida pelo Senado, mas foi enviada à sanção presidencial dois dias depois da publicação da decisão.

“A despeito da força normativa de que dispõem, o efetivo cumprimento de importantes acórdãos tem se mostrado sonho cada vez mais distante”, escreveu Gilmar.

Atuação cautelosa
Outra preocupação histórica do ministro, sempre visível em seus posicionamentos no Plenário, é quanto ao avanço do Supremo por sobre questões delicadas, nem sempre puramente jurídicas. Gilmar costuma dizer que a saída judicial nem sempre é a melhor, já que o Judiciário só pode dar duas respostas: sim ou não.

Um bom exemplo do conflito desses limites é nas discussões sobre a efetivação de direitos fundamentais, área na que conta com grandes contribuições do ministro Gilmar. O tema, diz o ministro, “implica refletir sobre a aplicação do princípio da proporcionalidade”, conforme escreveu em seu voto na Intervenção Federal 2.915.

É o que ele chama de “princípio da proibição do excesso”, que deve ser aplicado quando há a repressão a algum direito fundamental ou conflito entre dois direitos de mesmo peso. Para estabelecer o “peso relativo” desses direitos, afirma o ministro, devem ser analisados os elementos concretos do princípio da proporcionalidade: “A) adequação (apto para produzir o resultado desejado); b) necessidade (insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz); c) proporcionalidade em sentido estrito (forma -se relação ponderada entre o grau de restrição de certo princípio e o grau de realização do princípio contraposto)”.

Um bom exemplo dessa discussão está no controle de constitucionalidade de emendas constitucionais, outro dos temas de grande preocupação do ministro. Na ação que discutiu a constitucionalidade da emenda que mudou as regras de coligações partidárias, o ministro escreveu que, embora a Constituição tenha imposto limites à reforma constitucional pelo Congresso, “deixou a cargo do intérprete constitucional a tarefa de delimitar quais os princípios que conformariam a identidade material da Constituição”, conforme escreveu no voto da ADI 3.685.

A decisão faz parte de um dos avanços do tribunal que o ministro considera equivocados. Outro deles foi a declaração de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 62. O texto criou o regime especial de pagamento de precatórios e deu à administração pública 15 anos para pagar suas dívidas. O Supremo cassou a emenda, mas, diante da incapacidade dos estados de fazer os pagamentos, decidiu manter a EC 62 em vigor durante cinco anos.

Depois do julgamento, o ministro Gilmar disse que o Supremo estava diante da pior decisão de sua história, “fruto de excessiva autoconfiança”.

Carlos Humberto/SCO/STF
Carlos Humberto/SCO/STF

Súmula vinculante
Grande demonstração de poder do Supremo brasileiro são as súmulas vinculantes. Conhecidas como as leis do Judiciário, elas são editadas diante do reiterado desrespeito a precedentes do STF, que fazem com que a corte tome a mesma decisão diversas vezes. A súmula é uma forma de obrigar os demais tribunais a seguir o precedente, já que permitem reclamações diretamente ao Supremo.

Elas foram criadas em 2004, com a Emenda Constitucional 45/2004, a da Reforma do Judiciário, e foi regulamentada pela Lei 11.417/2006. Um ano e meio depois, chegou ao Supremo a Proposta de Súmula Vinculante 1, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Ela pretendia transformar em precedente de obediência obrigatória a permissão de acesso às provas dos inquéritos por advogados.

O texto foi aprovado em março de 2009, sob a presidência do ministro Gilmar Mendes, e se transformou na Súmula Vinculante 14, ainda uma das mais desrespeitadas por instâncias locais. Na época da discussão, o ministro registrou que o verbete confirmou “firme compromisso do STF com a efetiva aplicação das garantias constitucionais, coibindo os notórios abusos decorrentes do caráter conferido às sigilosas investigações policiais". “Fácil ver que o caráter sigiloso das investigações policiais estava a servir a propósitos autoritários.”

Estado policial
O ministro é pródigo em aproveitar o cargo para denunciar o que considera ser a criação de um “Estado Policial” no Brasil. Recentemente, criticou a condução da operação “lava jato” pelo Ministério Público Federal por considerar que são cometidos crimes para combater crimes. Em palestra num evento em Recife, Gilmar disse que a procuradoria-geral da República abre inquéritos e propõe denúncias com o único objetivo de intimidar a classe política.

Uma característica marcante do ministro Gilmar, percebida por todos que o conhecem, é o método cartesiano de análise de grandes problemas. A crítica ao uso do poder de abertura de inquérito de instauração de ações penais, de tão reiterada, é exemplo desse adjetivo.

Em diversos votos, Gilmar apontou o direcionamento do aparelho estatal de repressão criminal para fins políticos. No HC 91.435, por exemplo, ele denunciou o uso indiscriminado das prisões provisórias com a justificativa da “garantia da instrução criminal”. A mesma reclamação foi feita em 2017, quando o ministro se tornou o crítico-mor dos abusos cometidos pela “lava jato”, especialmente com o uso das preventivas para forçar investigados a fazer acordo de delação premiada.

No HC, julgado em maio de 2008, Gilmar disse que, entre 2003 e 2008, a Polícia Federal deflagrou “número elevado de operações, quase todas efetivadas sob ampla exposição midiática, com denominação específica e com destaque para a apresentação de presos algemados”. “É muito provável que órgãos judiciais tenham se curvado, em muitos casos, diante do poder avassalador acumulado pelas forças policiais. Contrariá-los poderia significar riscos sérios às próprias funções, exercidas, muitas vezes, sob coação”, escreveu o ministro, no voto.

Em entrevista à ConJur de julho de 2015, o ministro voltou a defender a mesma tese, mais uma vez em relação à “lava jato”. Ele reclamava das falas dos investigadores que davam a entender que a operação mudaria a democracia brasileira, acabando com a corrupção. “Não vá o sapateiro além das sapatas”, disse o ministro, à ConJur. “Dedique-se o procurador a procurar. O delegado a fazer o seu trabalho e o juiz a julgar. Não venham nos impor orientações filosóficas. A interpretação desse fenômeno vai caber aos historiadores.”

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