Criminalização das drogas, sozinha, não consegue os resultados necessários
19 de junho de 2017, 13h51

No entanto, há um receio de que a liberação possa agravar significativamente o problema, pois, sem proibição, o consumo pode explodir.Estima-se que o consumo de maconha, cocaína e crack venham crescendo exponencialmente; mas comparados com as drogas lícitas, cigarro e álcool,os índices são muito menores. Se a liberação das drogas seguir o padrão destas últimas,teremos uma explosão do consumo. Imaginem cocaína e crack vendidos livremente nos bares, clubes e casas noturnas. Servidos nas festas. Alguém conseguirá conter o consumo? Não. Criaremos uma sociedade com milhões de pessoas improdutivas e doentes; e quem as sustentarão?
Como Promotor de Justiça sempre busquei trilhar o caminho da legalidade; mas trabalhando na repressão ao tráfico de drogas, pude constatar inúmeras situações, onde o cumprimento estrito da lei leva a resultados contestáveis. O que mais se discute, na atualidade, é o contingente infindável de presidiários. A maioria é constituída por jovens recém-chegados à maioridade, e que acabam detidos como traficantes. Duas décadas atrás, traziam pouco mais de uma dezena de trouxinhas;atualmente, carregam centenas de porções. O crack revelou o efeito devastador sobre a saúde dos usuários. Ainda assim, as prisões desses jovens não conseguiram frear o consumo. Na maioria, esses adolescentes vêm das classes sociais desfavorecidas, mas o problema não exclui nenhuma classe, seja na busca do alto ganho financeiro, seja no consumo das drogas proibidas.
A opção do Constituinte, em 1988, foi de trilhar o caminho da repressão total, tanto que equiparou o tráfico de drogas aos crimes hediondos; proibiu a fiança, graça e anistia,e ameaçou punir até quem se omitisse em relação ao tema (art.5º, XLIII); além de determinar a expropriação (sem indenização) das propriedades onde houver “culturas ilegais de plantas psicotrópicas” (art.243).
No entanto, décadas depois, a política do STF, guardião da Constituição, segue em outra direção. O número de encarcerados passou a pesar mais do que o texto constitucional. Várias decisões do Supremo Tribunal Federal concederam benefícios aos traficantes de drogas: a primeira, relatada pelo ministro Ayres Brito (HC 97.256-RS), permitiu a substituição da pena por penas alternativas não privativas de liberdade; a segunda, do ministro Gilmar Mendes (HC 104.339-SP), admitiu a liberdade provisória; a terceira, de Dias Toffoli (HC 111.840-ES), criou a possibilidade de regime aberto; e, finalmente, a quarta, da Ministra Carmen Lúcia (HC 118.533-MS), veio a excluir o tráfico privilegiado do rol dos crimes equiparados a hediondos. Trata-se de uma guinada significativa na Política de Drogas do país. E isso divide opiniões.
A polêmica é insuperável; de um lado, operadores do Direito e uma parte da população que são absolutamente a favor da punição severa aos traficantes. Estes são vistos como inimigos da sociedade e devem ser tratados com muito rigor. De outro, os liberais, que enxergam nessas pessoas apenas vítimas de um sistema social que favorece a exclusão dos mais pobres, dos marginalizados; e drogados e traficantes fazem parte dessa realidade.
A própria legislação reproduz essa dicotomia e essa dubiedade. Pune de um lado, beneficia de outro. A Lei 6368 de 1976 tinha uma pena mínima de três anos de reclusão para traficantes (art.12); a Lei atual nº 11.343 de 2006,subiu para um mínimo de cinco anos de privação de liberdade (art. 33, caput), mas criou o tráfico privilegiado (§4º), cuja pena sofre redução de até dois terços, ou seja, a pena mínima, em verdade, caiu para um ano e oito meses. Somente para o reincidente ela subiu: cinco anos e dez meses, pena mínima sem o privilégio,com aumento de um sexto pela reincidência.
A liberação das drogas deve ser o sonho para seus produtores. Alguns países geram fortunas com a produção e venda desenfreada de estupefacientes.
Nos países consumidores, a política é inversa. Os Estados Unidos, primeiro consumidor mundial, adotou uma política de guerra às drogas; e a impôs a boa parte do mundo. Essa política de guerra constitui o sonho dos produtores de armas.
Assim, uma política liberal beneficia produtores e traficantes de drogas. Uma política repressiva beneficia produtores e traficantes de armas, e, em consequência, transforma os traficantes de drogas em grandes consumidores de armamentos. O Brasil está no meio desse conflito, espremido por ambos os interesses; é uma rota para traficantes, mas com um mercado consumidor que já é considerado um dos mais importantes do mundo. Em suma, há lucros e perdas. Lucros na comercialização de drogas e armas; e perdas de vidas e da saúde dos usuários.
Após muitos debates sobre esse tema, inclusive em Congresso realizado pelo MPD em 2016, nos parece possível visualizar uma postura intermediária que atenda os interesses do país, e as decisões do STF abrem caminho para isso.
Afastada a possibilidade de liberação do tráfico de drogas, devido a inevitável explosão do consumo, resta agir com inteligência para tentar desestimular esta que é uma das profissões mais lucrativas na atualidade.
Para isso, é preciso passar a fazer distinções entre os diversos tipos de traficantes. Não se trata de distinguir apenas grandes de pequenos comerciantes; mas também, traficantes violentos de não violentos; meros mercenários da saúde alheia daqueles que são igualmente vítimas ecausadores do problema.
O tráfico privilegiado, na visão atual do STF,permite a criação de um sistema de rápido giro penitenciário, evitando o encarceramento prolongado de um contingente imenso da população. Serve de aviso àquele que achou que passaria ileso pelos atos ilícitos praticados; mas não o retém por muito tempo, salvo se persistir na prática ilícita.
Todavia, é sempre preciso distinguir os casos mais graves: a reincidência gera uma pena bem maior, e serve de desestímulo àquele que resolver ser profissional do setor; mas não é somente a reincidência que precisa ser eficazmente desestimulada.
A lei prevê o afastamento do privilégio nos casos de participação em organização criminosa,e nadedicação aessa atividade.
Precisam ser obstados de obter o benefício (privilégio), em primeiro lugar, os traficantes que trabalham armados. Armas e drogas criam uma composição de altíssima violência; essa forma de atuação tem de ser combatida com rigor, pois, é a pior forma do tráfico:gera homicídios.
O segundo grupo é o dos grandes fornecedores: os traficantes de muitos e muitos quilos de drogas,cuja conduta tipifica participação em organização criminosa. Se não é possível manter todos os traficantes na prisão por muito tempo, é possível segurar os grandes. Não pode haver privilégio para tráfico de 700 quilos como ocorreu em caso do MS, depois usado pelo STF (HC 118.533), isso é inconcebível.
Também, é preciso combateras finanças das organizações criminosas, através de ações que visem o bloqueio e expropriação de seu lucro e patrimônio, os quais deveriam ser destinados, na maior parte,ao financiamento dasaúde pública.
Em suma, se punirmos com rigor os traficantes armados, os grandes traficantes, as organizações criminosas e os reincidentes; talvez consigamos um melhor controle do problema; do que nos perdermos num esforço imenso sobre uma massa de usuários-vendedores e desempregados, que são mais vítimas do tráfico do que qualquer outro; são as pessoas que perdem suas vidas nas drogas e nas cadeias, sem que tenham recebido grande vantagem por isso. Para estes uma curta permanência no cárcere (até o recebimento da denúncia ou citação), seguido de tratamento para o abuso das drogas, sob pena de retorno à prisão, pode gerar menor custo social e maior eficiência.
A ênfase no tratamento deve ser uma tônica constante; além de uma repressão mais seletiva (jurisprudência do STF), é preciso investir forte no tratamento dos usuários de drogas(arts. 45 e 46 da Lei 11.343, de 2006).Milhares de traficantes são usuários.Número enorme de furtadoresestão envolvidos na criminalidade em razão das drogas. Até assaltos e homicídios, por vezes, são consequência delas. A exigência de que procurem tratamento médico ou ajuda em grupos como Narcóticos Anônimos e Amor Exigente, dentre outros, é essencial. Todos os benefícios da legislação: liberdade provisória, livramento condicional, penas alternativas e outros; deveriam ser condicionados ao tratamento, sempre que o réu for usuário.
O momento que o país atravessa comporta uma mudança na política de combate às drogas, não a simples liberação dos entorpecentes, o que pode ter conseqüências catastróficas; mas passando a focar mais no tratamento, e reduzindo o tempo de permanência na prisão dos traficantes, de forma seletiva, sem deixar de reprimir as condutas ilegais, mas usando outras formas de combate e não apenas a privação de liberdade. Número menor de presidiários representa uma redução no custo para a sociedade, e menor poder para as organizações que controlam os presídios. Mas não se faz isso de forma irresponsável, com a mera liberação das drogas. Podemos fazer uma grande mudança, usando mais a medicina e menos os presídios, mas de forma combinada, com repressão mais curta, seletiva e mais eficiente.
Em suma, é preciso tratar o problema em todos os aspectos, com métodos combinados — e não focar apenas na repressão. A criminalização ajuda na contenção do problema, mas, sozinha, não consegue os resultados necessários.
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