Ideias do Milênio

"Função de juiz não é fazer pesquisa de opinião e realizar desejo da maioria"

Autor

19 de junho de 2017, 11h00

dcbar.org
David Cole [dcbar.org]Entrevista concedida pelo professor de Direito da Universidade de Georgetown David Cole, ao jornalista Luis Fernando Silva Pinto, para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (17h30), quartas (15h30), quintas (6h30) e domingos (14h05).

Os tribunais mais altos de qualquer país, o Supremo Tribunal Federal no Brasil, por exemplo, a Suprema Corte nos Estados Unidos, foram durante muito tempo instituições pouco conhecidas da população e até distantes. Praticamente não havia juízas, que pareciam tomar decisões sobre a constitucionalidade de casos a uma distância segura, com sentenças que demoravam para sair. Só que muito disso mudou. Hoje os nomes dos homens e das mulheres que vestem as togas são conhecidos. Decisões cruciais são tomadas com uma rapidez muito maior. Em diferentes países, o Judiciário mudou, ficou mais ativo, ficou mais aberto. Segundo o professor David Cole, da Escola de Direito da Universidade de Georgetown, os supremos tribunais estão aplicando princípios constitucionais de uma forma que reflete cada vez mais o que a sociedade demanda.

No livro que ele acabou de publicar, chamado Os motores da liberdade, ele dá exemplos de mudanças legais profundas que nasceram a partir de pressão popular da sociedade americana sobre a Suprema Corte. Esse é o assunto de hoje no Milênio.

Luis Fernando Silva Pinto — O conceito é antigo: para que uma sociedade funcione bem, é preciso haver leis. Mas o conceito de que é possível influenciar as leis de baixo para cima, provavelmente, se aplicado, pelo menos não é muito conhecido. Pode explicar se isso mudou? E, se mudou, por quê?
David Cole — Se você se refere à habilidade de o povo mudar leis ordinárias, isso é aceito há muito tempo. Temos um processo democrático nos Estados Unidos, o legislativo vota para aprovar leis. Eles são eleitos pelo povo, têm de atender as reivindicações do povo e fazer a vontade do povo, pelo menos em teoria. Mas o direito constitucional americano supostamente está acima do embate político. O Congresso não pode mudar a lei constitucional.

Luis Fernando Silva Pinto — Está no contrato original.
David Cole —
Sim. Há um contrato original, a constituição. Existe uma forma de mudá-la prevista na constituição, o processo de emendas, então, desde o início, entendeu-se que, se o povo estivesse insatisfeito com o direito constitucional existente, haveria um caminho a seguir para emendar a constituição. Passaram-se mais de 240 anos desde que a constituição original foi adotada.

Luis Fernando Silva Pinto — O mundo era diferente.
David Cole — O mundo era diferente e os EUA eram diferentes. Por que os americanos de hoje devem ser regidos por aquilo que um monte de homens brancos mortos há muito tempo que nem representavam a maioria do povo na época… Pois é, donos de fazendas… Era a elite da elite. Por que devemos ser regidos pelas leis deles?

A Constituição americana proíbe o Congresso de realizar três atos: Impedir o livre exercício da religião, limitar a liberdade de expressão e censurar a imprensa.

Luis Fernando Silva Pinto — Mas, como nasce a ideia de que cidadãos, grupos, podem mudar o nível mais alto da lei de um país, o nível constitucional da lei? No livro você dá três exemplos, e eu gostaria de começar com um: o casamento gay. Segundo a sua descrição, foi um processo muito longo. Pode resumi-lo?
David Cole — Por um lado, foi um processo longo. Por outro, as pessoas dizem: “Nossa, é incrível como a igualdade matrimonial foi reconhecida rapidamente.”

Luis Fernando Silva Pinto — Nós testemunhamos.
David Cole — Pois é, todos nós testemunhamos. Há 25 anos, a ideia de que duas pessoas do mesmo sexo pudessem se casar era impensável. Na verdade, em 1972, um casal gay levou esse argumento à Suprema Corte. Eles apelaram argumentando: “Temos o direito de casar nos mesmos termos que um casal heterossexual.” A Suprema Corte negou o recurso com uma única frase: “Isso sequer é uma pergunta séria.”

Luis Fernando Silva Pinto — “Sequer é uma pergunta séria”?
David Cole — Só isso. 1972. Em 2015, 40 anos depois, no verão passado, a Suprema Corte diz: “A Constituição protege o direito de casais gays se casarem.” Como essa mudança aconteceu? A Suprema Corte Americana de 1972 era mais liberal do que…

Luis Fernando Silva Pinto — … do que o tribunal que aprovou a lei em 2015.
David Cole — O tribunal atual é bem conservador. Ele tem maioria conservadora há quase 40 anos. Então o que mudou? O tribunal não mudou, nem os argumentos legais. O que mudou foi o mundo, o que mudou foi a forma como o mundo vê indivíduos homossexuais.

Luis Fernando Silva Pinto — Mas você conta a história de um indivíduo, um jurista, que era estudante no início.
David Cole —
Eu começo o livro falando sobre Evan Wolfson. Ele era estudante de Direito em Harvard nos anos 1980 e decidiu, no terceiro ano, em 1983, escrever uma dissertação argumentando que a Constituição deveria proteger o direito ao casamento homossexual. Ele procurou todos os professores de direito constitucional de Harvard — e são muitos — e perguntou se eles orientariam a pesquisa independente dele. Todos negaram.

Luis Fernando Silva Pinto — Todos?
David Cole — Todos negaram, porque era tão extravagante, tão impensável, que não valia a pena orientá-lo.

Luis Fernando Silva Pinto — Eles tinham na cabeça a decisão dos anos 1970.
David Cole — Exatamente. Até que ele achou um professor de direito tributário que topou orientar o trabalho, e Evan escreveu uma dissertação de 141 páginas sobe o direito ao casamento gay. Ele tirou B+, o que não é uma nota muito boa em Harvard…

Luis Fernando Silva Pinto — Equivale a 8.
David Cole — Mas não parou por aí. Ele se formou, foi trabalhar no Lambda Legal Defense Fund, que na época em que só havia umas quatro organizações de defesa dos direitos dos gays no país. Então ele apoiou as batalhas pelos referendos, as batalhas legais… Eles apoiavam as ações judiciais, mas não entravam com ações. E essa organização fechou depois que a Suprema Corte reconheceu o direito, pois seu trabalho estava feito.

Luis Fernando Silva Pinto — Mas a pressão na opinião pública ela vale não só para um lado, como no caso do casamento gay aqui nos Estados Unidos. Ela serve também, serviu também, no caso do direito ao porte de armas. Explique essa questão.
David Cole — Essa é a segunda história que eu conto no livro. Como foi que o direito individual de portar armas, que a Suprema Corte reconheceu em 2008, passou? Durante um século, os tribunais interpretaram que a segunda emenda à constituição protege o poder dos estados de terem uma milícia para protegê-los contra a tirania federal, mas não o direito de indivíduos portarem armas para fins pessoais. Aliás, o presidente da Suprema Corte Warren Burger, que era republicano e um juiz sabidamente conservador, disse em 1991 que a ideia de que a segunda emenda protege o direito individual ao porte de armas era uma das maiores fraudes cometidas contra o povo americano na vida dele.

Luis Fernando Silva Pinto — Então, para ele, não tinha nada a ver com um direito individual, mas tudo a ver com a proteção dos estados.
David Cole — Era uma prerrogativa dos estados para se protegerem contra o governo federal, e não um direito individual. Isso porque o artigo inclui um preâmbulo que fala da importância de se manter uma milícia regularizada. Em todo caso, ele disse que era uma fraude em 1991 e, em 2008, a Suprema Corte diz que, além de não ser fraude, é um direito constitucional. Como isso aconteceu? Como essa mudança se deu? E o que eu mostro no livro é que ela se deu quase que totalmente graças à National Rifle Association (NRA), que é, na minha opinião, a organização de defesa de liberdades civis mais eficaz dos EUA.

Quando George W. Bush foi eleito, com uma ajuda tremenda da NRA, indicou John Ashcroft como procurador-geral. Ashcroft, que tinha sido senador pelo Missouri, era um membro antigo da associação. A NRA foi ao procurador-geral e perguntou qual era a opinião dele sobre a segunda emenda, sabendo que ele apoiava a opinião dela, e John Ashcroft fez com que o Departamento de Justiça, que representa o executivo, revertesse a antiga posição, que era: a segunda emenda só protege os estados, não indivíduos.

A terceira história do livro, que é sobre o que levou o presidente Bush…

Luis Fernando Silva Pinto — a libertar prisioneiros depois do 11 de setembro.
David Cole — A restringir algumas das medidas mais agressivas que ele tomou depois do 11 de setembro no final de seu governo. Ele criou Guantánamo, prisões secretas da CIA, torturava pessoas nessas prisões, mandava prisioneiros para outros países para serem torturadas.

Luis Fernando Silva Pinto — As prisões secretas.
David Cole — Práticas muito problemáticas adotadas depois do 11 de setembro, mas, quando Bush deixou o governo, ele tinha cortado a maioria delas. Quinhentos detentos deixaram Guantánamo, as prisões secretas da CIA foram esvaziadas, o programa de interrogatórios violentos da CIA foi suspenso, o programa da NSA de escutas telefônicas passou a ser supervisionado. Ainda era amplo, como Edward Snowden revelou, mas era supervisionado pela Justiça, quando antes era uma ordem executiva unilateral.

Então eu pergunto: o que o levou a fazer isso? Porque ele não mudou de ideia. Ainda acha que tudo que fez desde o início estava certo. Uma das coisas que o levaram a fazer isso foi a pressão criada por grupos da sociedade civil, principalmente a pressão transnacional. Por exemplo, em Guantánamo, havia cidadãos de 42 países presos. Nenhum americano.

Então os americanos não se importavam muito. Acabaram se importando, mas não no início, não eram eles. Mas no Reino Unido — havia oito ou nove britânicos em Guantánamo — quando surgiram os relatos do que acontecia em Guantánamo, das violações de direitos, isso gerou muita preocupação por parte da imprensa e do público britânico. Eles pressionaram Tony Blair, que inicialmente apoiou totalmente George Bush em relação a Guantánamo, mas ele foi forçado pela pressão da opinião pública britânica a rever sua posição e exigir que os britânicos fossem libertados.

Luis Fernando Silva Pinto — Ficou com medo de perder votos.
David Cole — Exatamente, mas daí ele pressionou Bush, que libertou os detentos britânicos. E esses detentos começaram a contar o que acontecia em Guantánamo, falaram da tortura.

Em cartas escritas por um detento, um retrato de um presídio onde os presos passam anos sem acusação formal, visita de advogados ou sem ter o julgamento marcado. Uma delas diz: “Seja torturado e permaneça preso.” Uma outra resume a falta de perspectiva: “Apenas existir já é um ato de resistência.”

David Cole — Tudo isso aconteceu antes de a Suprema Corte americana examinar os casos que detentos de Guantánamo levaram ao tribunal pedindo revisão. Então, durante a argumentação, apesar de os casos não tratarem de tortura, mas da possibilidade de se reverter a detenção, os juízes perguntaram sobre a tortura. Isso porque os detentos britânicos libertados graças à pressão internacional, contaram suas histórias no Reino Unido. Elas chegaram, através da internet, aos EUA e os juízes sabiam. Quando perguntaram sobre tortura, o advogado do governo disse: “Nós não torturamos.” Naquela semana, o programa “60 Minutes” exibiu as fotos de Abu Ghraib.

E isso claramente teve muito a ver com a decisão da Suprema Corte contra o presidente pela primeira vez na história num assunto envolvendo um inimigo, e acho que também teve a ver com a pressão maior vinda de muitos países: “Vocês não estão tratando nossos cidadãos de forma decente.” E Bush teve de promover mudanças.

Luis Fernando Silva Pinto — Você acha que os tribunais em geral, não só os constitucionais, têm consciência de que são hoje muito mais conhecidos pela sociedade?
David Cole — Sem dúvida. E acho que a dificuldade para os tribunais é que, para que um tribunal seja legítimo, ele tem de ser independente. Tem de ser independente dos poderes políticos, porque o que queremos é que eles fiscalizem os poderes.

Luis Fernando Silva Pinto — O executivo e o legislativo.
David Cole — O executivo e o legislativo, portanto é vital que sejam independentes. Também é vital que apliquem a lei. Nós não colocamos pessoas na função de juízes para que eles façam pesquisas de opinião e depois realizem o desejo da maioria em um determinado momento. Para isso temos políticos. Os juízes devem agir de forma independente e aplicar a lei, mas o que eu mostro no livro é que o direito constitucional precisa evoluir, e isso acontece através da interpretação jurídica.

Luis Fernando Silva Pinto — Será que o professor Cole vê paralelos em relação à maneira como a lei, os tribunais mais altos, a lei constitucional, estão mudando também no Brasil?

Luis Fernando Silva Pinto — No Brasil, houve uma mudança clara no nosso Supremo Tribunal Federal. Ele está muito mais transparente, muito mais ágil. Os ministros são conhecidos pelo povo e a importância do tribunal no momento atual do Brasil, nessa crise política grave, é central. Essa é a tendência atual em muitos países?
David Cole — Eu acho que sim. Acho que o Estado de direito, particularmente o papel do direito constitucional e o papel dos tribunais, é percebido como tendo importância crítica na era pós Segunda Guerra Mundial. Vemos isso na reforma constitucional dos países, no direito internacional, como no Tribunal Europeu de Direitos Humanos e no Tribunal de Justiça da União Europeia, que têm papéis cada vez mais importantes e firmes, e acho que é um reconhecimento de que…

A primeira grande onda foi substituir a monarquia e a autocracia pela democracia. Esse foi um avanço e tanto. E a democracia é boa para muitas coisas, mas não é boa para outras. Ela não protege bem as minorias, não protege bem os dissidentes, não protege bem os direitos dos acusados criminalmente e não é muito boa em se policiar. Então nós precisamos de alguma instituição que tenha independência e legitimidade para repreender os outros poderes.

E acho que ela é a separação dos poderes, o controle judicial, esse é o papel dos tribunais, e nós já vimos o papel da Suprema Corte americana ser fortalecido de forma significativa no último século. Desde a Segunda Guerra Mundial isso aconteceu na Europa e agora na América Latina. Acho que é um reconhecimento de que, sim, a democracia é um avanço, mas ela tem defeitos, e a melhor instituição que criamos para tentar fiscalizar os defeitos do processo democrático, seja a corrupção ou a tirania da maioria, são os tribunais.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!