Segunda Leitura

Filhos do crack: um problema difícil, mas que deve ser enfrentado

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

18 de junho de 2017, 8h00

Spacca
O uso das drogas vem aumentando progressivamente, fruto de causas sociais e psicológicas. Mas as drogas, como as pessoas, não são iguais. Umas causam danos mais graves do que outras. O crack está entre as primeiras.

Segundo o site da AbcMed, “o crack é uma mistura da pasta-base de cocaína refinada com bicarbonato de sódio e água. Muitas vezes a mistura é falsificada com o acréscimo de cimento, cal, querosene e acetona, para aumentar o seu volume. Quando aquecida, a mistura separa as substâncias líquidas das sólidas. As substâncias líquidas são então descartadas e as sólidas são convertidas na “pedra de crack” que, com a utilização de um cachimbo, é então fumada e absorvida pelo corpo em quase 100% do total ingerido”.[1]

O consumo cria um estado de euforia, ao qual se segue profunda depressão. A droga causa forte dependência física e, segundo Pereira e Jacoby, “os indivíduos sentem extrema necessidade de consumir a substância a ponto de abandonar gradativamente tudo o que é importante em sua vida, como: família, amigos, trabalho, vida social, estudos, a própria saúde, etc”.[2]

Os viciados perambulam pelas cidades em um triste espetáculo da degradação humana. Na maioria dos casos, são pessoas de poder aquisitivo e nível educacional baixo. Os dramas humanos se sucedem, sofrem os dependentes e também suas famílias. Nesta semana, em Sorocaba, SP, a mãe de uma adolescente dependente química acorrentou-a a um guarda-roupas, temendo que ela sofresse represálias de traficantes que a ameaçavam de morte por dívidas não pagas.[3]

Muitos tentam recuperar-se. Os que têm familiares com poder aquisitivo, em clínicas particulares. Os que se valem do SUS encontram em Itapira, SP, 315 vagas no Instituto Bairral de Psiquiatria, que atua em convênio com a Secretaria de Saúde.[4] Grupos de missionários, de origens diversas, fazem um importante trabalho de evangelização e assistência social.[5] Mas o exército de viciados é cada vez maior.

Evidentemente, há nisto tudo interesses econômicos vultosos. Na chamada Cracolândia, centro de reunião de viciados em São Paulo, a Polícia Civil constatou a existência de uma “Feira de Drogas”, com diversos tipos expostos em mesas localizadas em barracas, à disposição dos consumidores. A feira foi desfeita pela ação das autoridades, mas o comércio, claro, continuará em outros locais, enquanto houver interessados na compra.

Porém, o que ocorre na Cracolândia, ou em menor intensidade em centenas de outras cidades brasileiras, não é o tema deste artigo. Aqui o foco é mais restrito, confina-se em um único e importante aspecto: os filhos gerados pelas viciadas.

Pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde sobre o uso do crack revelou que “Mais da metade das usuárias já havia engravidado ao menos uma vez desde que iniciou o uso do crack/similares. Trata-se de achado preocupante devido às consequências importantes do consumo do crack durante a gestação sobre o desenvolvimento neurológico e intelectual das crianças expostas”.[6] Entre elas, 22,8% já haviam engravidado duas ou três vezes.

Segundo o médico Valter Curi Rodrigues, "As crianças desenvolvem síndrome de abstinência fetal. Elas se tornam viciadas nos entorpecentes consumidos pelas mães", garante. Isso significa que têm tremores contínuos e convulsão por falta da droga.[7] Tais efeitos ainda estão sob estudo, mas aponta-se a possibilidade de parte da droga passar para o bebê em formação na placenta, causando baixo crescimento e problemas psicológicos.

Pesquisa empírica nos Estados Unidos narra o caso de Clorissa Jones, que “descobriu gravidez de sete semanas na época em que injetava heroína e fumava crack. Seu filho nasceu dependente de metadona, droga que ela usou durante a gestação como tentativa de sair da heroína. Durante suas primeiras semanas de vida, Braxton teve crises de abstinência como tremores e hipersensibilidade”.[8]

Os chamados “filhos do crack”, além das dificuldades do nascimento com previsíveis problemas de saúde, arcarão com o ônus de não terem proteção familiar, inclusive porque dificilmente alguém se disporá a adotá-los. Segundo reportagem de Fábio Mazzitelli, “ muitos dos pretendentes cadastrados já põem como condição para aceitar a criança que a mãe não tenha histórico de envolvimento com a droga, que afeta o sistema nervoso central”.[9]

Além do problema dos afetados diretamente, pondera-se, em um segundo momento, a questão da sociedade, uma vez que uma criança criada nas ruas, sem família, com problemas de toda espécie, certamente desenvolverá atos antissociais como reação.

Partindo do pressuposto de que a gravidez de mulheres viciadas não é um problema só delas, mas também dos filhos que elas geram e da sociedade, a norte-americana Barbara Harris fundou em 1997, na Califórnia, uma instituição destinada a estimular jovens viciados a serem esterilizados, para tanto recebendo pagamento de US$ 300. O chamado “Project Prevention”[10] migrou para a Carolina do Norte e, após ter levado a esterilização a três mil e quinhentos pessoas até 2010, entrou na Inglaterra, onde teve forte disseminação.[11]

Em sentido oposto, o deputado Francisco Floriano (DEM/RJ) idealizou Projeto de Lei, instituindo um “Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Gestantes Dependentes Químicas (Paege), de caráter intersetorial, integrante da Política Nacional de Assistência Social, que, no âmbito do SUS integra a proteção social especial e consiste no acolhimento, na atenção e recuperação de gestantes dependentes químicas em situação de ameaça a vida ou violação de direitos…”[12]

Portanto, o que está em jogo é saber qual solução deve ser dada ao problema da gravidez das viciadas no crack. Desde logo afasta-se da discussão a possibilidade de interromper a gravidez, quando já existente. Dispensam-se também propostas embaladas em frases de efeito, que já se revelaram impraticáveis (p. ex., “é preciso criar políticas públicas, abrindo-se o diálogo entre as fontes em discussão interdisciplinar, etc. etc.”). As opções, no mundo real, ficam confinadas a três:

  1. Não tomar nenhuma providência, porque ter ou não filhos é uma opção que diz respeito única e exclusivamente à pessoa, configurando grave ataque à sua liberdade pessoal intervir na sua decisão;
  2. Estimular, de todas as formas possíveis, que viciadas venham a engravidar, incluindo incentivo financeiro para que permitam medidas temporárias ou permanentes que impeçam a gravidez;
  3. Aceitar a possibilidade de o Estado, em caso de reiteradas concepções por parte de pessoa viciada, promover o processo de laqueadura, impedindo-a de engravidar novamente, tendo em vista que o fato traz ao futuro filho o ônus de nascer com problemas de saúde e de não ter assistência e proteção familiar.

Qualquer que seja a opção escolhida, todos nós, e também nossos descendentes, sofreremos as consequências. Todas têm boas justificativas a sustentá-las. Qual a melhor solução?

 


[2] PEREIRA, Paulo Henrique Pacheco e JACOBY Alessandra. O CRACK E SUAS CONSEQUÊNCIAS: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA. In: https://psicologia.faccat.br/blog/wp-content/uploads/2013/07/Paulo-Henrique-Pacheco-Pereira.pdf, acesso 15/6/2017.

[4] O Estado De São Paulo, Metrópole, A-21.

[5] Folha de São Paulo, Cotidiano, B-3.

[6] Perfil dos Usuários de Crack e/ou Similares no Brasil", Ministério da Justiça em parceria com o Ministério da Saúde. In: http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/senad/senad_pesq_crack_total_17set2013.pdf, acesso em 13/6/2017.

[9] sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,interessados-em-adotar-rejeitam-filhos-do-crack-imp-,746671, acesso em 17/6/2017.

[10] http://www.projectprevention.org/, acesso em 17/6/2017.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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