Ambiente Jurídico

A língua portuguesa como patrimônio cultural do Brasil

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17 de junho de 2017, 15h10

Spacca
Do “Porto Seguro da Ilha de Vera Cruz”, numa sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500, o escrivão Pero Vaz de Caminha assim começava sua missiva dirigida ao Rei de Portugal, dando conta da nova descoberta feita pelas naus lusitanas, que procuravam as Índias:

Senhor: Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar — o saiba pior que todos fazer. Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para aformosear nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.

O pioneiro texto sobre o Brasil foi lavrado na língua portuguesa, que até os dias atuais, passados mais de cinco séculos, continua sendo a língua oficial do país, ou vernácula, hoje introjetada de contribuições linguísticas de outros povos formadores da nação brasileira, a exemplo dos indígenas e africanos.

Foi em português, por exemplo, que Manoel da Nóbrega, Alvarenga Peixoto, Cláudio Manoel da Costa, Pedro II, Castro Alves, Rui Barbosa, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Chico Xavier e Ferreira Gullar, entre tantos outros brasileiros ilustres, deixaram registradas suas produções, entremeadas por palavras como amor, natureza, gratidão, coragem, lealdade, justiça, esperança, honradez, caridade, sabedoria e paciência, todas integrantes do nosso léxico. É majoritariamente em português que brotam as primeiras palavras pronunciadas pelas crianças e que surgem os sussurros derradeiros de nossos entes queridos. Enfim, da alvorada ao crepúsculo, é a língua portuguesa o veículo básico para a comunicação entre todos nós, brasileiros[1].

Diante de tais notas introdutórias, lançamos duas indagações para reflexão: a) a língua portuguesa poderia ser considerada como integrante do patrimônio cultural brasileiro ?; b) A utilização de estrangeirismos como coffe-break, workshop e happy-hour, tão comuns, sobretudo em programações de eventos oficiais das mais diversas repartições públicas brasileiras, e a oferta, por bancos oficiais, de serviços como blackcarde home bakingseria uma prática lícita ou, ao menos, recomendável a nós, brasileiros ?

Quanto à primeira questão, por primeiro é preciso ressaltar que o ordenamento jurídico brasileiro protege não só os bens culturais materiais (como edificações, documentos e estátuas), como também os imateriais, ou intangíveis, a exemplo dos modos de ser, fazer, além das formas de expressão, sejam elas corporais, escritas ou verbais.

Logo, enquanto genuína forma de expressão do povo brasileiro, a língua portuguesa, para além de deter o caráter de antiguidade, posto que presente em nossa realidade desde o descobrimento do país, reúne ainda outros elementos distintivos que a erigem a elemento identificador de nossa nação, a exemplo da singularidade, da abrangência territorial e da unidade do uso, afinal de contas ela é plenamente inteligível de norte a sul do imenso país, apesar das especificidades e da grande diversidade dos chamados “sotaques” regionais.

Em verdade, a língua matriarca de um povo – em âmbito de todas as culturas – é um dos signos maiores da identidade de uma gente e de seus traços. Não se imagina Shakespeare falando latim, nem tampouco Virgílio escrevendo inglês.

Povo que se valoriza, mantém e cultua sua língua.

Tanto isso é fato que, em 1999, a UNESCO instituiu o dia 21 de fevereiro como o Dia Internacional da Língua Materna, a fim de alertar para a necessidade de proteção das tradições linguísticas fundamentais dos diferentes povos do planeta, posto que a língua constitui o vetor fundamental de comunicação entre os indivíduos e representa uma parte essencial do patrimônio cultural de um país.

Por tudo isso, pensamos que é hora do povo brasileiro despertar maior atenção para sua língua-mãe e refletir sobre medidas para sua salvaguarda, o que não implica, obviamente, em negação ao direito do uso de outros falares tradicionais existentes no país, como já observamos.

Em termos normativos, importante lembrar que a Constituição Federal estabelece que a língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil (art. 13). Conquanto sintético, o dispositivo revela um comando normativo absolutamente claro no sentido de determinar que outras línguas não sejam utilizadas para a expressão oficial de tudo o que ocorre no território brasileiro envolvendo o Estado e os cidadãos[2].

Conforme o abalizado ensinamento de José Carlos Barbosa Moreira[3]:

Ao idioma oficial deve assegurar-se, em regra, prioridade sobre todos os outros. A qualificação de ‘oficial” implica por força posição de supremacia e, por conseguinte, de preferência. O emprego de idioma distinto há de fundar-se em razão especial. O do português dispensa tal justificação.

Que os órgãos públicos, ao se comunicarem com a população em geral, estão obrigados a empregar o idioma oficial é ponto que prescinde de demonstração. Pode-se afirmar que essa é a ‘consequencia mínima’ do fato de existir uma língua a que a Constituição dá o status de oficial. Pensar de outra meneira importaria negar toda e qualquer relevância ao art. 13 – riscá-lo, pura e simplesmente, do texto constitucional.

Nessa toada, em âmbito jurisdicional, segundo o Código de Processo Civil vigente, em todos os atos e termos do processo é obrigatório o uso da língua portuguesa (artigo 192).

Na formatação dos textos normativos do país, a fim de manter o apuro linguístico e obter precisão na redação, há determinação no sentido de se escolher termos que tenham o mesmo sentido e significado na maior parte do território nacional, evitando o uso de expressões locais ou regionais (Lei Complementar 95/1998, artigo 11, II, d), o que implicitamente veda o uso de expressões estrangeiras, por óbvio e como previsto em nível constitucional (artigo 13).

Nas relações de consumo, toda oferta e apresentação sobre produtos e serviços devem ser feitas em língua nacional (artigo 31 da Lei 8.078/90).

Logo, não encontramos dificuldades para concluir que a língua portuguesa é bem cultural do país, além de estar expressamente protegida em nível constitucional e legal, trazendo resposta conclusiva sobre a primeira indagação acima feita. Ou seja, temos comandos normativos que implicam na imposição do uso do vernáculo, como regra.

Quanto à segunda questão, para além do evidente desdobramento conclusivo acerca da primeira assertiva, que é de ordem normativa, entendemos ser lamentável, sob a ótica antropológica, que o Brasil renda-se a estrangeirismos como o halloween (em vez de conhecer e cultuar elementos da cultura nacional, a exemplo do Saci-Pererê, Boitatá e Curupira) e valer-se de palavras e expressões “enlatadas”, como as acima mencionadas, pronunciadas, não raras vezes, automatamente, sem se ter sequer consciência sobre o seu real significado.

Criticando o exagero das expressões e termos estrangeiros em nosso meio, o Professor Eduardo Martins, em seu livro intitulado “Com todas as letras”, provoca com perspicácia[4]: “a livraria chama-se Book in the Box. Ao lado fica sorveteria I Can’tBelieveit’sYogurt. Na frente, poderia haver uma loja anunciando: Sale! 30% off. Responda, então, a este teste: você está em Nova York, Los Angeles, Londres ou Belfast? A alternativa correta é: nenhuma das anteriores. Você está mesmo em São Paulo”.

De nossa parte pensamos que a resposta poderia ser a seguinte: “você está no Brasil”, tamanha a presença do estrangeirismo em nosso país, mormente no âmbito das relações comerciais.

Em Minas Gerais, a Lei 12.701, de 23 de dezembro de 1997, dispõe sobre a valorização da língua portuguesa no Estado, e estabelece regras que vedam o uso de expressões estrangeiras nas comunicações oficiais da administração pública, conforme se vê abaixo:

Art. 1º – O Estado valorizará e estimulará o uso da língua portuguesa em seu território, nos termos desta lei.

Art. 2º – Fica proibido o uso de termos e expressões em língua estrangeira nos textos dos documentos oficiais dos órgãos e entidades da administração direta e indireta do Estado.

Parágrafo único – Na falta de equivalente em português, poderá ser usado o termo ou a expressão estrangeira, desde que seguidos de sua tradução.

Art. 3º – O disposto no artigo anterior aplica-se também a:

I – matéria publicada em órgão oficial de comunicação;

II – matéria publicitária ou informativa paga parcial ou integralmente pelo Estado;

III – nome de próprio público;

IV – placa de identificação de obra ou serviço do Estado ou de que ele participe;

V – texto de livro, jornal, revista ou outra publicação, de iniciativa pública.

A norma em comento traz regramentos importantes para se exigir o uso da língua portuguesa por todos os órgãos integrantes da administração pública direta e indireta do Estado, de forma a contribuir para a manutenção e valorização do vernáculo enquanto bem cultural imaterial do Brasil e do povo das alterosas.

Segundo leciona, com absoluta propriedade, Inês Virgínia Prado Soares[5]:

Por meio da língua portuguesa, a grande maioria dos brasileiros tem preservada sua memória e sua identidade. A hegemonia da língua portuguesa serve de base unificadora da nossa cultura e garante a fruição de outros direitos fundamentais. Além de ser o idioma nacional, por força da Constituição, também assume a posição de língua oficial. No art. 13, caput, do texto constitucional é estabelecido que a língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil. Pode-se dizer que a língua portuguesa, como idioma oficial, tem prioridade sobre todos os outros idiomas e falares e no território nacional, o português deve ser considerado o i instrumento de comunicação por excelência, devendo a comunicação ser feita prioritariamente nessa língua.

Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário devem promover e proteger, com a colaboração da comunidade, o bem cultural língua portuguesa, por meio de instrumentos nominados e outras formas de acautelamento e preservação.

Enfim, esperamos que as reflexões acima despertem o interesse de outros cidadãos e operadores do direito a fim de que a língua portuguesa possa ser objeto de maior atenção e de medidas que assegurem a sua utilização hígida, enquanto idioma oficial do Brasil e base unificadora da identidade do país.

[1] Existem outras línguas e falares típicos do Brasil que igualmente podem e devem ser protegidos como expressão do nosso multiculturalismo, mas sem o caráter de oficialidade e obrigatoriedade. Registre-se que o Decreto 7.387/2010 instituiu o Inventário Nacional da Diversidade Linguística, sob gestão do Ministério da Cultura, como instrumento de identificação, documentação, reconhecimento e valorização das línguas portadoras de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.

[2] Sobre o dispositivo, já decidiu o STF: A petição com que impetrado o habeas corpus deve ser redigida em português, sob pena de não conhecimento do writ constitucional (CPC, artigo 156, c/c CPP, artigo 3º), eis que o conteúdo dessa peça processual deve ser acessível a todos, sendo irrelevante, para esse efeito, que o juiz da causa conheça, eventualmente, o idioma estrangeiro utilizado pelo impetrante. A imprescindibilidade do uso do idioma nacional nos atos processuais, além de corresponder a uma exigência que decorre de razões vinculadas à própria soberania nacional, constitui projeção concretizadora da norma inscrita no artigo 13, caput, da Carta Federal, que proclama ser a língua portuguesa "o idioma oficial da República Federativa do Brasil”. [HC 72.391 QO, Rel. Min. Celso de Mello, j. 8-3-1995, P, DJ de 17-3-1995.

[3] A ação civil pública e a Língua Portuguesa. P. 306-307. In: MILARÉ, Édis. Ação civil pública. Lei 7.347/85 – 15 anos. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2001.

[4] MARTINS, Eduardo. Com todas as letras. São Paulo: Editora Moderna, 1999. p. 145.

[5] Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro. Belo Horizonte: Fórum. 2009. p. 178

Autores

  • Brave

    é promotor de Justiça em Minas Gerais, especialista em Direito Ambiental, secretário da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente, professor de Direito do Patrimônio Cultural, integrante da Comissão de Memória Institucional do Conselho Nacional do Ministério Público e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos) Brasil.

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