Opinião

O problema do "calendário especial" na tramitação das PECs

Autor

  • Victor Aguiar Jardim de Amorim

    é doutorando em Direito (UniCEUB); mestre em Direito Constitucional (IDP); professor dos cursos de pós-graduação do IGD ILB e IDP; advogado e consultor jurídico especializado em licitações e contratos.

16 de junho de 2017, 6h46

Quase que diariamente são veiculadas notícias acerca da aprovação no Senado Federal e na Câmara dos Deputados de “calendário especial” para votação de determinada proposta de emenda à Constituição. É o caso da recentíssima Emenda Constitucional 96, decorrente da chamada PEC da Vaquejada (PEC 50/2016).

Mas, afinal, do que se trata o famigerado “calendário especial”? Trata-se, basicamente, de um requerimento parlamentar aprovado em Plenário que afasta a necessidade de interstício mínimo entre um turno e outro de votação no procedimento de tramitação das propostas de emenda à Constituição.

De se notar que a Constituição Federal, no parágrafo 2º do artigo 60, apenas estabelece a necessidade de a PEC ser “discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros”. Ou seja, foi estabelecida expressamente a imprescindibilidade de discussão e votação em dois turnos, contudo, a Carta Magna não especificou de forma objetiva qual seria o lapso de tempo mínimo compreendidos entre os dois turnos, ficando a matéria sujeita aos regimentos internos das Casas Legislativas. No Senado Federal, o interstício previsto é de, no mínimo, cinco dias úteis (artigo 362 do RISF); e na Câmara dos Deputados, de cinco sessões (artigo 202, parágrafo 6º, do RICD).

Assim, o afastamento das disposições regimentais por parte das próprias Casas é visto com reservas e críticas por considerável gama de estudiosos do tema.

Contudo, o presente artigo, destoando de tal perspectiva, tem por objetivo fazer uma breve incursão teórica da natureza jurídica das normas regimentais[1] e apresentar considerações acerca de seu caráter dinâmico e flexível diante da necessidade de adequações pontuais e oportunas ao fluxo do processo político de deliberação parlamentar.

Por desempenhar função de cunho essencial para a formação do Estado moderno, o Poder Legislativo sempre se ressentiu da necessidade de observância de determinado procedimento para o desenvolvimento direto ou indireto de atividades legiferantes.

O fenômeno se torna ainda mais latente a partir dos eventos de independência do Parlamento, quando são estabelecidas as bases para a institucionalização da função legislativa, considerando-o como centro do poder político. O marco histórico de tal transformação é a Revolução Gloriosa, ocorrida em 1689 na Inglaterra[2], quando o Legislativo evidencia-se como um poder praticamente soberano[3]. Por possuir status de verdadeiro poder soberano, convencionou-se que competiria ao próprio Parlamento estabelecer os contornos e eventuais limites a respeito da autonomia parlamentar no que tange, principalmente, à liberdade do uso da palavra, ao funcionamento interno, à disciplina dos procedimentos e às regras de debate.

No curso do século XVIII, o Direito continental europeu é extremamente influenciado sobre as bases da “autonomia parlamentar” inglesa. Em França, na oportunidade dos debates iniciais da Assembleia Nacional Constituinte no ano de 1789, trava-se a discussão a respeito da necessidade de ação de um regulamento para assegurar o bom andamento dos trabalhos legislativos, tendo em vista a experiência das tumultuadas e improdutivas sessões anteriores. Dessa forma, em 29 de julho de 1789, é aprovado o regimento definitivo da Assembleia Constituinte, estabelecendo-se regras essenciais de funcionamento, notadamente os trâmites internos, a ordem dos debates e a concessão da palavra, em clara influência da prática parlamentar inglesa.

É exatamente na ausência de distinção do “direito parlamentar” em relação às normas gerais que desponta a diferenciação do processo de incorporação da experiência inglesa por parte dos alemães em relação ao que se passou em França em fins do século XVIII.

Foi precursora a doutrina alemã no que tange à investigação a respeito da natureza dos regimentos internos, sendo pioneiro nesse intento Paul Laband (1838-1918), segundo o qual, o regimento seria um “estatuto autônomo”, expressão de um direito estatutário similar ao produzido no âmbito das corporações, obrigando, assim, apenas os membros da respectiva Câmara[4].

A seu turno, inspirados na tradição inglesa, os juspublicistas alemães Rudolf von Gneist (1816-1895) e Julius Hatschek (1872-1926) propõem-se a assegurar a autonomia de ação do Parlamento, enaltecendo a autolegitimação do Poder Legislativo.

Na França, Maurice Hauriou (1856-1929), que também se notabilizou por distinguir o Estado da sociedade, ressaltou a natureza consuetudinária dos regimentos das Casas Legislativas, que não passam de simples acordos e práticas parlamentares, “cuyo cumplimento por parte de los integrantes de las Cámaras se reserva a estas últimas a través de sus proprios instrumentos, sin que puedan intervir al respecto los jueces, los cuales no serían competentes para conocer de ellos[5].

Léon Duguit, na obra Manuel de Droit Constitutionnel, cuja primeira edição circulou em 1921, define o regimento como um conjunto de disposições que determinam, sistemicamente, a ordem e método de trabalho de cada Casa Legislativa, tratando-se, a seu ver, de uma espécie de “direito interno”[6].

De se notar que os juspublicistas alemães e franceses, até o início do século XX, admitiam a autolegitimação dos Parlamentos tendo por pressuposto separação entre Estado e sociedade, de modo que seria a Câmara um órgão da sociedade e os parlamentares membros livres e iguais de uma associação[7].

Objetivando romper com tal entendimento, Georg Jellinek (1851-1911), em sua obra System der subjektiven öffentlichen Rechte (1892), assevera que o Parlamento constitui-se como um órgão do Estado, de forma que o direito parlamentar possui natureza estatal, cuja inobservância ou descumprimento não representaria uma violação de um direito subjetivo, mas uma lesão ao ordenamento objetivo do Estado[8].

O fim da Segunda Guerra Mundial e o advento do Estado Democrático de Direito no continente europeu, caracterizado pela valorização e reconhecimento da Constituição como norma suprema do ordenamento jurídico (Estado Constitucional), parece por termo à corrente de pensamento, gestada sob o pálio do Estado Liberal, tendente a sustentar uma “técnica de liberdade do Parlamento”, atribuindo-lhe ares de soberania para fazer frente aos demais Poderes[9]. Diante da emergência do Estado Constitucional, parece restar superada a ideia do regimento como fonte primária do direito parlamentar, porquanto, o eixo e o centro do ordenamento jurídico passa a ser ocupado, em caráter indubitável e absoluto, pela Constituição.

Destarte, dois aspectos de extrema importância reorientam as teorias a respeito da natureza dos regimentos, em especial àquelas orientadas pelos primados do Estado Liberal e a tradição do parlamentarismo inglês: a) as normas de direito parlamentar ostentam juridicidade, porquanto emanadas de um órgão pertencente ao Estado; b) a “constitucionalização” do direito parlamentar.

A partir do “paradigma” inaugurado com o Estado Constitucional, parte considerável dos juristas que se debruçaram sobre o assunto passam a defender a plena integração das normas regimentais ao ordenamento jurídico e, enquanto regras de Direito Positivo dotadas de previsão constitucional, a sua obrigatória observância[10] por todos os seus destinatários, não apenas os internos (os parlamentares), mas todo e qualquer cidadão ou autoridade.

Diante da expansão da regulamentação pelo próprio texto constitucional dos aspectos procedimentos e da rotina de funcionamento dos Poderes, é mister buscar empreender uma análise quanto à tensão entre uma disciplina constitucional mais verticalizada a respeito da matéria legislativa e a dinamicidade política inerente à lógica da engrenagem parlamentar.

Trata-se, portanto, de tentativa de estabelecimento ou conformação das balizas atinentes à autonomia parlamentar no contexto do atual paradigma do Estado Democrático de Direito, no qual está implícita a superação do ideal liberal de “soberania” de desígnios do Parlamento.

Na concepção do jurista italiano Andrea Manzella, a Constituição estabelece em seu conteúdo um quadro de atribuições e princípios procedimentais de natureza elementar, conferindo, assim, um espaço ao poder autonormativo do Poder Legislativo de colmatar a disciplina referente ao procedimento e funcionamento interno em atenção à dinâmica e vicissitudes do funcionamento parlamentar[11].

Leon Matinez Elipe[12] sustenta que a crescente rigidez oriunda da regulação constitucional do direito parlamentar poderá ser resolvida a partir da própria “espontaneidade e dinamicidade” do Parlamento, porquanto a “dinamicidad del ordenamiento jurídico parlamentario que mitigará las rigideces derivadas de los textos escritos, acomodando sus normas a la realidad social del momento e, incluso, si fuera preciso, modificándolos o dejándolos obsoletos[13].

O entendimento a respeito da rigidez constitucional em torno do direito parlamentar supostamente calcado na supremacia da Constituição conduz, de fato, à acentuada limitação do Poder Legislativo a respeito da autonomia para disciplinar internamente sobre as minúcias do procedimento de formação das leis, levando em conta os aspectos da dinamicidade inerente aos processos políticos.

Considerando a atual quadra de desenvolvimento do constitucionalismo contemporâneo em países que adotam textos constitucionais prolixos e analíticos — o que já implica em acentuada “constitucionalização do direito parlamentar” —, admitir a ampliação da materialidade constitucional das normas regimental é relegar a suposta autonomia do Parlamento ao campo da história.

É exatamente nesse ponto que reside a crítica à postura de conferir legitimidade ao Poder Judiciário para atribuir a “materialidade constitucional” à determinadas normas regimentais. De se notar que, nesse contexto, existe uma superposição de Poderes, e não uma relação harmônica ou de check and balances, afinal, ainda que haja consenso (o que envolve a minoria), a manifestação política estaria sendo substituída pela apreciação jurídica de um pequeno número de juízes.

Em consequência, se observa a plena juridicialização do processo legislativo, retirando do Parlamento, sob a alegação de estabelecimento da segurança jurídica e da criação de instrumentos de defesa da minoria, a possibilidade de disciplinar, em última instância, os espaços deliberativos de colmatação do procedimento legiferante conferido pela própria Constituição[14].

De fato, a dinamicidade inerente ao funcionamento do Parlamento deve ser compatibilizada com o paradigma do Estado Democrático de Direito, evitando-se a rigidez dos regimentos internos “constitucionalizados” no sentido de dificultar — por não dizer inviabilizar — as adequações pontuais e oportunas à conjuntura política que venham, inclusive, a implicar na alteração ou afastamento circunstancial de determinada norma regimental.

Há que se conferir a devida apreciação e qualificação à suposta “inobservância” pontual das normas regimentais, porquanto a condução procedimental propriamente dita está submetida aos mesmos pressupostos da materialidade da função legiferante: respeito aos limites estabelecidos na Constituição e a decisão majoritária como critério democrático por excelência. Não é dado atribuir à alteração circunstancial do regimento interno os mesmos efeitos de violação à Constituição e, também, ignorar a diferença entre uma minoria “vencida” e uma minoria “sufocada”.

A inobservância ou afastamento pontual de uma regra regimental (que não seja reprodução do texto constitucional), a partir de um consenso formado no seio da Casa Legislativa tendente a viabilizar a tramitação de determinado projeto de lei, não enseja, necessariamente, um desrespeito à Constituição.

Como exemplo que materializa tal hipótese — e, ainda, atende aos reclamos de “normatização” para garantia de “segurança jurídica” —, tem-se a previsão contida no artigo 412, III, do Regimento Interno do Senado Federal. Tal dispositivo, cuja redação foi estabelecida pela Resolução 35/2006, estabelece a possibilidade de prevalência de acordo de líderes sobre norma regimental desde que aprovado, mediante voto nominal, pela unanimidade dos senadores presentes na sessão, resguardado o quórum mínimo de três quintos dos votos dos membros da Casa.

De se destacar que o regimento interno do Senado Federal estabelece, normativamente, a possibilidade de afastamento circunstancial de norma regimental, positivando, assim, o papel do consenso e a própria dinamicidade do funcionamento do Parlamento.

Note-se que a aplicação do inciso III do artigo 412 exige o consenso, porquanto o eventual requerimento para afastamento de norma regimental deverá ser aprovado pela unanimidade dos parlamentares presentes na sessão, desde que presente, no mínimo, três quintos dos membros da Casa. O mencionado dispositivo é exatamente o fundamento do “calendário especial” na tramitação de PECs.

À guisa de conclusão, vale lançar mão de instigante observação atribuída ao jurista Nelson Azevedo Jobim, deputado na Constituinte de 1987-1988 e ex-ministro do STF: “Só existe Regimento Interno onde não existe consenso”. Logo, considerando o regimento como “ordenamento interno” e dinâmico por excelência, diante de eventual consenso no sentido de se afastar um regra regimental, não haveria propriamente ofensa à Constituição, mas um adequado exercício da autonomia parlamentar conduzido por fatores políticos que lhe são inerentes.


[1] Para mais detalhes acerca da evolução histórica da compreensão da natureza jurídica das normas regimentais, vide: AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. O caráter dinâmico dos regimentos internos das casas legislativas. Revista de Informação Legislativa, v. 52, n. 208, p. 341-357, out./dez. 2015.
[2] ÁLVAREZ, Elviro Aranda. Los actos parlamentarios no normativos y su control jurisdiccional. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1998, p. 45-48.
[3] DE LOLME, Jean Louis. Constitución de Inglaterra. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1992, p. 141. Ainda nesse sentido: GARCÍA-PELAYO, Manuel. Derecho Constitucional comparado. Madrid: Alianza Editorial, 1991, p. 250-251.
[4] MARÍN, Tomás Vidal. Los Reglamentos de las Asambleas Legislativas. Madrid: Congreso de los Diputados, 2005, p. 58.
[5] MARÍN, ob. cit., p. 57.
[6] DUGUIT, Léon. Manuel de droit constitutionnel: théorie gènèrale de l´État. 4. ed. Paris: E. de Boccard Éditeur, 1923, p. 430.
[7] ÁLVAREZ, ob. cit., p. 66.
[8] JELLINEK, Georg. System der subjektiven öffentlichen Rechte. Mohr: Freiburg im Breisgau, 1892. Disponível em: https://archive.org/stream/systemdersubjek00jellgoog#page/n9/mode/2up
[9] ÁLVAREZ, ob. cit., p. 57.
[10] A respeito da vinculatividade normativa dos regimentos internos das Casas Legislativas, bem como de sua parametricidade para fins de controle de constitucionalidade, vide: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2008, p. 922-923; BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. Processo Legislativo e Democracia. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 173-192; BERNARDES JÚNIOR, José Alcione. O controle jurisdicional do processo legislativo. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 110-111.
[11] MARÍN, ob. cit., p. 44.
[12] MARTÍNEZ ELIPE, Leon. Las fuentes del Derecho Parlamentario. Las Cortes Generales, Madri, vol. 3, p. 1573-1632, 1987.
[13] MARÍN, ob. cit., p. 46.
[14] MARÍN, ob. cit., p. 87-88.

Autores

  • Brave

    é advogado especialista em Direito Público, mestre em Direito Constitucional e professor de pós-graduação do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e do Instituto Legislativo Brasileiro (ILB).

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