Crítica ao neoconstitucionalismo

"Em temas morais, princípios nem sempre são suficientes para decidir"

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28 de agosto de 2018, 14h40

Autor lança livro às 18h30 desta quinta-feira (30/8) em São Paulo.

Os princípios constitucionais nem sempre são suficientes para a tomada de decisão em temas morais de grande indagação, pois não existem verdades absolutas no campo moral. É o que sustenta o desembargador federal Paulo Gustavo Guedes Fontes, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (SP e MS), em Neoconstitucionalismo e Verdade – Limites democráticos da jurisdição constitucional (editora Lumen Juris), livro em que faz uma análise original e erudita sobre o neoconstitucionalismo e a jurisdição constitucional moderna.

Na obra, que é resultado de sua tese de doutorado em Direito do Estado na USP, Paulo Fontes resgata conceitos da filosofia moral, dialogando sempre com diversos filósofos da área e juristas, clássicos e modernos, como Alexy, Dworkin, Ferrajoli, Zagrebelsky e Waldron, aborda a teoria constitucional e faz considerações próprias sobre o neoconstitucionalismo, procurando saber se existem verdades no campo moral e questionando, inclusive, a legitimidade do juiz constitucional para dirimir questões morais de grande indagação.

O desembargador, que também é professor de Direito Constitucional do Instituto de Direito Público de São Paulo (IDP-SP), ainda compartilha das críticas que vêm sendo dirigidas à ponderação de princípios ou valores.

Nas questões que envolvam os direitos econômicos e sociais, por exemplo, afirma que, em certos casos, as concepções sobre a igualdade e a liberdade são incomensuráveis e remetem, em última análise, a adesões e preferências, ou mesmo a visões de mundo e concepções políticas mais amplas.

O autor cita ainda algumas dificuldades que adviriam do que o próprio Alexy denomina de “incerteza sobre as premissas fáticas”. “Poderíamos invocar a polêmica em torno do aborto; cientificamente, não saberíamos dizer qual o marco inicial da vida humana. Poderíamos também invocar fatos mais complexos, de difícil avaliação por sua amplitude sociológica, como os benefícios que podem advir de uma política de ações afirmativas. Seriam exemplos possíveis de incerteza quanto a premissas fáticas. As incertezas em questão estão muito ligadas a premissas propriamente valorativas”, sustenta.

O livro Neoconstitucionalismo e Verdade – Limites democráticos da jurisdição constitucional será lançado em São Paulo nesta quinta-feira (30/8), às 18h30, na Livraria da Vila da alameda Lorena, 1.731, bairro Jardim Paulista.

Leia a entrevista com o desembargador:

ConJur — O que vem a ser o neoconstitucionalismo, tema central da obra?
Paulo Fontes —
A própria definição do neoconstitucionalismo já é polêmica. Alguns autores afirmam que ele não existe. Mas penso que, independentemente de se assentir ou não ao neoconstitucionalismo, e eu próprio tenho uma postura crítica, ele é uma realidade como corrente do pensamento constitucional moderno e também como tendência jurisprudencial. Suas raízes repousam sobre algumas características: o advento da Constituição rígida, superior às demais normas do ordenamento jurídico, o advento do controle de constitucionalidade realizado por um órgão judicial ou de natureza jurisdicional e o caráter principiológico das constituições modernas, em que os chamados princípios constitucionais têm grande importância. Poder-se-ia dizer ainda que o neoconstitucionalismo advoga uma reaproximação entre o Direito e a moral que seria propiciada pelos princípios constitucionais e, por fim, que essa corrente confere grande importância e alcance ao papel da corte constitucional nas democracias modernas.

ConJur — Esse conceito tem vertentes?
Paulo Fontes —
Sim, essa concepção pode comportar variações. Luigi Ferrajoli, por exemplo, exalta as possibilidades do novo Estado constitucional, mas ao mesmo tempo adverte para seus riscos. Também Luis Pietro Sanchís defende o que chama de “constitucionalismo forte”, que corresponderia ao neoconstitucionalismo, mas também exprime o receio de que a supremacia da Constituição se transforme pura e simplesmente em supremacia do Judiciário.

ConJur— O título também menciona a palavra verdade. Existem verdades no campo moral?
Paulo Fontes —
Essa é uma grande questão da filosofia moral. Existem correntes para as quais existem, sim, verdades morais e respostas corretas para os problemas morais; seria basicamente o realismo ou objetivismo moral. As religiões também em geral adotam uma forma de objetivismo moral. Para outras correntes, geralmente agrupadas sob o nome de ceticismo ou relativismo moral, ou ainda não cognitivismo, não existem essas verdades ou pelo menos elas não “estão no mundo”. Dependeriam da época, da história, da sociedade de que se trata e até da subjetividade dos indivíduos. Em se tratando de valores morais, não haveria o certo e o errado, mas preferências e atitudes diversas.

ConJur — Qual posição o senhor defende?
Paulo Fontes —
Eu rejeito o objetivismo ou realismo moral. Defendo, por exemplo, que não há uma verdade objetiva sobre o aborto ou a eutanásia, um certo ou errado absoluto para essas questões. Ao mesmo tempo, admito que em certa medida pode haver, sim, respostas corretas em muitos temas e questões morais, principalmente quando aparecem em casos concretos com muitas particularidades e condicionantes. Para mim, na linha de Richard Rorty, essas respostas, não corretas, mas melhores que as outras, adviriam da própria história do homem, do desenvolvimento das ideias e das instituições, das convenções.

Por isso um 'relativismo ou não cognitivismo moderado'. Admite-se em certa medida a existência de respostas corretas no campo moral, mas não que essas respostas existam em todos os temas, sobretudo naqueles mais abstratos, que vão espelhar escolhas valorativas difíceis de serem confirmadas ou rejeitadas de forma racional. É certo torturar um criminoso para evitar um assalto no dia seguinte? E para evitar a detonação de uma bomba atômica? Rorty assevera que quem acha que existe uma resposta correta para uma questão dessas ainda é um teólogo!

ConJur — De que forma relaciona o neoconstitucionalismo com a filosofia moral?
Paulo Fontes —
Existe uma relação muito próxima entre as correntes da filosofia do direito e as correntes da filosofia moral, especialmente no campo da metaética. O jusnaturalismo, por exemplo, ao acreditar que existe um “justo” objetivo, para além do direito positivo, de alguma forma alberga o objetivismo moral. Já alguns autores positivistas são explícitos em adotar o relativismo moral. Kelsen chega a afirmar que o relativismo moral é a base da sua teoria pura do direito; ele diz que se houvesse verdades morais o direito seria desnecessário.

Tentei no livro demonstrar que o neoconstitucionalismo também adota de certo modo uma ética objetivista. Ao sustentar uma reaproximação entre o Direito e a moral, propiciada, como diria Alexy, pelo caráter aberto dos princípios constitucionais, e ao erigir esses mesmos princípios em principais parâmetros de decisão, penso que esses autores estão admitindo que podemos encontrar respostas certas para questões morais às vezes de grande indagação e complexidade. Isso me parece muito claro na obra de Ronald Dworkin e também em autores como Robert Alexy e Gustavo Zagrebelsky. Como penso que a moral ou mesmo os princípios constitucionais não conseguem fornecer sempre essas repostas, derivo daí algumas posições mais restritivas sobre as possibilidades da jurisdição constitucional.

ConJur — Como conclui que princípios constitucionais são insuficientes para a tomada de decisões em temas de cunho moral, como o aborto ou a eutanásia?
Paulo Fontes —
Não afirmo que os princípios constitucionais são “sempre” insuficientes. Eles contêm uma carga moral ou axiológica elevada e a atividade jurisdicional pode incluir e quase sempre inclui um raciocínio moral. Concordo com muitas, talvez a maior parte das decisões do Supremo baseadas em princípios.

O que afirmo, justamente, é que nem sempre os princípios são capazes de fornecer uma resposta correta para todos os temas que cheguem à corte constitucional. Não é porque um tema é levado à corte, que tem de obter uma resposta substantiva. A meu ver a corte pode reconhecer a insuficiência normativa da Constituição sobre determinado tema e deixar a decisão para o legislador ou para o povo através de mecanismos diretos de participação. Zagrebelsky, que é um defensor do 'direito por princípios' e, portanto, pode ser considerado um neoconstitucionalista, defende que a corte suprema deixe um espaço importante para a atividade legislativa, sob pena de asfixiar a democracia. Se os princípios contêm todas as significações, todas as respostas devem vir da corte constitucional!

No livro, por exemplo, faço a crítica da decisão do Supremo que proibiu a doação eleitoral por empresas. Até penso que não deveria existir esse tipo de doação, mas a meu ver nada na Constituição as proíbe efetivamente, e noções como a democracia ou o Estado Democrático de Direito me parecem insuficientes para resolver o problema, até porque há democracias que convivem com as doações de empresas. Pode-se até citar estudos recentes afirmando que a decisão do Supremo incentiva o próprio caixa dois.

ConJur — No caso do aborto, como avalia as decisões do STF até o momento? Poderiam ter sugerido, por exemplo, um limite de semanas para interrupção da gravidez?
Paulo Fontes —
No livro, não tive a pretensão de fixar limites objetivos ao que pode ou não ser decidido pela corte constitucional. Falo de autocontenção, de prudência, de minimalismo em alguns casos, mas cada caso é um caso. Não discordo e não critico, por exemplo, as decisões do Supremo sobre células-tronco ou sobre o feto anencéfalo. Os ministros se basearam em grande parte na inviabilidade da vida tanto dos embriões excedentes de procedimentos de fertilização, quanto do feto sem cérebro. Princípios como o da proporcionalidade e da razoabilidade operaram aqui, a meu ver, de forma aceitável.

Já no caso do autoaborto tout court, parece-me que concorrem concepções valorativas e mesmo cognitivas opostas, que não podem ser dirimidas pelos ministros com base no direito à vida, dignidade da pessoa humana ou intimidade da mulher. Eu próprio sou favorável à adoção de uma legislação que permita o autoaborto até a 12ª semana de gestação, mas penso que resposta não deve vir do Supremo. Para quem adota uma posição concepcionista, por exemplo, de que a vida começa com a concepção, não se cogita de um direito da mulher ao próprio corpo, pois estaria ali uma vida independente dela.

Outros países autorizaram o aborto através da legislação, como a França com a ministra Simone Veil, sepultada recentemente no Panthéon. A Irlanda o fez esse ano através de um plebiscito. A Argentina tentou também fazer por meio de lei, mas o Senado acabou rejeitando, o que não impede novas tentativas. Penso que esses processos são ricos para a democracia. Onde a permissão se deu por decisão da corte constitucional, como nos EUA, a legitimidade da decisão Roe x Wade de 1973 ainda é questionada e divide a sociedade e os estudiosos.

ConJur — Existe hoje ativismo exacerbado por parte dos ministros?
Paulo Fontes —
Não utilizo o termo “ativismo” no meu livro, porque às vezes é empregado de forma simplória e abrangendo situações muito diversas. Não trato no trabalho, por exemplo, de questões penais. Por outro lado, reconheço o papel insubstituível da corte constitucional na defesa dos direitos fundamentais. Mas, sim, com certa simplificação, posso dizer que há algum ativismo na utilização dos princípios, justamente porque são sempre tidos como parâmetros suficientes para a decisão.

ConJur — O que é ser cético no campo da Ética?
Paulo Fontes —
É não acreditar que existem verdades morais, respostas corretas para as várias questões como aborto, eutanásia, pena de morte etc. Mas para a maioria dos autores dessa corrente, o ceticismo não impede que os céticos tenham suas posições morais. Eu, por exemplo, que de alguma forma concordo com o ceticismo, tenho meus pontos de vista morais e os defendo com vigor: sou a favor do autoaborto, como disse acima, e tenho meus argumentos; sou contra a pena de morte etc. Mas haveria uma diferença entre acreditar nos pontos de vista morais como pontos de vista e acreditar neles como verdades. Alguns autores verão aí uma contradição do ceticismo e tento rebater a crítica no livro. Cito uma frase do economista Joseph Schumpeter segundo o qual 'perceber a validade relativa das próprias convicções, mas ainda assim defendê-las de forma intransigente é o que distingue o homem civilizado do bárbaro'.

No livro, tento mostrar ainda as afinidades do ceticismo com a tolerância, a liberdade e a democracia.

ConJur — E como a corte constitucional deveria agir diante de temas com valores colidentes e difíceis de mensurar?
Paulo Fontes —
Excelente questão. Talvez a mais difícil de responder. Defendo que os princípios constitucionais são uma realidade positiva do direito constitucional moderno. Eles alteram realmente a natureza da jurisdição constitucional, emprestam-lhe maior alcance. Isso também torna inarredável, inafastável a chamada ponderação de princípios ou de valores. Aliás, a ponderação é algo que sempre ocorreu no direito, mas ganha relevância na jurisdição constitucional moderna. Há casos em que ela ocorre e está eivada de subjetividade, mas mesmo assim não há o que fazer, o juiz constitucional tem de ponderar.

Mas a ponderação tem seus limites, e tento mostrar isso no livro. O próprio Robert Alexy, defensor da ponderação, assevera no posfácio de seu Teoria dos Direitos Fundamentais que há os casos de discricionariedade estrutural e de discricionariedade epistêmica, em que justamente a ponderação se tornaria muito subjetiva, envolvendo escolhas políticas e, portanto, em nome do princípio democrático, a corte constitucional deveria deixar a escolha para o legislador.

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