Particípio passado

Primeiro caso de Gorsuch na Suprema Corte dos EUA é julgado com base na gramática

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13 de junho de 2017, 11h59

O primeiro voto do novo ministro da Suprema Corte dos EUA, Neil Gorsuch, foi aprovado por unanimidade. É uma cortesia costumeira dos antigos ministros da corte designar o estreante para redigir o voto vencedor de um processo aprovado por unanimidade. Curiosamente, a decisão se baseou nas regras da gramática, ficando as regras jurídicas para segundo plano.

O ministro sustentou: o particípio passado de um verbo se refere ao tempo presente. Afinal, o particípio passado funciona como um adjetivo, não como um tempo passado de um verbo. Por exemplo, um carro “quebrado” não funciona, galhos “caídos” bloqueiam a rua e (igualmente) uma dívida “comprada” é “devida” ao atual credor. Não tem nada de passado nisso. Tudo é presente, escreveu o ministro.

O caso perante a Suprema Corte se refere a dívidas vencidas e empresas de cobrança que compram, por alguma ninharia, dívidas de credores que desistiram de cobrá-las, para coletar, de alguma forma, o dinheiro dos devedores inadimplentes e obter um bom lucro.

Um grupo de devedores moveu uma ação coletiva contra a empresa de cobrança Santander Consumer USA Inc., que havia comprado suas dívidas de financiamento de veículos da CitiFinancial Auto. Os demandantes alegaram que a Santander, por seus métodos de cobrança, violou a Lei das Práticas de Cobrança Justa de Dívidas (Fair Debt Collection Practices Act).

Essa lei proíbe empresas de cobrança de tornar suas práticas lesivas ao consumidor, incluindo telefonar no horário do jantar, fazer ameaças tais como a de que o devedor vai ser preso (isso não acontece porque o processo é civil), que seus salários e contas bancárias serão sequestrados (também não acontece), que o devedor vai ser processado. Proíbe também contatar amigos e familiares do devedor ou contatá-lo no trabalho (sem autorização) etc.

Essa lei não menciona, mas há uma prática que ajuda empresas de cobrança a burlar outra lei, a da prescrição de dívidas. Dependendo do estado, as dívidas prescrevem de quatro a sete anos. Mas, existem incidentes que interrompem e reiniciam a contagem da prescrição. Um deles é que o relógio de prescrição de uma dívida dispara a cada pagamento que o devedor fizer, mesmo depois que a dívida estiver prescrita.

Normalmente, os consumidores não sabem disso. Assim, as empresas de cobrança telefonam para os devedores e propõem quitar a dívida, se eles fizerem um pagamento de, por exemplo, 15% da dívida. Assim, uma dívida de US$ 2 mil seria quitada com um pagamento de US$ 300.

A maioria dos devedores reconhecem a dívida, mas não estão felizes por ter um débito pendente e concordam e fazer o pagamento de US$ 300 para se livrar desse peso. Nesse momento, a contagem do tempo de prescrição recomeça do zero e a empresa de cobrança processa o devedor pelo valor total da dívida, mais juros etc.

Os clientes cobrados pela Santander reclamaram na Justiça contra práticas semelhantes a essas. No entanto, a Suprema Corte tomou um outro viés. Em vez de examinar se a Santander pratica essas violações da lei, julgou se a empresa pode ser classificada como empresa de cobrança, na forma descrita pela lei. A resposta foi não. E a explicação está na gramática.

A lei diz que uma “cobradora de dívidas” é qualquer pessoa ou empresa, cuja principal atividade é cobrar ou tentar cobrar, diretamente ou indiretamente, dívidas de propriedade, devidas ou declaradas como de propriedade ou devidas a outrem. Dívidas “de propriedade ou devidas a outrem” é o “x” da questão. Na opinião do ministro, descreve uma empresa que, na condição de terceirizada, cobra dívidas de outros credores.

Nesse ponto, entra a interpretação gramatical da lei pelo ministro. Ele escreveu que, segundo o The Cambridge Guide to English Usage, o termo particípio passado é uma designação incorreta (ou um erro de nome), porque o que descreve “pode ocorrer no que é tecnicamente o presente”. O ministro também usou o livro B. Garner, Modern English Usage para sustentar a interpretação.

Os peticionários alegaram que a Santander estava cobrando dívidas que, um dia, foram de propriedade e devidas à concessionária de automóveis. Mas, com base no entendimento do que é um particípio passado, o ministro argumentou que, depois de a Santander comprou as dívidas, elas passaram a ser de propriedade e devidas à Santander.

Assim, a Santander não é, segundo o voto do ministro, uma empresa de cobrança que, como terceirizada, cobra dívidas de propriedade ou devidas a outrem. Ela cobra dívidas que são de propriedade ou devidas a ela mesma.

Com sua primeira penada, o ministro Gorsuch salvou as atividades das empresas mais detestadas no país: as que compram dívidas por ninharias para aterrorizar a vida de devedores inadimplentes (não das empresas de cobrança tradicionais).

Não sem se lamentar, porém. A lei deveria atingir todas as empresas de cobrança que usam táticas que lesam os consumidores, indistintamente. Mas só quem pode corrigir isso é o Congresso. A função do Judiciário é aplicar a lei, não emendá-la. Isso é tarefa dos representantes do povo, escreveu o mais novo membro da Suprema Corte.

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