Opinião

Quando falar de Deus passou a ser pecado jurídico?

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13 de junho de 2017, 6h36

Em coluna recentemente publicada, Lenio Streck criticou uma oração feita em audiência pública e colocou em seu texto um link para um artigo meu. Escrevo somente para justificar minha posição.

Streck estranha porque não falei da notificação convocatória da audiência pública. Simples: o motivo da polêmica, como divulgado inclusive na reportagem por ele citado, foi o Procurador de Justiça ter mencionado Deus em sua fala.

De início, penso que há um consenso no sentido de que se a palestra fosse destinada para o fim de uma pregação religiosa, haveria desrespeito ao dever de laicidade. Logo, furto-me em alongar mais nesse ponto.

O texto que escrevi partiu de uma pressuposição clara e explicada em seu conteúdo: a de que o procurador de Justiça expôs o projeto para combater a evasão escolar por cerca de uma hora e meia e, no encerramento da fala, pede licença aos presentes para falar de Deus e faz uma oração, tudo após obter o consentimento da maioria do auditório. Assim, o conteúdo religioso da palestra durou de três a quatro minutos. Não estive no evento, mas um amigo que lá esteve foi a fonte de minha informação, além de um vídeo que circula na internet, o qual mostra o momento da oração.

A reportagem mencionada por Streck e os vídeos dela parecem mostrar recortes do epílogo da palestra. Não desmentem minha fonte. Por certo, a instrução nas instâncias próprias mostrará se é a reportagem ou a minha fonte que está correta.

Por amor ao debate, parto da premissa de que Streck, mesmo que minha pressuposição fática esteja correta, sustentaria a violação do dever de laicidade, mesmo que ele não tenha deixado clara essa conclusão.

Não se pode confundir laicidade e laicismo[1]. A laicidade, como fenômeno político-jurídico, pretende tratar com autonomia o Direito e a Política da Religião. O laicismo pugna por um Estado antirreligioso, com interdição total da referência a temas ou fundamentos que possam ser qualificados de religiosos na arena pública.

O que é intrigante, especialmente em debates de conteúdo altamente simbólico, é que há, desde o Estado Moderno, o surgimento de novas “religiões” civis ou políticas, com doutrinação no afã de constituir “adoradores” a seus deuses particulares, dogmas e mandamentos; usam-se símbolos (hinos, cores, rituais e bandeiras, por exemplo) para os “discípulos” reconhecerem-se mutuamente e defenderem os valores específicos que estão no liame de seu associativismo.

O problema começa a surgir quando o fanatismo religioso, seja ele eclesial, civil ou político, cerceia qualquer possibilidade de diálogo ou de respeito pela crença ou divergência alheia; assim, também é viável reconhecer que, a pretexto da laicidade, pode nascer uma intolerância laica ou secularista.

Não há enunciado normativo constitucional que traga o vocábulo “laicidade”. Porém, seguramente é viável defender que o Estado brasileiro, embora não seja confessional, não é retratado na Constituição Federal como um Estado ateu nem como um juridicamente laicista, uma vez que, em seu preâmbulo, reconhece que o texto constitucional era promulgado sob a proteção de Deus.

Há uma dupla dimensão dos direitos fundamentais[2], com correspondentes deveres negativos e positivos. A laicidade não é propriamente um direito fundamental, mas um dever estatal negativo atrelado ao âmbito de proteção do direito fundamental de liberdade de crença. Isso significa que o Estado deve respeitar a liberdade de cada um crer no que quiser, sem impor uma religião determinada, com separação das normas que regem o poder político-jurídico secular dos mandamentos religiosos.

Por suposto, a liberdade de crença impõe ao Estado deveres ativos também. O Estado deve legislar e normatizar a proteção do exercício da fé de todos contra ameaças de terceiros (exemplo do artigo 208 do CP). Um dever de promoção, ainda que isso seja mais controvertido, pode ser ilustrado pela tributária dos templos religiosos. No entanto, aí não se está a tratar mais de laicidade.

Ora, se a laicidade é consolidada conforme valores e tradições embebidas e reconhecidas política e juridicamente, invariavelmente sua extensão denotativa variará a depender da sociedade e do sistema político e jurídico onde se examina a questão. A laicidade no Brasil não tem a mesma dimensão do État laïc francês, em que se propugna o confinamento da religião a um espaço exclusivamente privado, com a interdição de ostentação de símbolos religiosos em espaços públicos, como escolas[3], inclusive pelos próprios cidadãos.

O Estado deve ser laico, mas a laicidade deve ser interpretada dentro de um limite semântico e conforme sentido reconhecido intersubjetivamente em nossa cultura, no diapasão de que o Estado não pode e não deve impor uma determinada religião a ninguém nem perseguir quem professa uma fé diversa ou quem não acredita em entes metafísicos. Mas a laicidade não é, juridicamente, sinônimo de abolição da liberdade de expressão e de crença, ainda que num ambiente público e mesmo que por parte de um agente público.

Deveremos rebatizar o município de São Paulo e outros tantos nomeados em homenagem a santos padroeiros ou a divindades? Devemos proscrever feriados religiosos? Perguntas iguais ou similares também haviam sido postas em sentença da Justiça Federal que rejeitou o pedido proposto pelo Ministério Público Federal de retirar das cédulas de dinheiro a expressão “Deus seja louvado". A fundamentação do MPF era precipuamente ancorada na laicidade do Estado. Na própria ConJur, Streck criticou o MPF com base em ponderações semelhantes; ele parece compreender que o dever de laicidade não implica a reescrita da história e tradição cultural do Brasil.

Também lembrei uma decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos. A Corte enfrentou uma suposta infração do dever de imparcialidade da Itália consistente na existência de crucifixos nas escolas italianas (Caso Lautsi). Embora a Corte tenha fundamentado que a decisão italiana de não retirar crucifixos de escolas públicas estava sob sua margem de apreciação, ela delimita o dever de laicidade, com o fundamento de que a liberdade de crença de qualquer um é passível de ser exercitada em ambientes públicos ou privados. A Corte compreendeu que a presença de crucifixos não demonstra nenhuma forma de tolhimento da possibilidade de cada um exercitar sua fé ou crença conforme lhe aprouver.

Alguém poderia objetar e dizer que a Corte teria feito uma distinção entre um símbolo passivo, como é o crucifixo, e “símbolos ativos” e querer enquadrar a fala do procurador como um símbolo ativo, logo, censurável. Porém, o restante da fundamentação afasta essa conclusão. Em realidade, o que a Corte decidiu, é que a laicidade do Estado não serve de pretexto para renegar e matar a influência histórico-cultural que a religião católica tradicional exerce na sociedade italiana. O fundamento maior (ver o parágrafo 74 da decisão) para o veredito é a percepção da Corte de que não pode haver imposição de uma religião qualquer nem proibir que as pessoas sob sua autoridade estejam vedadas de discordar dessa religião, de rejeitar Deus ou de seguir um credo diverso.

Outras observações do cotidiano mostram que a laicidade no Brasil deve ser aquilatada como a permitir a expressão de sentimentos religiosos na arena pública, portanto, na nomenclatura da Corte Europeia, aqui se permitem símbolos positivos. Os presidentes Lula e Temer, nos seus discursos proferidos nas solenidades de posse, fizeram questão de agradecer a Deus. Não é isso uma forma de oração? Sim. Ora-se para pedir, relatar ou simplesmente agradecer por alguma coisa. Aliás, em muitas posses de agentes públicos e operadores do Direito é comum que, nos seus discursos, dedique-se um espaço para agradecimento a Deus, seja qual for a religião.

Em colações de grau, mesmo que seja uma instituição pública de ensino, tradicionalmente há uma fala de alguns minutos para a gratidão a Deus. Existe um cargo de capelão dentro do Exército, submetido a concurso público. Aliás, dentro de repartições públicas ainda existem alguns espaços dedicados a cultos católicos ou ecumênicos e não é incomum, especialmente em datas próximas a feriados religiosos, que alguns órgãos públicos permitam a celebração de cerimônias religiosas no seu interior. Logo, o dever de laicidade não interdita necessariamente símbolos ativos ou manifestações ativas de expressão religiosa na arena pública.

Afirmar que uma oração curta — permitida pela maioria do público e sem coação a quem não a fizesse — transgride a laicidade, parece caminhar no mesmo sentido de proibir cidades com nomes ligados a alguma religião; parece não tolerar a proteção de Deus dada no preâmbulo da nossa Constituição e a tradição histórico-cultural compartilhada pela maioria da população brasileira. Parece, enfim, propor um conceito de laicidade não condizente com a nossa tradição cultural e jurídica.

Observações possíveis: i) e se o orador orasse a outro deus qualquer ou afirmasse a inexistência de Deus? ii) Não convém a um agente público expressar sua fé em hipótese alguma em uma reunião ou ambiente de trabalho.

Quanto ao primeiro ponto, a conclusão é idêntica. Não defendo um direito absoluto de expressar-se religiosamente no espaço público. Outros direitos ou bens podem justificar a restrição do direito fundamental à liberdade de expressão e de crença, respeitado o princípio da proporcionalidade. Não interferir na liberdade de crença de terceiros ou resguardar a paz social e a ordem pública são candidatos constitucionalmente válidos para impor restrições ao direito fundamental das liberdades de crença e de expressão. Mas o que é interferir na liberdade de crença alheia?

O âmbito de proteção do direito fundamental deve ser interpretado — e interpretar é apenas uma atividade[4] — de modo amplo, porém com o decote de todas as situações e posições jurídicas que, num juízo de evidência e consenso razoável, sejam excessivas[5]. Logo, numa primeira impressão, a oração proferida no evento, da forma que foi realizada, sequer representaria uma interferência na liberdade de crença alheia, diante da mínima lesividade. Se houver, contudo, a conclusão de que existiu uma interferência na liberdade de crença alheia na fala final do procurador, seria caso de estudar a proporcionalidade dessa interferência.

O cerceamento da fala seria um meio idôneo. Haveria meios alternativos que preservassem a liberdade de crença e de expressão do orador e, ao mesmo tempo, fossem menos lesivos ao direito dos não crentes? Na dúvida, considere-se que o meio é necessário. Por fim, examina-se a proporcionalidade em sentido estrito da atitude do orador e, diante das circunstâncias fáticas e jurídicas já descritas ao longo do texto, não houve desproporcionalidade. Aqui, a rigor, estão mais as conclusões e não a argumentação, as quais pretendo desenvolver em artigo jurídico futuro.

Não me abebero na matriz teórica de Streck, o qual rejeita a ponderação[6], o que não diminui em nada meu respeito por sua doutrina. Logo, certamente o jurista discordaria da apresentação supramencionada.

Quanto ao segundo ponto, é um argumento político e não jurídico, estranho a uma norma do sistema. Obviamente, quem não professa a fé daquela maioria presente ao evento ou mesmo é ateu tem liberdade para discordar ou desgostar da realização da oração, mas não torna o conteúdo do discurso ilícito em si.

A tensão com o posicionamento constitucional é perceptível em parte da esfera social, uma vez que é notório que muitos segmentos laicistas efetuam um ativismo político vigoroso para banir a expressão de cariz religioso dos espaços públicos, seja por propostas legislativas, seja pela judicialização. Faz parte do jogo democrático que diferentes grupos busquem na arena política a conformação das regras do sistema a favor de sua corrente ideológica, mas não se pode partir do equívoco de atrelar a religião a algo puramente emocional e irracional, ligada a toda forma de atraso e barbárie; como Raquentat Júnior bem menciona, a História provou que também religiões civis e políticas, muitas delas a rejeitar influência de instituições religiosas tradicionais e até em posição de confronto com elas, patrocinaram enormes atrocidades, a par de que há exemplos de instituições religiosas tradicionais que contribuíram para o benefício dos direitos humanos e a favor da democracia[7]. Na epístola de Romanos, 12, 1, apregoa-se que o culto agradável a Deus é racional. Portanto, e agora falo de política e não de Direito, não penso que as soluções erigidas pelas correntes laicistas mais extremadas sejam o melhor caminho para sedimentar pluralismo e tolerância[8].

Não antevejo se haverá quem se interesse por este texto e pretenda refutá-lo. Lerei com o espírito aberto as críticas. Se ficar convencido de que me equivoquei, confessarei publicamente meu pecado jurídico.


[1] As ideias do parágrafo são extraídas de RANQUETAT JÚNIOR, Cesar Alberto. Laicidade à brasileira: Um estudo sobre a controvérsia em torno da presença de símbolos religiosos em espaços públicos. Tese de doutorado em antropologia social apresentada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2012, p. 16-37 e seguintes.

[2] ALMEIDA, Kellyne Laís Laburú Alencar de. O paradoxo dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2014, p. 149 e seguintes.

[3] ROBERT, Jacques. La liberté de religion, de pensée et de croyance. In: Libertés et droits fondamentaux. 16ª ed. Paris: Dalloz, 2010, p. 396 e seguintes.

[4] DUARTE, David. Linguistic objectivity in norm sentences: alternatives on literal meaning. In: Ratio Juris, v. 24, n. 2, June, 2011, p. 113 e seguintes.

[5] Tema muito interessante, mas não há espaço para desenvolvê-lo aqui. Para um aprofundamento, remete-se a ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. (Tradução de Silva, Virgílio Afonso da). São Paulo: Malheiros, 2008, p. 281-332; e a NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela constituição. Coimbra: Coimbra, 2003, p. 390-430.

[6] Defendi o raciocínio ponderativo e a aplicação do princípio da proporcionalidade na minha dissertação de mestrado (ALMEIDA, Luiz Antônio Freitas. Direito fundamentais sociais e ponderação – Ativismo irrefletido e controle jurídico racional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2014, p. 72 e seguintes).

[7] RANQUETAT JÚNIOR, Cesar Alberto. Laicidade à brasileira: Um estudo sobre a controvérsia em torno da presença de símbolos religiosos em espaços públicos. Tese de doutorado em antropologia social apresentada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2012, p. 26-27 e seguintes.

[8] Obviamente, não defendo a concepção de tolerância de Locke, o qual bania dos favores dessa virtude, entre outros, os ateus (LOCKE, John. The Works of John Locke in Nine Volumes. V. 5: four letters concerning toleration. (London: Rivington, 1824, p. 24 e seguintes); preconizo a tolerância com a fé ou falta de fé alheia por parte de todos, observadas as limitações/restrições constitucionalmente válidas.

 

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