Opinião

Habeas Corpus, entre o abuso e a necessidade

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11 de junho de 2017, 13h19

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre, negou na última quarta-feira (7/6) Habeas Corpus impetrado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, requerendo a produção de provas e a suspensão da ação relacionada ao triplex em Guarujá. O relator do processo, desembargador Federal João Gebran Neto, ao negar o HC, criticou o uso recorrente do recurso pelos advogados de Lula.

Segundo Gebran Neto, desembargador relator, "novamente depara-se este Tribunal com impetração de habeas corpus que nenhuma relação tem com o direito de ir e vir do paciente. Não há qualquer indicativo que aponte para a prisão do paciente, nem mesmo para eventual condenação, haja vista que pendente a ação penal de exame em cognição exauriente".

A defesa do ex-presidente Lula, em liminar, requereu a produção de novas provas e a suspensão da ação relacionada ao triplex em Guarujá, até o julgamento do mérito do Habeas Corpus. A combativa defesa do ex-presidente Lula argumentou que a ação penal em curso na 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba vem tramitando com "atropelo e prática de diversas irregularidades".

Para a laboriosa defesa, houve "evidente cerceamento de defesa" por parte da 13ª Vara Federal de Curitiba, que, diz o defensor, negou sem fundamentação "razoável ou suficiente" pedidos de diligências complementares, que seriam baseadas em controvérsias surgidas ao longo da fase de instrução.

Para o desembargador Gebran Neto, do TRF da 4ª Região, "tem chamado a atenção, sobretudo no âmbito das ações penais que guardam relação com a denominada 'Operação Lava-Jato', a frequente utilização do habeas corpus com a finalidade de enfrentar, de modo precoce, questões de índole processual. O remédio heroico destina-se a corrigir eventual ilegalidade praticada no curso do processo, mas, em especial, quando houver risco ao direito de ir e vir do investigado ou réu".

Por meio de nota, o advogado Cristiano Zanin Martins afirmou que o processo relativo ao triplex é baseado em argumentos que "substituem prova por crenças e argumentos e julgamento por atos de fé". O incansável e eminente advogado se contrapõe ao argumento do desembargador Gebran Neto, justificando a necessidade de impetração do heroico remédio pelo que considera "sistemática violação às garantias e direitos de Lula por parte do juiz de primeiro grau, fato público e notório".

Não é despiciendo lembrar que a origem do Habeas Corpus data de 1215 quando da assinatura da Magna Carta na Inglaterra imposta ao despótico rei João Sem Terra pelos condes e barões, revoltados diante das arbitrariedades cometidas pelo monarca.

Pontes de Miranda explica a origem e o significado do nome em latim:

Habeas corpus eram as palavras iniciais da fórmula do mandado que o Tribunal concedia, endereçado a quantos tivessem em seu poder, ou guarda, o corpo do detido. A ordem era do teor seguinte: ‘toma (literalmente: tome, no subjuntivo, habeas, de habeo, habere, ter, exibir, tomar, trazer, etc.) o corpo deste detido e vem submeter ao Tribunal o homem e o caso[1].

Entre nós, originalmente, em conformidade com a tradição inglesa, a ordem do Habeas Corpus não era como hoje, a decisão em favor da liberdade, mas uma ordem de apresentação do preso (paciente) ao juiz ou tribunal, com os motivos do constrangimento.

Em nosso Direito, o HC foi introduzido ainda no Império pelo Código de Processo Criminal de 1832 que em seu artigo 343 dispunha o seguinte: “A Ordem de habeas-corpus deve ser escrita por um escrivão, assinada pelo juiz ou presidente do tribunal, sem emolumento algum; e nela se deve explicitamente ordenar ao detentor ou carcereiro que dentro de certo tempo e em certo lugar venha apresentar, perante o juiz ou tribunal, o queixoso, e dar as razões do seu procedimento”.

Com o advento da República, a Constituição de 24 de fevereiro de 1891 elevou o Habeas Corpus à categoria de garantia constitucional. De acordo com o texto constitucional da época, “dar-se-á habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder” (artigo 72, parágrafo 22).

A atual Constituição da República assevera: “Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder” (artigo 5º, inciso LXVIII).

Sady Cardoso de Gusmão[2] observa que:

A restrição à liberdade de locomoção não implica rigorosa estreiteza do conceito. Antes de tudo o instituto protege o indivíduo em seu corpo, em projeção intrínseca: liberdade corporal, direitos corpóreos meros, compreendendo os casos de exames corporais, buscas pessoais, integridade física: injusta identificação, castigo corporal direto ou indireto, como supressão de alimentos, violência física etc. Ainda é suscetível e projeção extrínseca, a direitos imanentes, ou aderentes: habeas corpus para cessar a incomunicabilidade, transferência de prisão, contra medida de segurança não prevista em lei ou não regularmente aplicada, como a sujeição a liberdade vigiada fora dos casos legais.

Além de ser uma garantia constitucional, um remédio heroico, como costuma ser chamado, o Habeas Corpus tem um viés nitidamente processual penal em que assume, de acordo com o ensinamento de José Barcelos de Souza, “o papel de um grande recurso”. Algumas vezes, o Habeas Corpus, diz o processualista de Minas, “supre a falta de um recurso próprio, como no caso de despacho de recebimento da denúncia ou queixa inepta; outras vezes, mesmo comportando a decisão recurso propriamente dito, ser como outra opção, visto que, em princípio, e em que pese a uma ou outra manifestação jurisprudencial em contrário, a existência de um recurso não exclui a possibilidade da impetração e da concessão do habeas corpus, se for caso dele”[3].

A grandeza do HC como remédio para fazer cessar o constrangimento ilegal ou evitar que ele se dê (preventivo) se revela na possibilidade de o mesmo ser impetrado por qualquer pessoa, inclusive pelo próprio paciente, ser concedido de ofício, como, também, não se exigir qualquer formalidade ou rebusque na petição de impetração. Pode ser pedido por telegrama, e-mail, telefone ou qualquer outro meio hábil que vise obtenção da ordem.

Ao contrário do que alguns possam crer, o Habeas Corpus não se limita a garantir apenas e tão somente o direito de ir e vir. Hodiernamente, é preciso deixar assentado que diante de abusos, arbitrariedade e evidente constrangimento ilegal, quando não há recurso próprio e com a eficácia do remédio heroico em que se constituiu o HC, não há qualquer razão para restringi-lo ou considerar sua impetração como abusiva.

Como bem destacou em nota o advogado Cristiano Zanin Martins, a ideia de se restringir o HC não é compatível com a Constituição da República e com o próprio Estado Democrático de Direito. Assim, sempre que houver cerceamento de direitos e garantias, arbitrariedade, constrangimento ilegal e assalto aos princípios fundamentais insculpidos na Constituição da República, o Habeas Corpus se fará necessário e presente.


[1] PONTES de MIRANDA. História e prática do habeas-corpus, 3ª ed., Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1955.
[2] Apud SOUZA, José Barcelos de. Doutrina e prática do habeas corpus. Belo Horizonte: Sigla, 2008.
[3] SOUZA, José Barcelos de. Doutrina e prática do habeas corpus. Belo Horizonte: Sigla, 2008.

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