Opinião

A questão jurídica no atendimento médico de pacientes Testemunhas de Jeová

Autor

10 de junho de 2017, 6h37

O presente artigo demonstra a existência de uma atuação médica segura — tanto do ponto de vista jurídico como ético — voltada para pacientes que não aceitam transfusão de sangue por motivos religiosos. Ao final, sugere-se um protocolo de atendimento a fim de conferir segurança ético-jurídica aos profissionais de saúde.

1. Risco de ser processado: transfundir ou não transfundir?
Para muitos, o médico vive um dilema que envolve o risco latente de ser processado ao tratar pacientes Testemunhas de Jeová. É como se em qualquer cenário o profissional de saúde corresse o risco de processo: pelo paciente, se sua vontade for violada ao receber uma transfusão de sangue; ou pelo Ministério Público, familiares ou Conselho de Medicina, por deixar de transfundir e ocorrer a morte.

Cabe, então, a pergunta: seria possível conciliar o respeito à autonomia dos pacientes Testemunhas de Jeová com uma atuação médica segura, que não comprometa o profissional de saúde mesmo em situações críticas?

2. Dever legal do médico e o consentimento livre e esclarecido
Do ponto de vista técnico-jurídico, a obrigação do médico é de meio, e não de resultado. Considerando que o resultado final — cura — não é garantido, faz-se necessário explicar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, as opções terapêuticas e os possíveis resultados. Trata-se de uma etapa importante da relação médico-paciente que leva em consideração os aspectos humanísticos envolvidos. Após ser devidamente esclarecido, o paciente decidirá o tratamento que julgar mais apropriado ao seu caso[1].

É justamente o ato de dar o consentimento que chancela a ciência do paciente de que a obrigação do médico é de meio, havendo verdadeira repartição do risco. Por outro lado, caso não respeite a autonomia do paciente, o médico estará colocando integralmente sobre os seus ombros todo o ônus de sua intervenção.

Para José de Aguiar Dias, as obrigações implícitas no contrato médico compõem-se dos seguintes deveres: (1) informação; (2) cuidados; (3) abstenção de abuso ou desvio de poder[2]. Há o dever de esclarecer o paciente sobre a doença e os tratamentos possíveis. Uma vez obtido o consentimento do paciente, o profissional agirá com diligência e providenciará cuidados de acordo com os melhores recursos científicos disponíveis. Desse modo, o médico não poderá ser responsabilizado caso a cura não seja alcançada ou o tratamento proposto não seja bem-sucedido.

Uma pesquisa jurisprudencial sistemática nos tribunais revela que médicos ou hospitais não têm sido processados ou responsabilizados cível e criminalmente quando respeitam a recusa de transfusão de sangue de pacientes Testemunhas de Jeová.

O conceito de que profissionais de saúde são processados e condenados ao tratarem pacientes Testemunhas de Jeová, embora amplamente difundido, não encontra sustentação diante de uma pesquisa jurisprudencial atual e sistemática.

3. Omissão de socorro?
O crime de omissão de socorro (Código Penal, artigo 135) se perfaz por meio da conduta de “deixar de prestar assistência”. Assim, sua caracterização requer a recusa intencional de atendimento, isto é, diante da situação de perigo, o médico não oferece qualquer espécie de tratamento, abandonando o paciente. Pode-se concluir que o médico, ao “prestar assistência” por meio de opções terapêuticas diversas da transfusão de sangue em conformidade com o consentimento informado do paciente, não comete o crime de omissão de socorro.

Tratando especificamente do caso das Testemunhas de Jeová, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso esclarece não haver qualquer crime cogitável na conduta do médico que respeita o paciente que recusa transfusão de sangue: “A manifestação da vontade deverá ser respeitada por força dos princípios constitucionais que incidem diretamente na hipótese. Por tais fundamentos, seria impossível qualificar a conduta do médico como homicídio ou omissão de socorro, ou ainda enquadrá-la em qualquer outro tipo em tese cogitável”[3].

No caso de o profissional de saúde deixar de ministrar o procedimento transfusional, o antigo Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo assentou: “O que o art. 135, do CP define como crime é a falta de assistência. Comprovado que as acusadas estão assistindo a menor, ainda que através de terapêutica distinta, mas abonada por critério médico, inexiste justa causa sob esse título, para a ação penal” (Tacrim-SP – HC – rel. Marrey Neto – RJD 7/175).

Além disso, para configurar o tipo penal de omissão de socorro, por se tratar de ilícito doloso, é necessário que haja uma vontade consciente de deixar de socorrer a vítima. Corroborando esse entendimento, o professor Nelson Nery Junior esclarece: “O médico que recomenda a transfusão de sangue, ao contrário do que exige o tipo, tem a intenção de tratar o paciente. Se este a recusa, não há que se falar em omissão de socorro por parte do médico, sendo atípica a conduta, porque falta o elemento subjetivo do tipo, ou seja, o dolo de submeter o sujeito passivo a situação de perigo iminente ou eventual”[4].

Resta assim desmitificado o conceito de que o profissional de saúde pratica o ilícito penal por omissão de socorro se utilizar terapêuticas que evitam transfusão de sangue. Socorrer não é sinônimo de transfundir. O médico que cuida de paciente adulto e capaz segundo o tratamento por ele escolhido não age com dolo de omissão de socorro. Sua conduta, portanto, é atípica — não há crime.

4. Julgados do Conselho Federal de Medicina
A prática médica deve estar acompanhada de uma atuação eticamente responsável[5]. Uma pesquisa jurisprudencial demonstra que o Conselho Federal de Medicina (CFM) já apreciou em três ocasiões casos de médicos que não transfundiram sangue em respeito à posição de pacientes Testemunhas de Jeová: Apelação 1.251/11 CRM-SC; Apelação 654/00 CRM-SP; e Apelação 5.793/98 CRM-SP.

Nos três casos, o CFM reconheceu que não há infração ética quando o médico respeita a autonomia do paciente.

Como exemplo, transcreve-se ementa de acórdão de lavra do conselheiro Roberto Luiz D'Ávila:

PROTOCOLO. RECURSO DE ARQUIVAMENTO. INEXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DE INFRAÇÃO ÉTICA. MANUTENÇÃO DO ARQUIVAMENTO. I – Não se vislumbra indícios de infração ética quando o médico deixa de instituir procedimentos diagnósticos ou terapêuticos necessários ao tratamento do seu paciente, quando impedido por recusa consciente do paciente e de seus familiares, decorrente de motivos de ordem religiosa. II Apelação conhecida e improvida (…) Sem dúvida é um direito individual de todo cidadão professar o credo ou a religião que lhe aprouver. A própria Constituição Federal garante esse direito individual. Porém, a responsabilidade dos atos decorrentes da obediência aos dogmas de credos e religiões professados, mesmos os que coloquem em risco à própria vida, não podem, e não devem, ser transferidos a outras pessoas (CFM – Número: 5793/1998 – Origem: CRM-SP – Pub. 22/10/2001).

Conforme se percebe, a jurisprudência ética do CFM considera que a responsabilidade pelas decisões do paciente Testemunha de Jeová cabe somente a este, não podendo ser transferida ao médico que o respeita.

Dos julgados citados se extrai ainda que o entendimento do CFM é no sentido de que uma conduta eticamente responsável não está pautada no estado clínico no paciente. O que se exige é que o profissional médico se assegure de que haja, por parte do paciente, uma vontade expressa de forma livre e consciente. Essa vontade pode ser expressa, inclusive, de forma antecipada, seja verbalmente ou por um documento de diretivas antecipadas.

Não há registro dentre os julgados do CFM de médicos que tenham sido condenados por respeitar pacientes Testemunhas de Jeová.

5. Atuação médica segura — sugestão de protocolo
Nos últimos anos, o CFM publicou diretrizes que fixam parâmetros para resguardar os médicos ao lidarem com pacientes que não consentem com o tratamento proposto e que exigem terapias diversas do recomendado pela equipe médica. Com base em tais parâmetros, propõe-se no presente artigo um protocolo de atendimento a pacientes Testemunhas de Jeová que oferece garantias legais e resulta em uma atuação médica segura:

a. analise todas as alternativas à transfusão disponíveis. Segundo a Recomendação CFM 1/2016, “a conduta do médico já não pode limitar-se à constatação de risco de morte para transfundir sangue compulsoriamente, mas precisa levar em consideração as recentes alternativas disponíveis de tratamento ou a possibilidade de transferência para equipes com profissionais treinados em tratamentos através de substitutos do sangue”.

b. esclareça o paciente. Em respeito ao princípio do consentimento informado, esclareça o paciente sobre as alternativas disponíveis, incluindo diagnóstico e prognóstico. Desse modo, permite-se ao paciente tomar a decisão sobre tratamento que este julgar mais apropriado para seu caso (Código de Ética Médica, art. 24). Enquanto a responsabilidade do médico é de meio (prestar a melhor assistência possível), o resultado final dependerá, dentre outros fatores, da escolha consciente de tratamento feita pelo paciente.

c. registre a decisão em TCLE. É importante registrar a decisão esclarecida do paciente que recusa transfusão de sangue. Um instrumento recomendado pelo próprio CFM é o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), conforme parâmetros da Recomendação CFM 01/2016[6]. Termos flexíveis, contendo o protocolo que será adotado, riscos envolvidos e as decisões do paciente constituem uma prática segura. Deve-se permitir que o paciente faça observações, inserções e exclusões no documento. O TCLE exime a equipe médica de eventuais responsabilidades caso haja um resultado insatisfatório no tratamento escolhido pelo paciente.

d. registre no prontuário. É importante o médico registrar as decisões e a evolução do tratamento escolhido no prontuário, a fim de comprovar que a atuação foi norteada pela decisão autônoma do paciente. Se o paciente fornecer um documento com diretivas antecipadas sobre transfusão de sangue, esse deve ser juntado ao prontuário, visando proteger o profissional. O objetivo é oportunizar ao paciente o registro de sua vontade sobre tratamentos, sobretudo quando “estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”. Acerca de eventual pressão de familiares contrários ao desejo do paciente, as diretivas antecipadas deverão prevalecer[7] (arts. 1º e 2º, § 3º e 4º da Resolução CFM 1.995/2012).

e. conferencie, promova junta médica, transfira o paciente. É prudente consultar médicos experientes em tratamentos sem sangue a fim de obter-se uma segunda opinião (Código de Ética Médica, art. 39). Contudo, caso o profissional se recuse a praticar atos com os quais não concorda (objeção de consciência), em respeito à sua autonomia profissional, pode este “sempre que possível encaminhar [o paciente] para outro colega” (Resolução CFM 2.144/2016 e Recomendação CFM 01/16). Logo, uma vez conhecida a posição do paciente, caso não haja concordância por parte do médico, é recomendável transferir o paciente o mais breve possível para outro profissional que aceite tratá-lo sem sangue. Tal procedimento, já no início da internação, evitará que o problema se agrave e permitirá que alternativas médicas à transfusão de sangue sejam utilizadas desde o início do tratamento.

Considerações finais
Em síntese, não são adequados à realidade os temores de muitos médicos de serem condenados ética, civil ou criminalmente por respeitarem a vontade de pacientes Testemunhas de Jeová. A jurisprudência, tanto dos tribunais como do Conselho Federal de Medicina, atesta ser legal e adequada a conduta do profissional de saúde que respeita a escolha esclarecida de um paciente adulto e capaz que recusa transfusões de sangue.

Portanto, é perfeitamente possível a elaboração de um protocolo de atendimento a pacientes Testemunhas de Jeová que confira tranquilidade e segurança ético-jurídica aos profissionais de saúde. Apesar dos desafios e da complexidade do tema, mediante uma visão mais humanística e livre de paixões e preconceitos, é possível conciliar o mister beneficente dos médicos de zelar pela saúde com o respeito aos direitos humanos do paciente.


[1] “CIVIL E CONSTITUCIONAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PACIENTE INTERNADO. TRATAMENTO APLICADO PELA INSTITUIÇÃO DE SAÚDE. DETERMINAÇÃO JUDICIAL. TRANSFUSÃO DE SANGUE COMPULSÓRIA. RECUSA DA PESSOA ENFERMA. OPÇÃO POR MODALIDADE DIVERSA DE TRATAMENTO. POSSIBILIDADE. OBSERVÂNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E À LIBERDADE. DIREITO DE ESCOLHA DA ESPÉCIE DE TRATAMENTO MÉDICO. LEGALIDADE. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E PROVIDO.
1. A opção de escolha pela modalidade e características do tratamento médico que lhe pareça mais conveniente, sob os aspectos biológico, científico, ético, religioso e moral, é conduta que possui a natureza de direito fundamento, protegida pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e da Liberdade, na forma preconizada no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal. 2. É lícito que a pessoa enferma e no pleno exercício de sua capacidade de expressão e manifestação de vontade, de modo claro e induvidoso, recuse determinada forma de tratamento que lhe seja dispensado, não se evidenciando nesse caso lesão ao bem maior da vida, constitucionalmente tutelado, mas se configurando, de outro modo, o efetivo exercício de conduta que assegura o também constitucional direito à dignidade e à liberdade pessoal” (TRF 1ª Região – Agravo de Instrumento 0017343-82.2016.4.01.0000/MG, rel. Kassio Nunes Marques, julg. em 16/5/16).
[2] Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, n. 116.
[3] BARROSO, Luís Roberto. Legitimidade da Recusa de Transfusão de Sangue por Testemunhas de Jeová. Dignidade Humana, Liberdade Religiosa e Escolhas Existenciais. Parecer jurídico. Rio de Janeiro, 5 de abril de 2010.
[4] NERY JUNIOR, Nelson. Escolha Esclarecida de Tratamento Médico por Pacientes Testemunhas de Jeová – como exercício harmônico de direitos fundamentais. Parecer jurídico.
[5] A Resolução CFM 1.021/80, que prevê a negativa de consentimento em casos de iminente risco de morte, encontra-se em processo de revogação pelo Conselho Federal de Medicina. Atualmente ela não confere real segurança jurídica visto que é contrária à Constituição Federal de 1988, que assegura a dignidade da pessoa humana, e, por conseguinte, a autonomia do paciente independentemente do seu estado de saúde.
[6] As Testemunhas de Jeová usualmente portam um documento de diretivas antecipadas que se assemelha ao TCLE e que já foi reconhecido como declaração válida de vontade (TJ-SP – Agravo 0065972-63.2013.8.26.0000)
[7] Nesse sentido, entende a Suprema Corte argentina em caso envolvendo paciente Testemunha de Jeová: “Por conseguinte, o tribunal de primeira instância constatou que tais diretivas devem ser respeitadas priorizando os desejos do paciente com base no seu direito de autodeterminação, em suas crenças religiosas e em sua dignidade, que as manifestações feitas por seu pai não consideraram que poderia ser remediado. Que, no caso, não há elementos para dúvidas quanto à validade formal do documento assinada manualmente por Pablo [paciente] perante o escrivão público Natalio R. Strusberg procedeu certificação” (Tradução livre – Corte Suprema de Justicia de la Nación – Argentina – Albarracini Nieves, Jorge Washington s/medidas precautorias A. 523. XLVIII. REX).


Referências bibliográficas
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Autonomia do Paciente e Direito de Escolha de Tratamento Médico Sem Sangue. Parecer jurídico, São Paulo, SP, 08 de fevereiro de 2010.
BARROS JUNIOR, Edmilson de Almeida. A responsabilidade civil do médico: uma abordagem constitucional. São Paulo: Atlas, 2007.
BARROSO, Luís Roberto. Legitimidade da Recusa de Transfusão de Sangue por Testemunhas de Jeová. Dignidade Humana, Liberdade Religiosa e Escolhas Existenciais. Parecer jurídico. Rio de Janeiro, 5 de abril de 2010.
BASTOS, Celso Ribeiro. Direito de recusa de pacientes submetidos a tratamento terapêutico às transfusões de sangue, por razões científicas e convicções religiosas. Revista dos Tribunais, v. 90, n. 787, maio 2001.
KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.
NERY JUNIOR, Nelson. Escolha Esclarecida de Tratamento Médico por Pacientes Testemunhas de Jeová – como exercício harmônico de direitos fundamentais. Parecer jurídico. São Paulo, SP. Setembro, 2009.
PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação médico-paciente. Centro de Direito Biomédico. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra Editora, junho 2004.
RAGAZZO, Carlos Emmanuel Joppert. O dever de informar dos médicos e o consentimento informado. Curitiba: Juruá, 2006.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!