Opinião

Delação premiada é favor legal, mas antiético

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10 de junho de 2017, 11h06

Nada pode ser mais atual e palpitante que a indigitada “delação premiada”, mormente após os exageros praticados na conhecida operação "lava jato", a qual a comunidade jurídica internacional está acompanhando estarrecida. Há inegavelmente a ausência de manifestação de vontade livre e consciente de delatores encarcerados, pressuposto básico de validade desse instituto.

Na verdade, o uso indiscriminado, abusivo e profundamente deturpado da delação premiada na "lava jato" deixa incrédulos os operadores jurídicos americanos, a despeito da absoluta discricionariedade de que goza o Ministério Público daquele país, algo inocorrente no sistema brasileiro. Frise­-se que o Ministério Público norte-americano tem absoluta disponibilidade da ação penal pública, ao passo que, no Brasil, a ação penal pública é absolutamente indisponível, ou seja, o Ministério Público brasileiro não tem o direito nem o poder de dispor dela livremente.

Delação premiada, segundo sua primeira definição na Lei dos Crimes Hediondos, consiste na redução de pena (podendo chegar, em algumas hipóteses, até mesmo à total isenção dela) para o delinquente que delatar seus comparsas, concedida pelo juiz na sentença final condenatória, desde que sejam satisfeitos os requisitos que a lei estabelece. Trata­-se de instituto importado de outros países[1], independentemente da diversidade de peculiaridades de cada ordenamento jurídico e dos fundamentos políticos que o justificam.

A Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), em seu artigo 7º, introduziu um parágrafo (4º) no artigo 159 do Código Penal, cuja redação estabelecia uma minorante (causa de diminuição de pena) em favor do coautor ou partícipe do crime de extorsão mediante sequestro praticado por quadrilha ou bando que denunciasse o crime à autoridade, facilitando, assim, a libertação do sequestrado. Dessa forma, premiava-se o participante delator que traísse seu comparsa, com a redução de um a dois terços da pena aplicada. Por essa redação, para que fosse reconhecida a configuração da então cognominada “delação premiada”, era indispensável que a extorsão mediante sequestro tivesse sido cometida por quadrilha ou bando e que qualquer de seus integrantes, denunciando o fato à autoridade, possibilitasse a libertação da vítima.

Posteriormente, a Lei 9.269/96 ampliou as possibilidades da “traição premiada” ao conferir ao parágrafo 4º a seguinte redação: “Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços”. A partir dessa nova redação, tornou-­se desnecessário que o crime de extorsão tenha sido praticado por quadrilha ou bando (que exige a participação de pelo menos quatro pessoas, agora a lei exige apenas três), sendo suficiente que haja concurso de pessoas, ou seja, é suficiente que dois participantes, pelo menos, tenham concorrido para o crime, e um deles tenha delatado o fato criminoso à autoridade, possibilitando a libertação do sequestrado.

Enfim, com essa retificação legislativa de 1996, iniciou­-se a proliferação da “traição bonificada”, defendida pelas autoridades repressoras como grande instrumento de combate à criminalidade organizada, ainda que, contrariando esse discurso, o último diploma legal referido tenha afastado exatamente a necessidade de qualquer envolvimento de possível organização criminosa.

Com efeito, a eufemisticamente agora denominada “colaboração premiada”, que foi inaugurada no ordenamento jurídico brasileiro, repetindo, com a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90, artigo 8º, parágrafo único), proliferou em nossa legislação esparsa, atingindo níveis de vulgaridade. Assim, passou a integrar as leis de crimes contra o sistema financeiro (artigo 25, parágrafo 2º, da Lei 7.492/86), crimes contra o sistema tributário (artigo 16, parágrafo único, da Lei 8.137/90), crimes praticados por organização criminosa (artigo 6º da Lei 9.034/95), crimes de lavagem de dinheiro (artigo 1º, parágrafo 5º, da Lei 9.613/98), a Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (artigo 13 da Lei 9.807/99) e, finalmente, a Lei 12.850/2013, a qual regulamentou o instituto de forma mais abrangente.

O fundamento invocado, para sua adoção, é a confessada falência do Estado para combater a dita “criminalidade organizada”, que é mais produto da omissão dos governantes ao longo dos anos do que propriamente alguma “organização” ou “sofisticação” operacional da delinquência massificada. Na verdade, virou moda falar em “crime organizado”, organização criminosa e outras expressões semelhantes para justificar a incompetência e a omissão dos detentores do poder, nos últimos 25 anos, pelo menos. Chega a ser paradoxal que se insista numa propalada sofisticação da delinquência. Num país onde impera a improvisação e tudo é desorganizado, como se pode aceitar que só o crime seja organizado?

Como se tivesse descoberto uma poção mágica, o legislador contemporâneo acena com a possibilidade de premiar o traidor — atenuando a sua responsabilidade criminal —, desde que delate seu comparsa, facilitando o êxito da investigação das autoridades constituídas. Com essa figura esdrúxula, o legislador brasileiro possibilita premiar o “traidor”, oferecendo-­lhe vantagem legal, “manipulando” os parâmetros punitivos, alheio aos fundamentos do direito-­dever de punir que o Estado assumiu com a coletividade.

Não se pode admitir, eticamente, sem qualquer questionamento, a premiação de um delinquente que, para obter determinada vantagem, “dedure” seu parceiro, com o qual deve ter tido, pelo menos, um pacto criminoso, uma relação de confiança para empreenderem alguma atividade no mínimo arriscada, que é a prática de algum tipo de delinquência. Estamos, na verdade, tentando falar da imoralidade da postura assumida pelo Estado nesse tipo de premiação. Nesse sentido, o professor Marcos Paulo Dutra Santos sentencia: “Concordamos que a traição não se resume à incriminação dos comparsas, na medida em que todos celebraram um pacto criminoso, definiram um plano de ação e o executaram, ainda que não revele todas as estratégias, presentes ou futuras. Negar que a delação premiada caracteriza, eticamente, traição é zombar da inteligência alheia, e além de atentar contra a honestidade intelectual, é admitir que se trata de método moralmente questionável”[2].

Qual é, afinal, o fundamento ético legitimador do oferecimento de tal premiação? Convém destacar que, para efeito da delação premiada, não se questiona a motivação do delator, sendo irrelevante que tenha sido por arrependimento, vingança, ódio, infidelidade ou apenas por uma avaliação calculista, antiética e infiel do traidor­-delator. Quando se constata que em uma única "operação" ("lava jato") mais de 87 "delações premiadas" já ocorreram, alguma coisa não vai bem! Todos querem ser delatores! Delatado também virou delator. Delação premiada virou baixaria, ato de vingança, utima ratio de denunciados ou investigados. Enfim, os ditos delatores dizem qualquer coisa que interesse aos investigadores para se beneficiarem das “benesses dos acusadores”, os quais passaram a dispor, sem limites, da ação penal, que é indisponível!

Venia concessa, será legítimo o Estado lançar mão de meios antiéticos e imorais, como estimular a deslealdade e traição entre parceiros, apostando em comportamentos dessa natureza para atingir resultados que sua incompetência não lhe permite através de meios mais ortodoxos? Certamente, não é nada edificante estimular seus súditos a mentir, trair, delatar, alcaguetar ou dedurar um companheiro movido exclusivamente pela ânsia de obter alguma vantagem pessoal, seja de que natureza for. O Estado não é criminoso ou bandido, tampouco pode portar­-se como tal, ou seja, invocar os métodos criminosos adotados pelos delinquentes para utilizá-­los em seu combate!

No entanto, a despeito de todo esse questionamento ético que atormenta qualquer cidadão de bem, a verdade é que a delação premiada é um instituto adotado em nosso Direito Positivo desde 1990. Falando em peculiaridades diversas, lembramos que nos Estados Unidos o acusado — como uma testemunha — presta compromisso de dizer a verdade e, não o fazendo, comete crime de perjúrio, algo inocorrente no sistema brasileiro, em que o acusado tem, inclusive, o direito de mentir, sem que isso lhe acarrete qualquer prejuízo, conforme lhe assegura a Constituição Federal (esse aspecto, de certa forma, a Lei 12.850/2013 corrigiu, exigindo-­lhe a obrigação de falar a verdade). Essa circunstância, por si só, desvirtuava completamente o instituto da delação premiada, pois, descompromissado com a verdade e isento de qualquer prejuízo ao sacrificá-­la, o beneficiário da delação diria e dirá qualquer coisa que interesse às autoridades na tentativa de beneficiar­-se. Tal circunstância retira eventual idoneidade que sua delação possa ter, se é que alguma “delação” pode ser considerada idônea.

Por outro lado, a legislação brasileira era completamente omissa em disciplinar o modus operandi a ser observado na celebração desse “acordo processual”. Com efeito, num primeiro momento, o próprio Ministério Público Federal declarou na mídia que os investigados “eram presos para forçar a delação” (violando o princípio da liberdade e voluntariedade de delatar), e que isso era de grande contribuição ao desenlace da investigação. Segundo informações que circulam na imprensa, os delatores têm prestado dezenas de depoimentos (vazou na mídia que o tal de Cerveró foi interrogado 37 vezes ao longo de dias e dias, quiçá de meses à disposição dos investigadores oficiais).

Trata-­se, a rigor, de uma refinada tortura psicológica, pois os investigados, presos preventivamente na carceragem da Polícia Federal, já sem forças e sem esperanças, e vendo resultados favoráveis de outros delatores, acabam “decidindo” também delatar alguém para minimizar sua condenação certa. Não se sabe, até agora, se sobrará alguém sem a pecha de delator na referida operação.

Mais recentemente, o magistrado que comanda a operação "lava jato", agora mundialmente famoso, para o bem e para o mal, acaba de praticar aquilo que se pode considerar a maior aberração, deturpadora do próprio instituto da delação. Explica­-se: depois da realização de diversos interrogatórios (fala-­se em 37) de determinado investigador-delator, o ilustre magistrado descartou o uso de tais depoimentos como elemento probatório, nos seguintes termos: “Os depoimentos a esse respeito de (…) devem ser descartados como elemento probatório a ser considerado, em vista da falta de credibilidade do acusado em razão da alteração significativa de seus depoimentos em Juízo e sem justificativa” (fls. 226 da sentença de 265 páginas), ainda que se diga que o fez tão somente para beneficiar o acusado.

Esse parágrafo examinado, isoladamente, não apresentaria nada de anormal; pelo contrário, estaria abrangido pela previsão da Lei 12.850/2013. Contudo, na sequência, o ilustre julgador equivoca-­se absurdamente e cria uma nulidade absoluta de seu decisório, por violar flagrantemente as garantais constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, ao considerar referidos depoimentos — prestados em uma delação premiada considerada inválida — como “confissão da prática de crimes”, verbis: “Considero os seus depoimentos, portanto, apenas como uma confissão da prática de crimes por ele mesmo…” (Ação Penal 5045241­84.2015.4.04.7000/PR, fls. 226).

Com efeito, tornada imprestável a “colaboração premiada”, por qualquer razão, não importa, mas que não sirva para o fim proposto, ela não poderá, de forma alguma, ser utilizada exatamente em relação ao seu autor (artigo 4º, parágrafo 10, da Lei 12.850/2013), porque este, sob a perspectiva de receber os benefícios que tal instituto lhe assegura, despiu-­se de seus cuidados defensivos, “abriu mão” de suas garantias constitucionais (inclusive, no caso concreto, daquelas de que não podia declinar), e franqueou tudo o que sabia, fragilizando sua defesa e, digamos, até inviabilizando teses defensivas a serem sustentadas por sua defesa técnica.

Tampouco a justificaria o argumento falacioso de que apenas a considerou válida para beneficiar o infrator, especialmente porque não afastou aquelas provas que, certamente, derivaram, direta ou indiretamente, de tal delação. Hoje se invoca o benefício ao delator, amanhã, quem sabe, pode­-se invocar o interesse público, interesse da Justiça, interesse sei lá de quem etc., para utilizar­-se de material colhido que a lei considera imprestável.

Por outro lado, um requisito, fundamento ou elemento indispensável para a validade e legitimidade do “acordo delatório”, qual seja, a liberdade e voluntariedade de celebrar “delação premiada”, não está presente em todas as delações feitas por “delatores” presos, encarcerados, amedrontados, psicológica e fisicamente fragilizados. Trata-­se, a rigor, de uma refinada tortura psicológica, pois os investigados, presos preventivamente na carceragem da Polícia Federal, já sem forças e sem esperanças, e vendo resultados favoráveis de outros delatores, acabam “decidindo” também delatar alguém para minimizar sua condenação certa. Não se sabe, até agora, se sobrará alguém sem a pecha de delator na referida operação.

Em outros termos, para a validade de qualquer delação ou colaboração premiada, é absolutamente imprescindível que decorra da manifestação de vontade livre e consciente do acusado. Com efeito, a liberdade e voluntariedade fundantes da manifestação de vontade do investigado/acusado são mais que requisitos, são verdadeiros pressupostos de validade da “transação penal” (delação). Nesse sentido, destaca Marcos Paulo Dutra Santos[3], referindo-­se ao sistema norte-americano, em seu belíssimo livro sobre Colaboração (delação) premiada, verbis: “A Regra Federal n. 11, (b), (2) preconiza que o Juízo apenas aceita a declaração de culpa ou de não contestação após certificar a voluntariedade, isto é, deve resultar da manifestação livre de vontade do acusado, e não de eventuais ameaças, violências ou promessas falsas, absolutamente estranhas à proposta de acordo. Para tanto, é indispensável que o juiz indague pessoalmente o imputado em audiência — open court” (item n. 2.1.3.1).

No entanto, para concluir, questionamos nós, poder­-se-­á chamar de “justiça negocial” ou acordo espontâneo, como exige nosso texto legal, a “opção pela colaboração premiada, após o cidadão estar encarcerado por longo período — quando já exaurido, deprimido, esgotado e desprotegido, pressionado pelas “misérias do cárcere” (Carnelutti): “Aceita” dedurar seus comparsas, aliás, como acontece na cognominada operação "lava jato"? Pode­-se sustentar a legitimidade da deslealdade legal, como “favor legal” ao delator, nessas circunstâncias? Mesmo naquelas em que “os negociadores do Estado”, ao contrário do que ocorre com a "lava jato", não impõem renúncia a direitos e garantias asseguradas na Constituição Federal como cláusulas pétreas?

Questões como essas exigem séria e profunda reflexão, desapaixonada, para sabermos quais os limites éticos, morais, religiosos e até legais de que nossas autoridades podem lançar mão para exercer licitamente suas funções.


[1] Código Penal espanhol, arts. 376 e 579, n. 3; Código Penal italiano, arts. 289 bis e 630, e Leis n. 304/82, 34/87 e 82/91; Código Penal português, arts. 299, n. 4, 300, n. 4, e 301, n. 2; Código Penal chileno, art. 8º; Código Penal argentino, art. 217; Código Penal colombiano, arts. 413/418, entre outros.
[2] Marcos Paulo Dutra Santos. Colaboração (delação) premiada, Salvador, JusPodivm, 2016.
[3] Santos, Marcos Paulo Dutra. Colaboração (delação) premiada, Salvador, JusPodivm, 2016.

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